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Para Cecarelli (2010), regular sobre o prazer é uma ação que parece ser inerente ao trabalho de cultura (Kulturarbeit), para que a coesão dos grupos seja mantida. Todavia, sempre foram prerrogativa das elites dominantes, da religião e do Estado, os discursos sobre a “normalidade”, daquilo que pode ou não patologizá-la. Desse modo, nas sociedades em que a religião tem o controle, são os sacerdotes, inspirados pelos deuses, que ditam as normas de conduta aceitáveis e as patológicas; assim, as referências eticomorais a serem seguidas são ditadas e controladas pela religião. Entretanto, com a secularização da visão do mundo, a ciência substituiu a religião e o ideal passa a ser a objetividade.

A partir desse pressuposto, são lançadas as bases para a patologização da normalidade, em que o saber “científico”, carregado de ideologia normativa, é utilizado para transformar singularidades em anomalias e atos espontâneos em desvios. Logo, valendo-se das nomenclaturas propostas pelo Manual Diagnóstico e

Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)36, adotadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a “ideologia científica” busca inventariar os problemas psíquicos a fim de prescrever o tratamento adequado. A partir delas, ser anormal é uma patologia, cuja avaliação é ditada pelo DSM, que prescreve os limites e as regras de conduta aos quais se deve responder. Portanto, ao se mudar a definição de padecimento, novas “doenças” surgem. Para se ter uma ideia, entre 1987 e 1994, o DSM-IV introduziu 77 novas doenças mentais: a timidez passou a ser uma “fobia social”; o regurgitar normal dos bebês tornou-se o “refluxo esofágico patológico”; a senilidade, uma “insuficiência da circulação cerebral”; e a expressão “traumatismo do bilhete que perde” é utilizada para quem se preocupa por não ter ganhado na loteria.

Para Olmo (1990), os estereótipos servem para organizar e dar sentido ao discurso em termos dos interesses das ideologias dominantes. Então, no caso das drogas, oculta-se o político e o econômico, dissolvendo-os no psiquiátrico e no individual. Em decorrência, mostra-se útil estabelecer a polaridade entre o bem e o mal para o discurso se manifestar pois, o sistema social necessita criar consenso em torno dos valores e normas que são funcionais para sua conservação. Assim, a autora cita os estereótipos propostos por Zorrilla37 ao falar da função deles como fator de coesão e de consenso:

a) o estereótipo médico, mais especificamente o “estereótipo da dependência”, sendo que o problema se centra concretamente na saúde pública. É criado pelo discurso médico (produto da difusão do modelo médico sanitário), ao considerar o drogado um "doente" e a droga um "vírus", uma "epidemia" ou uma "praga";

b) o estereótipo cultural, criado pelo discurso dos meios de comunicação ao chamar o consumidor de “drogado” e apresentá-lo como "o que se opõe ao consenso", independente se é rico ou pobre (estudante ou desempregado), mas sempre "jovem";

c) o estereótipo moral difundido pelo discurso jurídico (produto da difusão do

modelo ético-jurídico), que qualifica o usuário como "viciado" e "ocioso"

36 Em inglês: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM.

37 ZORRILLA, Carlos Gozález. Drogas y cuestión criminal. In: ROBERTO BERGALU, JUAN BASTOS

(segundo o caso), e a droga de "prazer proibido", "veneno da alma" ou "flagelo".

Para a autora, estes estereótipos dirigem-se fundamentalmente ao consumidor. Eles se reforçam com o discurso jurídico que designa todas as drogas agrupadas em estupefacientes e psicotrópicos, assim como quem as consome e as trafica, como “perigosos”, minimizando suas importantes diferenças. Ao mesmo tempo, legitima a diferença "entre o bem e o mal” ao declarar ilegal apenas a conduta que tenha a ver com a droga definida por esse mesmo discurso como ilegal, "não por suas qualidades farmacológicas, mas porque se percebe como ameaça sócio-ética, apesar de no fundo a razão real de sua ilegalidade ser econômica" (OLMO, 1990: 24).

Olmo (1990) assinala também a existência do estereótipo criminoso (político- criminoso), presente desde que existem legislações sobre drogas, e que recorre a um quarto discurso, o político, para legitimar-se com discurso jurídico (produto da difusão do modelo geopolítico). Nesta perspectiva, a droga é vista como "inimiga", e o traficante – objeto central de interesse deste discurso ― como "invasor", "conquistador", ou mais especificamente como "narcoterrorista" e "narcoguerrilheiro". Então, o traficante pode ser um país e não mais um indivíduo. E, isto explica porque o discurso político-jurídico (geopolítico) foi bastante difundido na década de oitenta no continente americano ao concordar com os postulados da Doutrina de Segurança Nacional, e os incorporar não só como elemento teórico legitimador, mas também como metodologia de ação.

Desse modo, para Olmo (1990), a eliminação da fronteira que separa a guerra contra a subversão daquela contra a criminalidade comum é uma característica do discurso da droga e de seu controle, o que é confirmado por Mendez (1986: 183):

No caso da periferia, a involução autoritária se manifesta na incorporação dos postulados da Doutrina da Segurança Nacional, tanto como elemento teórico legitimante, como uma metodologia de ação no campo do sistema de justiça penal, que traz como consequência a tendência à eliminação das fronteiras que dividem a guerra à "subversão" da guerra à "criminalidade comum" (Tradução do autor).

Outra questão que agrava a situação, segundo Olmo (1990), é a difusão de um mesmo discurso universal e a-histórico sobre “o problema da droga”, como se a condição de cada país e de cada droga fossem semelhantes. E, mais, como se os

condicionantes estruturais dentro de um mesmo país fossem estáticos e nada tivessem a ver com o tema. Nesta linha, a autora salienta que a partir da II Guerra Mundial foram os organismos internacionais, particularmente a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU), que contribuíram para universalizar os diversos modelos ― com seus respectivos discursos sobre as drogas proibidas e suas características. E, os Estados Unidos o seu difusor fundamental no campo internacional.

Deste modo, a primeira organização internacionaliza o discurso médico e a segunda o discurso jurídico; a OMS, fundamentalmente por meio de seus informes técnicos elaborados por especialistas da medicina e da farmacologia, e a ONU, não só através de suas comissões de Especialistas (muitos das ciências médicas, mas também juristas), mas, principalmente com a promulgação de seus diversos convênios e protocolos e a criação de uma série de organismos encarregados de sua aplicação.

Nessa direção, Garcia (2017) pergunta se toda guerra implica na declaração de um inimigo, quem seria o verdadeiro inimigo da guerra as drogas? Para então destacar o ocultamento discursivo de se tentar desumanizar o ponto de partida, ao falar-se de que a droga é o inimigo, que ela é o grande mal que precisa ser exterminado. Portanto, para o autor, a disposição discursiva desse combate é um mascaramento, pois não é contra a droga que se luta, já que quem sofre a repressão estatal não é a droga, mas as pessoas que são alvo dessa política: o comerciante de drogas ilícitas colocado no patamar mais alto de periculosidade, da figura danosa, causador de todo o mal. Desse modo, ele é construído como inimigo: “Trata-se da construção de um inimigo enquanto um sujeito não merecedor de sua humanidade, sendo levado a uma condição de bestialidade. É o monstro que vive entre nós e que deve ser exterminado” (GARCIA, 2017: 198).

Portanto, para este autor, trazer a questão para o direito penal é acreditar que o combate não se realiza no nível médico, no nível da saúde, dos direitos humanos ou de qualquer outro tipo de direito (à cidade, à moradia, ao emprego). Isso porque o direito penal está preocupado com a responsabilização, com o castigo e com a punição e não com a recuperação de viciados, com o tratamento dos envolvidos, com a família. Então, no caso de repressão às drogas, essa não é somente uma questão de encontrar o criminoso e puní-lo, mas também de se criar uma sensação

de batalha para aqueles que, de forma estigmatizada, encontram-se na condição de inimigo.

Assim, para as classes demandantes da guerra às drogas, cria-se a sensação de insegurança e para as classes alvos, a sensação de terror. Por isso, o aparato político propício para tratar dessa situação é a militarização da força policial. Por conseguinte, a questão militar faz referência, de um lado, à “existência de corpos políticos institucionalizados e armados, cujas funções e objetivos estão estreitamente ligados à gestão dos territórios, das pessoas e das coisas por um aparelho central que os dirige, o Estado (SANTOS, 2011: 124).

Por outro lado, estes corpos políticos militares apresentam um ethos, que se concretiza com a construção de valores políticos e culturais a partir de canções, estratégias e símbolos (”faca na caveira”, por exemplo). Para tanto, desde a formação o policial aprende a cultura da guerra, mesmo sabendo que o inimigo é um cidadão do país que irá teoricamente defender. Logo, a crítica à formação da polícia implica no reconhecimento de que qualquer estrutura de guerra, consequentemente militar, somente se justifica quando há um inimigo a ser combatido.

Conforme Carvalho (2006), a guerra às drogas com o processo de naturalização da exceção inverte o sentido originário do direito penal e das instituições jurídicas, com a minimização de direitos e garantias a determinadas (não) pessoas, adquirindo feição eminentemente punitiva. E, é desse modo que o discurso liberal que sustenta o direito penal como freio do poder estatal se perde. Assim, a consequência efetiva da guerra as drogas se dá mais no nível social do que precisamente no combate ao tráfico e ao consumo: “É facilmente visível a tragédia na vida das pessoas atingidas pela mão de ferro do estado penal. Ao mesmo tempo são bastante obscuros os números que demonstram a motivação original dessa política repressora” (GARCIA, 2017: 203). Mas, qual a origem de tanta repressão e “guerra às drogas”?