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2.1 LÓGICA DA INIMIZADE COMO FUNDAMENTO DO PODER PUNITIVO

2.1.4 O punitivismo

Paralelamente à produção de tranquilidade mediante o mero ato de promulgação de normas destinadas a não serem aplicadas, também existem outros processos de criminalização em decorrência da introdução de novas normas penais

com a intenção de promover sua efetiva aplicação. Trata-se de processos que produzem normas penais que são aplicadas ou o endurecimento das penas de normas já existentes. Conforme leciona Meliá (2012), a novidade deste processo de criminalização é a de que na hora de reclamar a intervenção do Direito Penal, isso se realiza através de um consenso esquerda-direita, sem se considerar as coordenadas políticas tradicionais: esquerda política demandas de descriminalização/direita política demandas de criminalização.

Então, há uma mudança de atitude no que tange à esquerda política, de uma linha que identificava a criminalização de determinadas condutas como mecanismos de repressão para a manutenção do sistema econômico-político de dominação, para outra que descobre as pretensões de neocriminalização especificamente de esquerda: delitos de discriminação, delitos em que mulheres são vítimas maltratadas. Nessa direção, tem-se apreendido o quanto proveitoso pode ser o discurso law and order (lei e ordem), antes monopolizado pela direita política. O resultado disso, para Meliá (2012), é uma situação em que ninguém está disposto a discutir, verdadeiramente, questões de política criminal no âmbito parlamentar, em que a demanda indiscriminada de maiores e mais eficazes penas já não aparece como tabu político para ninguém.

Assim, no que se refere à realidade do direito positivo no marco da luta contra a criminalidade, a tendência atual é a de se reagir com firmeza dentro de uma gama de setores a serem regulados através de um incremento das penas previstas. Logo, se desenvolve uma cruzada contra malfeitores cruéis, mais “inimigos” no sentido pseudorreligioso do que na acepção tradicional militar. Bauman (2005) destaca que a partir de finais dos anos 1970, quando o Estado não mais poderia cumprir sua tarefa de minimizar os impactos do mercado e assistir a todos (produtivos ou não), houve um recuo do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos. Então, naturalmente, isso desencadeia uma crise de legitimidade desse Estado, pois se questiona a necessidade do Estado sem o bem-estar-social. A resposta dada, segundo Rodrigues (2008), foi a reafirmação de sua razão de ser através do provimento da segurança pessoal e da ordem social. Isso, do ponto de vista doméstico, significa evitar a sublevação das hordas de “lixo humano” pelos confinamentos ampliados: a) as prisões; b) o campo de refugiados; c) as favelas. E, do ponto de vista internacional, trabalhar para que o terrorismo ― a “grande ameaça” atual ―, não agisse. Por conseguinte, para Wacquant (1999), a contraface

do enfraquecimento do Estado de Bem-Estar Social é a sua substituição por um Estado Penal. Para Zaffaroni (2013a), esse novo rosto do sistema penal estadunidense oferecido como modelo mundial tem recebido várias denominações como “neopunitivismo” (newpunitiveness), “punitivismo vindicativo”, “populismo penal”, “terrorismo midiático”, “pânico moral”, “nazismo penal”, “populacherismo penal” e “demagogia punitiva”.

Também para Simon (2011), a explosão repressiva americana é atribuída à lenta e incessante deslegitimação do Estado de bem-estar, que tem seu início na campanha do conservador Barry Goldwater à presidência dos EUA em 1964, baseada quase completamente em palavras de “lei e ordem”. Logo depois aconteceram as “guerras” contra as “drogas” de Nixon, Reagan e Bush (pai), para culminar com a "guerra ao terrorismo” de Bush (filho), depois de 11 de setembro de 2001. Nessa perspectiva, Simon salienta que o medo dominante nos tempos de Nixon era do câncer que evoluiu até chegar ao medo do terrorismo. Assim, aponta como chave para governar valer-se da centralização do medo em um objeto. Para ele, tudo isso configura uma técnica de governo ― uma governance – que se caracteriza como um governo “referenciado pelo crime”, completamente oposto à tradição liberal. Desse modo, o modelo punitivo – e vingativo – torna-se uma técnica geral de governo.

Para este autor, o Safe Streets Act de 1968, do presidente americano Lyndon Johnson, marcou a mudança fundamental no imaginário coletivo que fez a passagem do modelo do trabalhador manual como representante do cidadão comum para o da vítima, determinando o começo do “governo mediante o crime”. Simon ainda adverte sobre a ameaça à democracia (americana) que constitui a vítima-herói do delito como modelo dominante do cidadão, como representante da gente comum, cujas necessidades e capacidades definem a missão do governo representativo.

Segundo Zaffaroni (2013a), este processo se acelera com Reagan até Bush, porque todos os presidentes (exceto Bush pai, que vinha da CIA, o que não altera a perspectiva), tinham sido antes governadores de estado e levaram para o governo federal a modalidade vingativa da política provinciana, na qual os promotores são eleitos por voto popular e adquirem a prática de fabricar vítimas-heróis como modo a alcançar o governo, com base em campanhas vingativas. Essas campanhas estigmatizam os juízes garantistas como inimigos, como se fossem aliados, encobridores de criminosos ou responsáveis pela insegurança frente ao crime. E,

motivam reformas legislativas que impõem fixação de penas ou reduzem a possibilidade de avaliação judicial. Então, desse modo, os políticos que legitimaram o desmantelamento do Estado de bem-estar têm a oportunidade de se firmar mediante leis mais autoritárias, atendendo ao clamor público de que as vítimas- heróis são a vanguarda. Por conseguinte, o modelo punitivo-vingativo se estende a todas as formas sociais, instituições públicas, privadas, desde o Estado nacional até a escola e às relações familiares. Logo, se trata de uma maneira de governar mediante a administração dos medos e de se obter o consenso para exercer um poder policial sem controle.

Governar mediante o medo importa a fabricação de inimigos e a consequente neutralização de qualquer obstáculo ao poder punitivo ilimitado, supostamente usado para destruir o inimigo, ainda que todos saibamos que é materialmente utilizado para aquilo que o poder quiser (ZAFFARONI, 2013a: 176).

Para Birman (2005), nos períodos de crise do capital nos quais aumentam as dispensas de trabalho e o desemprego, as instituições penal e psiquiátrica inflacionam as suas populações de internos para cuidar da mão-de-obra excedente, para relançá-los posteriormente no espaço de trabalho quando a crise é finalmente ultrapassada. Tudo isso, para manter o funcionamento da ordem social, pela mediação destas instituições de controle social. É nessa direção que Rusche & Kirchheimer (1999) apontam a relação do sistema penal com o capitalismo, que em momentos de abundância de mão de obra tende a aplicar penas mais duras, e, por outro lado, em momentos em que se necessita de mais mão de obra, os discursos mais liberais ganham espaço.

Por sua vez, para Meliá (2012), a identificação de um infrator como inimigo por parte do ordenamento penal, por mais que à primeira vista possa parecer uma qualificação como “outro”, na realidade não se trata de uma identificação como fonte de perigo e nem de uma declaração de um fenômeno natural a se neutralizar, mas, de um reconhecimento da função normativa do agente mediante a atribuição da sua perversidade e da sua demonização. Por conseguinte, a característica especial das condutas frente às quais se reclama o “Direito penal do inimigo” está em quem afetam elementos de especial vulnerabilidade na identidade social. Portanto, não é somente um determinado fato que está na base da tipificação penal, mas também outros elementos que servem à caracterização do autor como pertencente à

categoria dos inimigos. O que está em jogo é que os comportamentos delitivos afetam os elementos essenciais e especialmente vulneráveis das sociedades em questão, não no sentido de um risco fático extraordinário para esses elementos essenciais, mas antes de tudo em um determinado plano simbólico. Isto é, toda a infração criminal supõe a quebra da norma, entendida como colocação em dúvida da vigência dessa norma e a pena reage reafirmando sua validade.

Nesse contexto, os “inimigos” se caracterizam por produzir esse rompimento da norma a respeito de configurações sociais estimadas essenciais, mas que são especialmente vulneráveis, mais além das lesões de bens jurídicos de titularidade individual. Então, na perspectiva do processo simbólico, mais do que de defesa frente aos riscos, o elemento decisivo que se produz é uma exclusão de uma determinada categoria de sujeitos do círculo de cidadãos.

Nessa direção, para Teubner (2005), o conceito inclusão/exclusão adquire cada vez maior relevância teórica para as Ciências Sociais e se converte no metacódigo do Século XXI, que mediatiza todos os demais, debilitando a própria diferenciação funcional e dominando outros problemas sociopolíticos com o potencial explosivo da exclusão de grupos inteiros da população. Nessa linha, da perspectiva da Teoria Social dos Sistemas, é que Luhmann (2016) formula a tese de que a diferenciação moderna entre a inclusão e a exclusão é estruturalmente mais profunda do que jamais foi a diferenciação entre classes sociais. Por conseguinte, a função da pena no Direito Penal do inimigo tem que ser vista nessa perspectiva da criação (artificial) de critérios de identidade entre os excludentes, mediante a exclusão.

Quem irá estabelecer os critérios e as leis que formalizam essas relações de poder serão os governantes e os legisladores.