• Nenhum resultado encontrado

A fenomenologia e o compromisso com o conhecimento

No documento Download/Open (páginas 45-48)

A fenomenologia é uma corrente de pensamento epistemológico-ontológico57

que visa sedimentar o contato das ciências e da própria filosofia ao mundo de onde todo o conhecimento produzido por essas têm sua origem. Mas qual a importância dessa filosofia que se propõe como um a priori à ciência em geral?

Para se encontrar essa resposta é necessário retomar o curso de seu nascimento presente nas preocupações de Edmund Husserl em relação às ciências de sua época. Husserl nasceu em Prossnitz no ano de 1859, membro de uma família judia liberal, mas converteu-se ao luteranismo ao longo de sua formação nas ciências matemáticas em Leipzig58 (1876), mudou-se para Berlim para estudar com grandes

nomes da matemática da sua época (Kronecker e Weierstrass), doutorando-se em Viena (GOTO, 2008).

Após o doutoramento passou a interessar-se mais pela filosofia por seu contato com Franz Brentano59.

Husserl foi inspirado pelo conceito de Brentano de psicologia descritiva. Brentano acreditava que a psicologia, por meio da percepção interior da evidência, poderia assegurar saberes e identificar as leis universais que regem a realidade física.60 (COHEN; MORAN, p.54)

Essa perspectiva apresentada por Brentano de que a filosofia deveria ser compreendida como uma ciência exata toca Husserl de modo que seu interesse por

57 Entende-se por ‘epistemológico-ontológico’ uma linha de conhecimento que não se ocupa apenas do

que é o conhecimento em si, mas do que ele é para o ser que possui esse conhecimento.

58 Em seus anos em Leipzig, Husserl estudou filosofia com Wilhelm Wundt, o pai da psicologia

experimental e fundador do primeiro laboratório de psicologia experimental.

59 Franz Brentano (1838 – 1917) foi um filósofo psicologista que se interessou por temas como a

intencionalidade da consciência e o como a psique fundava os conhecimentos.

60“Husserl was inspired by Brentano’s conception of descriptive psychology. Brentano believed that

psychology, through inner perception with evidence, could secure certain knowledge and identify universal laws governing the physic realm.”

encontrar modos para se alcançar uma verdade apodítica61 acompanhou toda a sua

vida e obra62.

A produção de conhecimentos encontrava-se, nos tempos de Husserl, emaranhada pela influência do empirismo inglês63, sendo “vinculada à produção

psíquica do saber” (GOTO, p. 51). O psicologismo64 tornava os saberes reféns de uma

realidade psíquica a qual retirava os próprios conhecimentos do mundo de onde eram originados. O erro entendido por Husserl no psicologismo é a naturalização da consciência humana (CAPALBO, 2002)

Do mesmo modo, o objetivismo65 logicista, a outra tendência filosófica da

época, acabava por produzir saberes a partir da categorização das propriedades dos objetos presentes no mundo. Capalbo nos explica que o risco do logicismo é a criação de uma “esfera de verdade intrínseca, sem contato com a vida do cientista ou do

filósofo” (p.15), ou seja, uma verdade desconectada do mundo. Esse modelo aliena

tanto a participação humana como cada conhecimento produzido um dos outros, recaindo na produção do conhecimento pelo conhecimento.

As ciências empíricas preocupam-se com a explicação dos fatos, com o esmiuçar dos elementos de mundo, sem ocupar-se da sustentação de seus pressupostos. Assim, essas mesmas ciências caem em um risco tautológico66 de

explicitar seus pressupostos pelos objetos que explicitam e não por seu contato com a realidade, a própria razão científica que a produz.

61 A verdade apodítica é apresentada por Cohen e Moran (2012) como “o mais elevado grau da

evidência ou da auto-evidência” (p. 35) [“the highest level of evidence or self-evidence”]. O termo

significa ‘aquilo que pode ser demonstrado’ e foi utilizado tanto na filosofia para expressar o que é verdadeiro, assim como na lógica matemática. Na fenomenologia a “apodíticidade caracteriza o modo

de se dar do objeto na consciência” (COHEN; MORAN, p.35) – [“apodictcity characterizes the mode of givenness of the object in conscience”], isso implica que nada que surge na consciência como

conhecimento pode ser entendido como falso ou desprezível.

62 Husserl dedicou-se ao desenvolvimento da fenomenologia por toda a sua vida. O filósofo morreu aos

79 anos em 1938. Foi professor nas universidades de Halle, Göttingen e Fribourg.

63 O empirismo inglês foi um movimento filosófico surgido na era moderna a partir do esforço e

compromisso de que o conhecimento deveria ser produzido a partir da identificação das evidências obtidas por experimentação. A base empirista da filosofia tem como uma das suas mais marcantes a constituição do método científico.

64 Conforme Cohen e Moran (2012) o psicologismo é uma perspectiva que assume as produções de

conhecimento, como a matemática e a lógica, redutíveis ou dependentes do pensamento e das leis da razão.

65 O objetivismo é compreendido o posicionamento filosófico ou científico que presume o mundo natural

e a consciência como um conglomerado de propriedades objetivas sem qualquer preocupação com a participação constituinte da subjetividade (COHEN; MORAN, 2012).

66 O termo tautologia significa explicar algo a partir do objeto explicado. O termo deriva do grego tauto

significa “mesmo”, somado de logos que significa “pensamento”, alcançando essa noção de algo que se pensa a partir de si mesmo.

A insatisfação com o modo de produção de conhecimento em sua época conduziu Husserl ao empreendimento que ultrapassaria “tanto o empirismo positivista quanto o racionalismo idealista” (CAPALBO, p. 14), por meio do desenvolvimento de uma “teoria das teorias, para a lógica pura, para a psicologia e para a teoria do conhecimento em geral” (GOTO, p. 49).

O pensamento husserliano nutriu-se dos estudos desse psicologismo e das críticas dos logicístas a essa doutrina. Husserl sustenta-se em nossa percepção por meio dos sentidos, tal como ela é vivida como um “começo bom” para se compreender a formação do conhecimento (JOSGRILBERG, 2015, p. 08). Ao se partir desse começo bom, foi satisfeita a condição da ausência de pressupostos para se encontrar a cientificidade dos saberes de mundo (CAPALBO, 2002).

Husserl nomeou como “princípio dos princípios” (p. 127) a possibilidade de se ter diretamente contato com a materialidade dos objetos a partir do modo como ele é apreendido na consciência, pois esse modo de intuição do objeto o tem tal como ele é (MORAN, 2002). A própria percepção do objeto já possui aspectos de uma cognição, é um conhecimento no contato vivido com o objeto.

O conhecimento nasce entre a objetividade do mundo e a subjetividade vivida, pois as coisas são sempre percebidas por uma consciência e vice-versa, cada objeto é percebido por suas peculiaridades próprias (SAN MARTÍN, 1987 apud GOTO, 2008). Esse elo entre a objetividade e a subjetividade é nomeado por Husserl como o

a priori da correlação67.

Com esse a priori da correlação os dualismos presentes nas ciências encontram-se superados, uma vez que radicalmente a objetividade e a subjetividade são assumidas como participantes na constituição dos objetos no mundo. Esse é o eixo da fenomenologia.

Do princípio ao fim da obra husserliana (e para além dela), a fenomenologia é uma filosofia da origem do conhecimento por sua própria estrutura lógica no mundo, apreendida por uma consciência que a percebe e a constitui. Nas palavras de Capalbo, a “fenomenologia transcendental de Husserl se caracteriza como uma filosofia que retorna à subjetividade, considerada como o último fundamento das formações objetivas de sentido e de clarificação de todos os problemas de validade” (p. 16).

Esse enraizamento na estrutura material do mundo e na estrutura sensível dos sentidos corpóreos, cujo entrelaçamento ascende por seu contato na forja do sentido vivido, é o próprio estatuto que garante à fenomenologia seu espaço primeiro na produção de saberes.

Conforme Zilles, a “particularidade da filosofia (...) está no fato de não ser uma disciplina especifica entre outras, mas abrange ‘os problemas fundamentais e metódicos de todas as ciências positivas como ciência dos fundamentos” (p.17). Sua participação é aliada ao compromisso de não se deixar o mundo por posturas cientificistas. Trata-se, nas palavras de Merleau-Ponty, de ser:

uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê- las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico. É essa a ambição de uma filosofia que seja uma “ciência exata”, mas é também um relato do espaço, do tempo, do mundo “vividos.” (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 01).

O compromisso fenomenológico com o conhecimento e a verdade, com o sentido do conhecimento na existência, eleva essa filosofia a ser uma disciplina singular dentre as demais. Uma filosofia da consciência constituinte que se ocupa do ser de todas as coisas, do conhecimento, do si próprio e do mundo.

No documento Download/Open (páginas 45-48)