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2.3. SÍNTESE

2.3.1. O problema da historicidade

O problema da historicidade de Mesquita pode nos levar a Le Goff (2003), quando faz uma aproximação da história com a memória. Nesta linha reflexiva, esse autor fala da importância dos povos tradicionais na preservação da memória e da história. Também Bosi (2009) analisa a dinâmica da memória e sua relação com a vida concreta, como as praças, as casas, ruas, monumentos. Esta autora ainda alude para os danos à memória que a desorganização da cidade pode causar. A memória relacionada aos velhos parece um ser em conflito com as novas tendências da sociedade, como se houvesse uma eterna luta entre a memória e a alternância do cotidiano.

A relação entre a memória e a história é perceptível na realidade quilombola Mesquita. Fala-se sobremaneira na memória dos “velhos” que procura perpetuar-se na adesão das novas gerações; o que nem sempre ocorre de forma harmoniosa, conforme visto anteriormente.

Tendo em vista a notável aproximação da memória com a história, constatadas as evidências explicitadas pelas entrevistas e documentações, parece difícil negar a historicidade de Mesquita ligada à problemática da escravidão, uma vez que a primeira referência oficial vem antes de 2006, data da certificação pela Fundação Palmares. Ao que tudo indica, a primeira referência de Mesquita, como quilombo, vem com o Relatório da Missão Cruls (BRASIL, 1994), algo muito próximo do término oficial da escravidão no Brasil.

Para a historicidade, contribui também os estudos de pesquisadores da região tais como Reis (1995), Melo (2000), Fundação Palmares (2000) e Palacin (2001). Entra no bojo desses estudiosos a obra de Carvalho (1975), o qual após ouvir os relatos de Malaquias, Etelvino de Benedito Antônio, não teve dúvida em dar o titulo de Quilombo ao documentário

que produziu. Além disso, por meio do próprio Carvalho, a pesquisa chegou ao Sr. Éverton, fundador da Associação Comercial e Industrial de Luziânia.

Outro elemento que fortalece a concepção histórico-quilombola de Mesquita é a memória oral. Com tênues alterações no formato das narrações, basicamente todos os entrevistados, em sua maioria de idosos, vincularam a história de Mesquita com o passado escravo, como resultado de um movimento de enfrentamento do sistema escravocrata.

Esses representantes da memória oral são unânimes, ao fazerem referência ao antigo proprietário de nome Mesquita, o qual é nominado João, Manoel ou José, mas sempre no tronco Mesquita. A investigação documental e bibliográfico levaram a José Correia de Mesquita. Como já demonstrado, anteriormente, Mesquita teve diversos nomes: “Fazenda Mesquita dos Pretos”, “Arraial dos Pretos”, “Fazenda Mesquita”, “Sítio Mesquita”, “Tapera do Mesquita”, “Mesquita dos Crioulos”.

Pela investigação histórica e documental, chegou-se também aos núcleos da família Mesquita em São Paulo, Minas Gerais, Pirenópolis, Ipameri e Luziânia. Isto levou à constatação da existência de certas benevolências de membros dessa família para com os escravizados, particularmente quando se tratava de filhos do senhor com a escrava. Neste caso, recebiam a alforria e propriedades.

Caso semelhante parece ocorrer em Mesquita. Conforme os testemunhos da memória oral, Maria Teixeira do Nascimento era filha de um parente próximo de José Mesquita e, por isso, foi uma das três que recebera as terras. Mas que, além disso, as três escravas eram devotas de Nossa Senhora da Abadia e, quando tomaram posse das terras, já rezavam a novena em agradecimento à libertação.

Fato é que Malaquias Teixeira de Magalhães e Etelvino, de mesmo sobrenome de Maria do Nascimento, foram os que deram continuidade à devoção. Reforça ainda a hipótese, o fato da mãe de Maria do Nascimento chamar-se Maria da Abadia, o que demonstra uma homenagem explícita à Santa.

Não obstante, a grande dificuldade está em identificar os nomes das três escravas, um nome, porém, parece convergir para uma possibilidade histórica maior - Maria do Nascimento e, junto a ela, Gertrudes e Margarida.

Mas outros nomes também aparecem com grande destaque na linhagem das escravas herdeiras: Maria Abadia e Maria Pereira. Se Maria do Nascimento tinha 15 anos em 1888, sua mãe deveria ter mais de 35. Por conseguinte, é bem provável que as duas viveram a transição da escravidão à liberdade.

Quanto à Maria Pereira, como já foi mencionado anteriormente, um dos principais rios (córrego) da localidade recebe seu nome, onde também existiu, por muito tempo, uma “ponte” chamada “Passagem Maria Pereira” a qual atualmente recebe o nome de “Ponte Quebrada”. Maria Pereira ainda é mencionada em Registro Paroquial de 1857, quando Clemente Teixeira Magalhães, Josefa Antônia da Costa e Luiza Pereira Dutra recuperaram as terras, que havia sido arrematadas pelo capitão Manoel de Souza Vasques (BRASÍLIA, 1857). Mas, não podendo, de fato, provar que elas são as escravas referidas pela tradição, pode-se afirmar que foram pessoas de grande importância para o Quilombo Mesquita.

Como fortalecimento da memória local, há alguns testemunhos externos. É o caso do policial citado em narrativa pelo E10, o qual nos anos 70 interpelava de modo afirmativo que Mesquita era um quilombo. Houve também o caso, narrado pelo E11, que um senhor recusou a comprar terras da Mesquita Castorina, a mais de 40 anos, por receio de perdê-las depois, por se tratar de terras quilombolas. Ainda como participante dos testemunhos externos, encontra- se Carvalho (1975), com o seu já mencionado documentário “Quilombo” e o próprio autor desta pesquisa. Este, que desde 1984, transita na comunidade e sempre ouviu dos moradores do local e dos vizinhos que a história de Mesquita vincula-se à escravidão, à opressão e que guarda, em si, um rico cabedal cultural o qual tenta preservar.

Entretanto, parece questionável conceber uma história totalmente linear, a partir das três escravas. Aparenta, mais factível, tratar-se de alguns grupos de escravizados tal como consta no Relatório do Incra (2011). Também Borges (1989) amplia o quadro social dos tempos de origens, mencionando que as terras do Mesquita foram doadas pelo proprietário a três escravizados - Inácio Otaviano, Delfino Pereira Braga e Bernardo Gonçalves Soares. O mais acertado talvez fosse afirmar que as terras foram ocupadas por alguns grupos de escravizados, que se espalharam pelas regiões do Mesquita, Saia Velha, Santa Maria e que são representados hoje nas famílias Pereira Braga, Teixeira Magalhães, Pereira Dutra, Lisboa da Costa e suas derivações.

Na fase final da pesquisa, surgiram alguns objetos antigos como uma moeda e um garfo; este que parece muito antigo, de tipo artesanal e sem registro de marca. Foi encontrado, acidentalmente, quando alguém fazia escavação para plantio na área do Quilombo. A moeda de 40 Réis, data de 1839. O padrão monetário Mil Réis durou no Brasil de 1500 a 1942, quando foi substituído pelo Cruzeiro (HISTORIA DAS MOEDAS DO BRASIL, 2015).

De propriedade do Entrevistado 18 (E18), a moeda foi doada a ele por seu avô, Antônio Lisboa, o qual não sendo de Mesquita, passou a morar na comunidade ao casar-se com Isidora Pereira Braga, filha de José Pereira Braga e de Maria do Nascimento. A moeda

que, segundo Antônio Lisboa, era “do tempo dos escravizados”, foi passada ao E18 na qualidade de lembrança de família. O E18, atualmente, tem 66 anos e quando recebeu o presente tinha 08 anos de idade. Como o E18 afirmou que seu avô lhe deu a moeda, já bem idoso, ou seja, com aproximadamente 60 anos de idade, podemos deduzir que ele (Antônio) nasceu por volta de 1877. Isto significa que Antônio Lisboa chegou à Lei Áurea com, aproximadamente, 11 anos de idade.

Como o E18 afirma que sua bisavó era escrava e os cálculos demonstram que seu avô tinha aproximadamente 11 anos, na proclamação da Lei Áurea, seria acertado dizer que seu bisavô viveu o tempo da escravidão praticamente por toda sua vida. E sendo assim, o E18 estaria em uma 4ª geração de escravizados.

Figura 14

Garfo antigo encontrado no Quilombo. Foto: Daiane Souza.

Figura 15

Moeda antiga guardada como herança do tempo da escravidão Foto: Wallison Pereira da Costa.

Figura 16

Moeda de 40 Réis, datada de 1839, período de plena escravidão. Foto: Wallison Pereira da Costa.