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A corporeidade e a linguagem

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Falar um idioma significa mais que a possibilidade de se comunicar nessa determinada língua, indica antes um modo de instalação em uma forma de sociabilidade. Trata da possibilidade de empreender os gestos motrícios as demais pessoas que pertencem a essa comunidade linguística, orquestrando em um dado estilo, as significações de linguagem existentes, as palavras, rumo à promoção de um movimento coerente à expressão de sentidos. A oração falada carrega uma emergência ao mundo em forma de vibração sonora, essa extensão de onda é capaz de mover os ouvintes pertencentes ao mesmo idioma a uma significação possível, pois o ato da fala é o entrelaçado de significações presentes na língua que são jogadas ao mundo em um sentido próprio (MERLEAU-PONTY, 1991).

Essa relação comunicativa advém da capacidade humana da linguagem, tema preterido até tempos recentes ao campo da reflexão e cuja definição como objeto de conhecimento não é de fácil visada. A concretude da fala trata do movimento de articulação de estruturas interpostas de caráter concreto e simbólico, dá-se como sedimentação de estruturas neuromusculares e de diferentes módulos cerebrais do corpo à acomodação daquelas existentes na cultura (MAGISTRIS; RIBEIRO; DOUGLAS, 1994).

Como vimos a respeito do corpo próprio e sua relação com o mundo na seção anterior, esse é constituído de instâncias empíricas e simbólicas que possibilitam sua existência enquanto um “equipamento psicofisiológico que deixa aberta múltiplas possibilidades” (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 257), não havendo, então, uma natureza determinante de toda a ação, mas ascendências a sua intima relação bruta com o mundo. Se por um lado o corpo é um ente biológico, sua natureza é envolta pelo simbolismo presente no meio vivido.

No homem, tudo é natural e tudo é fabricado, como se quiser, no sentido em que não há uma só palavra, uma só conduta que não deva algo ao ser simplesmente biológico – e que ao mesmo tempo não se furte à simplicidade da vida animal, não desvie as condutas vitais de sua direção por uma espécie de regulagem (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 257)

Tudo na existência humana é a junção entre natureza e cultura. As relações diretas do corpo no reconhecimento dos sentidos de mundo são envoltas de espessuras oriundas das vivências e é assim que cada elemento do real ganha

contornos próprios de uma forma de sociabilidade. É nesse sentido que Merleau- Ponty (2006a) afirma que “o que a natureza não dá a cultura o fornece.” (p. 253). O entendimento da expressividade motrícia demanda o aprofundamento a respeito das estruturas físicas que possibilitam a fala, assim como sua presença na corporeidade humana. Seguidamente a análise ruma à compreensão do envolvimento das estruturas psicofísicas pela cultura vivida.

As estruturas do corpo objetivo derivam da possibilidade evolutiva das espécies, sendo esse detentor de uma capacidade fono-articular suficiente à modulação de sons variáveis entre o grave e o agudo, a reconhecer nuanças sutis de sons entre aqueles produzidos dentro de sua espécie e de absorver do meio vivido significações e estruturas linguísticas suficientes à comunicação. O curso da evolução especializou a estrutura do corpo-humano para acomodar a possibilidade da linguagem, nascente de formas pré-linguísticas que podem ser observadas em outros grupos de animais. Dentre as possibilidades sensíveis das estruturas orgânicas, o reconhecimento de sons garantiu à espécie a facilitação de reconhecer perigos, presas, assim como a passagem de mensagens diretas de menor complexidade, como o urro de um primata bonobo aos seus iguais (FERNALD, 1992).

Tal especialização leva a uma nova organização dos membros desse grupo, cuja adaptação ambiental se dá no duplo movimento, primeiro, o sujeito assume as exigências do meio, se sujeita à pressão adaptativa que leva o organismo a direcionar- se a posição mais adaptada no ambiente, o entendimento de sons é necessário à sobrevivência, àqueles dos membros do bando emanam indicações de avisos de perigo, ajuda etc. outros de fora do bando revelam a necessidade de atenção. O segundo movimento é a adaptação do meio ao sujeito, a postura mais adaptativa leva a mudança do meio, caso ofereça pressão suficiente, a facilitação possibilitada pelo reconhecimento de sons promove a maior chance de sobrevivência da espécie. Há a alteração do meio ambiente quando uma espécie passa a uma melhor adaptação ao meio, essas mudanças podem conduzir alterações tanto nas espécies que predam os pertencentes do bando, como possibilitam mudanças no modo de se obter o alimento no meio. O corpo humano é resultante do longo processo do curso evolutivo, desse modo não somente a possibilidade comunicativa, mas todas as possibilidades corpóreas foram forjadas em meio e esse movimento de confluência com os outros no meio vivido, a fala é consequência dos gestos comunicativos sincréticos de menor complexidade que implicaram, em determinado momento do curso evolutivo, na

constituição de formas mais complexas de sons cujo valor social se estruturaram na forma de sociabilidade que temos como a língua.

Não se deixa de notar aqui que o aumento do grau de complexidade que as estruturas orgânicas passam no curso evolutivo se dá por um aprofundamento de suas possibilidades de sentir o mundo, assim como os demais entes existentes no entorno. A situação vivida conjuga o curso de ação de todos os animais, os comportamentos são modelados segundo a complexidade corpórea. Mesmo nos animais que produzem sons com certo alcance comunicativo, a presença desses só condiz com as possibilidades do momento presente.

A estrutura corpórea, no que tange a linguagem, depende de diferentes estruturas do corpo para a consolidação do ato de falar, este se trata de um processo fono-articulatório complexo que envolve diferentes áreas ligadas ao SNC (Sistema Nervoso Central), da neuromusculatura, além de estruturas periféricas (MAGISTRIS; RIBEIRO; DOUGLAS, 1994). Essas são tomadas de suas funções centrais dada intencionalidade de ato rumo à realização da fala (MERLEAU-PONTY, 2006b). Essas estruturas são reorganizadas para a fonoarticulação de modo que mesmo uma atividade vital básica como a respiração se dá de forma mais lenta durante a expiração, uma vez que o controle da expulsão de ar é a fonte geradora do som (MAGISTRIS; RIBEIRO; DOUGLAS, 1994). O volume de oxigênio disponibilizado pelos pulmões é convertido em energia nas cordas vocálicas para a produção de sons (MAGISTRIS; RIBEIRO; DOUGLAS, 1994). A laringe é estrutura orgânica central para a produção da fala, pois ai se dá a fonação pelas pregas vocais, delicado conjunto de cartilagens que atingidas pelo ar assumem uma posição paralela e tensa conforme a natureza do som pretendido, consonante a esses atos a cavidade supra-glótica, a faringe, as cavidades nasal e oral tem função ressonadora e sincronizada com a possibilidade valvular e de ampliação do fluxo aéreo proporcionadas pelos movimentos mandibulares e dos lábios, da presença dos dentes, além do palato duro e mole (IBIDEM). Todas essas estruturas fisiológicas são essenciais à produção física da fala, todos os sons presentes nos fonemas existentes em todas as línguas obviamente dependem da possibilidade dessas estruturas serem capazes de realiza- lo, dado esse ponto não se percebe mesmo na atualidade diferenças corpóreas entre os falantes de uma ou outra língua, mas existe sim uma maneira própria de cada comunidade linguística em utilizar os fonemas presentes em seu estilo de linguagem,

o que por vezes pode levar a mínimas alterações na estrutura fonológica no curso da vida dessas pessoas que pertencem a essa comunidade.

A conjuntura cerebral envolvida na produção da fala encontra igual pressão e refinamento que o conjunto das estruturas físicas envolvidas nesse processo. Apesar da presença da alta sociabilidade nas espécies de que deriva a espécie humana, a especialização do cérebro suficiente para o desenvolvimento e acomodação da linguagem levou milhares de anos para esse acontecimento. O curso histórico da linguagem tem raízes na sociabilidade baseada na utilização de sinais gestuais e sonoros de menor complexidade e que passa a novos e mais complexos usos linguísticos, como a própria presença da palavra como significação, o sistema de relações aumenta sua complexidade e a exterioridade passa a influir sobre o todo da espécie.

A amplitude dessa potência expressiva conduz outras possibilidades simbólicas que passam a pressionar o corpo a um sentido que enlaça o natural e a cultura nascente; as simbolizações sociais também pressionam o organismo a desenvolver-se, pois essa instancia pertence ao meio vivido. Esse sentido não pode ser entendido como uma instância empírica, não se trata tão somente do corpo ou da ação que ele realiza na produção de seu simbolismo, o fenômeno vivido de pressão do corpo à sedimentação da linguagem é uma maneira própria de cada povo de

“celebrar o mundo e finalmente vivê-lo” (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 255).

As regiões do cérebro que comportam a linguagem se desenvolveram no ato de socialização dos seres, num movimento que extrapola o entendimento que tira da ação a possibilidade de impacto no curso evolutivo. A fala carrega a potência de levar sentidos mais complexos aos outros seres por meio da comunicação direta e essa mesma potência é o que provavelmente tornou a própria pessoa-humana a mais importante presença que compõe seu meio ambiente, pois sua ação em grupo foi capaz de superar as adversidades presentes no meio. A subjetividade presente na fala releva os seres e suas necessidades uns aos outros.

O suficiente amadurecimento das estruturas fonoarticulatórias e do córtex cerebral possibilitou a regulação suficiente para a organização da língua e o nascedouro da linguagem como a conhecemos. O controle neural é composto por diversas áreas, em especial a área de broca, a região temporal de wernicke e a região terciária. A primeira articula a ação motora da fala, sua execução se dá pela área motora pré-central, as porções inferiores a essa estrutura controlam também as

funções autônomas da garganta, já a porção superior controla a língua, a mandíbula, os lábios e a vocalização (IBIDEM). A região de Wernicke localiza-se no lobo temporal, logo abaixo do sulco longitudinal, essa região articula a associação auditiva e sensorial, compreendidas também no giro angular e supramarginal do lobo parietal. No lobo frontal é onde está localizada a região terciária, essa compreende funções parecidas com as descritas anteriormente e relaciona mais com atividades categoriais como contar, escrever ou determinar objetos. Assim como ocorrido com o aparelho fonador, o conjunto cerebral que articula a linguagem é de tamanha complexidade que se percebe diferenças na irrigação sanguínea no cérebro conforme a realização de diferentes atividades relativas à linguagem (IBIDEM).

A fala é uma possibilidade adquirida pela maturação e prevalência de estruturas orgânicas pressionadas no meio vivido no sentido de se comunicar. A isso cabe dizer que o corpo-humano é disposto à comunicação, a expressar-se, sua condição de ser no mundo o direciona a sua relação ao meio e aos outros. Contudo, compreender o humano como ser ao mundo implica em não restringir a entendimento do corpo às suas bases orgânicas, mas adentrar as espessuras vividas e aos movimentos espontâneos presentes em sua expressividade. A trajetória até aqui realizada nos apresentou o corpo objetivo em sua relação com o meio de modo a apontar sua disposição à potência comunicativa da fala, uma disposição que é ancorada nas potências dessa estrutura orgânica, mas que não alcança todas as possibilidades da corporeidade.

O entendimento objetivista busca de diferentes modos costurar os recortes que promovem na produção de seus conhecimentos, entretanto, a cisão realizada conduz a percepção passiva do corpo enquanto um animal plenamente determinado e sem espaços à quaisquer escolhas (MERLEAU-PONTY, 2006a). Se assim o fosse, poderíamos considerar que mesmo o estudo da astrofísica ou dos estudos literários seria contingente às necessidades da biologia do corpo e esse entendimento é pelo menos em parte absurdo. Tal como exposto, parágrafos acima, a natureza e a cultura encontram no corpo um profundo entrelaçamento, não existe nada que seja eminentemente cultural ou natural no humano. A mera busca pela delimitação de certos gestos a uma ou outra perspectiva cai na dúbia posição de se preconizar movimentos impossíveis à base orgânica ou a não importância de se compreender a diferença de certos gestos presentes em sociabilidades diversas (MATTHEWS, 2010). É possível o movimento distanciado às urgências básicas do organismo, ainda que

temporariamente, os sentidos são percebidos com certa autonomia pelo sujeito, a liberdade é sempre relativa à situação vivida (LANDES, 2013).

A linguagem só pode ser compreendida na corporeidade a partir da consideração de seu sistema como todo. As estruturas do corpo objetivo não são suficientes para o entendimento da existência de diferentes modos de sociabilidade, de línguas tão diferentes, ou mesmo da importância da língua materna à conjuntura do corpo. A confluência presente na absorção da língua deve reconhecer a importância do simbólico para a expressividade. Seguimos as descrições a partir dessa perspectiva.

Compreender o simbólico implica certo afastamento das condições empíricas em direção ao fenômeno da linguagem tal como ele é vivido. As pessoas falam e isso presume na corporeidade a potência para essa realização, a linguagem é um fenômeno presente entre pessoas que possuem diferentes possibilidades motrizes e demanda gestos e entonações diferentes entre as línguas existentes. Percebe-se que a linguagem carrega em sua expressividade a potência de alcançar outros que compartilham de suas significações. Merleau-Ponty (2006a) nos explica que “a fala é

a única, entre todas as operações expressivas, capaz de sedimentar-se e de constituir um saber intersubjetivo” (pp. 257-258).

A intersubjetividade é a possível dada à inserção de todos os entes no mundo da vida, a existência permite aos seres sensíveis a estar além da condição de simplesmente compor o espaço, mas também de percebê-lo, de afetá-lo e recursivamente ser afetado por ele (MERLEAU-PONTY, 2006a). O contato com o outro é possível por meio das espessuras culturais e sociais presentes nas estruturas de mundo comungadas entre as pessoas (HUSSERL, 2008). Essas estruturas encontram-se sempre presentes no campo fenomenal. O mundo da vida é composto de todos os mundos possíveis e todo o objeto nele presente é tangido por essa subjetividade transcendental, que ainda que não seja determinada por alguém, pode ser reconhecida como produto da intencionalidade de outrem (LANDES, 2013). É pela possibilidade de reconstituir a intencionalidade alheia que se compreende a subjetividade transcendental, a corporeidade permite compreender as urgências dos outros e retomar seus movimentos e empregos de determinados elementos de mundo presente, ainda que aparentemente seus modos de expressar sentidos sejam distantes ou pareçam equivocados se comparados aos próprios (MERLEAU-PONTY, 2006a).

Para que a palavra possa significar por si e ter alcance intersubjetivo é necessário que ela pertença para aquele que a expresse e aqueles que a escutem, acima disso ela deve estar incluída no sistema de mundo de uma comunidade linguística (MERLEAU-PONTY, 2006a). A palavra é assim um sentido presente dentro do forro de significações que é o idioma, esse existe como engajamento de uma intencionalidade constituída através do tempo. A palavra é herdeira da intima relação de como o mundo é absorvido pelos sentidos, sua própria existência já expressa uma interpretação do mundo segundo determinada lógica pré-reflexiva e essa é orientada pelo modo como se percebe os gestos presentes no entorno e o poder de sua significação (MERLEAU-PONTY, 2006a, LE BRETON, 2016). Assim, a “fala é integralmente motricidade e integralmente inteligência.” (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 264).

As palavras são compreendidas no mundo da vida, tal como os demais objetos de mundo, como objetos falantes pertencentes a uma cultura (MERLEAU-PONTY, 2006a). O sentido vivido da palavra é dado pela orientação que ela encarna dentro de uma cultura, suas indicações sempre estão relacionadas a certo “prisma significante” (LE BRETON, 2016, p. 31), que abre os termos em suas possibilidades de significação conforme a situação e a aliança entre as demais palavras presentes no ato comunicativo.

O movimento comunicativo se dá no emprego da motricidade corpórea em direção a composição da fala, organizada a partir das significações comungadas com o outro, mas embasadas pela intenção que rege o sentido daquilo expressado. As palavras são colocadas sob esse prisma da intencionalidade de ato, o movimento é a expressão da urgência vivida, mas alinhavada pelas significações culturais e sociais dentro da situação (MERLEAU-PONTY, 2006a). Merleau-Ponty chama de deformação coerente o deslocamento de termos de sua significação constituída rumo ao alcance de um sentido; Na fala essa deformação ocorre no curso de se comunicar algo, pois frequentemente as palavras não se encontram em sua significação constituída, mas em uma variação de sentido que é compreendida por encontrar-se dentro de uma gama possível ao termo (LANDES, 2013; MERLEAU-PONTY, 1984) A disponibilidade motrícia encontra-se em igual importância entre o falante e o ouvinte, se no primeiro a fala é expressão e demanda o ato como direcionamento ao mundo, o ouvinte interpreta essa expressão tal como essa se encontra no mundo, é exigido de ambos um movimento positivo rumo à realização da comunicação.

A escuta demanda uma atitude positiva que reencontra na ambiguidade das significações adquiridas e no momento vivido o sentido expresso pelo outro. As significações iluminam o corpo do ouvinte em certo sentido, pois as intenções vividas pelo outro são possíveis de serem vividas e cogitadas pela corporeidade que compreende a fala alheia, suas intenções ensinam o corpo do outro as próprias. Desse modo o movimento é compreendido entre as possibilidades vividas pelo outro e que são possíveis no corpo próprio, por meio desse contato no mundo vivido as subjetividades se comunicam e consagram a intersubjetividade vivida.

Acolher a fala do outro é possível, pois “tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitassem o seu. O gesto que testemunho desenha em pontilhado um objeto intencional” (MERLEAU-PONTY, p. 251). É pelo engajamento do sujeito no mundo que habita, por sua participação nele, que cada objeto significa algo e assim se considera o “sujeito encarnado” (MERLEAU-PONTY, p. 252). Presente entre as coisas que coexistem consigo, que o afetam e são afetados por ele em função de sua sensibilidade e comunhão com o mundo. Assim, “a carne é o caminho de abertura ao mundo (...) Sentir é ao mesmo tempo desdobrar-se como sujeito e acolher a profusão exterior” (LE BRETON, 2016, p. 25). A corporeidade absorve o mundo da vida e suas espessuras, formando a si mesma conforme sedimenta essas estruturas no arco intencional, nesse modo próprio de vivenciar a sensibilidade no ato de perceber.

A percepção do real apreendida no campo fenomenal se dá a partir de que cada elemento compõe parte de uma totalidade em que “cada coisa é não apenas inseparável das outras, mas de alguma maneira sinônima das outras, em que os “aspectos” se significam uns aos outros em uma equivalência absoluta” (MERLEAU- PONTY, 2006a, p. 433). Cada elemento presente em uma percepção faz parte de seu todo, seja como figura ou como fundo, em si, exatamente por que estão presentes certas figuras sobre certo fundo é que a significação dessa percepção ruma determinado caminho, as orações expressas estão sempre aliadas a certo contexto, do mesmo modo que um livro não pode ser entendido por citações, mas na compreensão de seu todo. A palavra é a própria expressão do sentido que significa, mas sua presença diante de certo contexto, entonação ou humor lhe rouba seu entendimento habitual e a imanta em outras direções (IBIDEM). Assim a palavra já não está ligada a sensação ou vivência que lhe é originária, mas conduz ao sentido

que se pretende expressar. A situação engaja a palavra dita no presente e é exatamente isso que leva a encarnação do sentido no instante vivido.

A língua é assim voltada para o presente vivido, ainda que possa permitir certos deslocamentos de tempo por meio da retomada de uma narrativa já vivida ou apreendida no meio social, ou mesmo do exercício da imaginação.

A função do corpo na memória é aquela mesma função da projeção que já encontramos na iniciação cinética: o corpo converte certa essência motora em vociferação, desdobra o estilo articular de uma palavra em fenômenos sonoros, desdobra em panorama do passado a atitude antiga que ele retoma, projeta uma intenção de movimento em movimento efetivo, porque ele é um poder de expressão natural. (MERLEAU- PONTY, 2006a, pp. 246-247)

A mera gestualidade das palavras, ainda que no silêncio da fala professada, já implica em movimento de corpo que acontece segundo o estilo da língua vivida. Os modos de viver a sensibilidade, assim como dos hábitos sociais, os jogos, as estruturas de linguagem e as palavras se constituem no curso da história de uma cultura. A corporeidade é tangida pelo simbolismo presente no mundo e as consequências da síntese desses sentidos na existência encontram-se na própria formação da pessoa e por seu modo de perceber o entorno.

Junto a Le Breton (2016) compreendemos que:

se as percepções sensoriais fazem sentido, cobrem o mundo de referências familiares, é porque elas se alinhavam às categorias de raciocínio próprias à forma com a qual o indivíduo singular se adequa ao que ele aprendeu de seus

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