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2.1 LÓGICA DA INIMIZADE COMO FUNDAMENTO DO PODER PUNITIVO

2.1.5 Empresários morais

Segundo Becker (1977), antes que qualquer ato seja rotulado como desviante e antes que qualquer classe de pessoas possa ser rotulada e tratada como marginal, por haver cometido um ato, alguém deve ter criado a regra que define o ato como “desviante”. Então, o “mal” ― prática prejudicial num sentido objetivo para um grupo ― precisa ser descoberto e mostrado, e as pessoas devem ser levadas a sentir que algo está sendo feito em relação a ele. Assim, alguém deve chamar a atenção

pública para essas questões, dar o empurrão necessário para que as coisas sejam feitas, e orientar tais energias, à medida que são despertadas, na direção adequada para conseguir que uma regra seja criada.

Para este autor, o desvio e os marginais que personificam a concepção abstrata devem ser vistos como uma consequência de um processo de interação entre pessoas ― algumas das quais a serviço de seus próprios interesses ―, que criam e impõem regras que capturam outras pessoas, também a serviço de seus próprios interesses, e que cometem os atos rotulados como “desviantes”. Então, como as regras são produtos da iniciativa de alguém, se pode pensar nas pessoas que demonstram tal iniciativa como “empresários morais”, que relacionam duas classes entre si: os criadores e os impositores de regras.

Para Becker (1977), o protótipo do criador de regra é o “cruzado reformador”, ardoroso e virtuoso, exigindo a virtude não só dos outros, mas também de sí próprio, e que acredita que sua missão é sagrada. Assim, se interessa pelo conteúdo das regras, pois as existentes não o satisfazem, já que um mal o perturba profundamente. Então, sente que nada pode estar certo no mundo até que as regras sejam feitas para corrigi-lo. Então, opera com uma ética absoluta: o que se vê é, sem restrição, total e verdadeiramente mal, e qualquer meio para eliminar esse mal é justificável. Dessa forma, para o autor, o cruzado moral é uma pessoa intrometida, interessada em impor sua própria moral às outras pessoas. Exemplo é o proibicionista, assim como a pessoa que deseja eliminar o vício e a delinquência sexual ou a pessoa que quer acabar com o jogo.

Contudo, para Becker (1977), essa é uma perspectiva unilateral, pois muitos cruzados morais têm fortes motivações humanitárias ao acreditarem que se as pessoas fizerem o que é “certo”, isso será bom para elas. Portanto, ele não está apenas interessado em fazer com que elas façam o que ele considera correto. De tal modo, devido à importância do motivo humanitário, os cruzados morais emprestam apoio a outras causas humanitárias, a despeito de sua devoção relativamente sincera à sua causa particular. Dessa forma, os cruzados morais querem ajudar aqueles que estão abaixo deles a conseguir um status melhor, sendo apenas uma outra questão o fato daqueles que estão abaixo deles nem sempre gostarem dos meios propostos para sua salvação.

Segundo o autor, muitos cruzados morais recebem apoio de pessoas cujos motivos são menos “puros” do que os deles, por estarem mais preocupados com os

fins do que com os meios. Por exemplo, quando vão estabelecer regras sob forma de legislação, apoiam-se frequentemente no conselho de especialistas ou de escritórios governamentais que tem a perícia necessária. Assim, em algum ponto do desenvolvimento de sua cruzada, muitas vezes exigem os serviços de um profissional que possa estabelecer as regras apropriadas, de uma forma adequada. Então, ao deixar a elaboração da regra específica nas mãos de outros, o cruzado abre a porta para muitas influências não previstas, porque aqueles que rascunham a legislação para os cruzados têm seus próprios interesses, que podem afetar a Iegislação que eles preparam.

Uma das consequências principais de uma cruzada bem-sucedida é o estabelecimento de uma nova regra, ou conjunto de regras, geralmente com o apoio simultâneo da máquina de sua imposição. Isto é, a criação de um novo conjunto de regras frequentemente estabelece um novo conjunto de agências e funcionários de imposição. E, com o estabelecimento de organizações de impositores de regras, a cruzada torna-se institucionalizada. Logo, o que começou como um movimento para convencer o mundo da necessidade moral de uma nova regra, torna-se, finalmente, uma organização devotada à imposição da regra. Por conseguinte, o resultado final da cruzada moral seria uma força policial.

Então, para se entender como as regras que criam uma nova classe de desviantes são aplicadas às pessoas particulares, deve-se compreender as motivações e interesses da polícia: os impositores de regras. Portanto, o impositor pode não estar interessado no conteúdo da regra enquanto tal, mas somente no fato de que seu trabalho é impor a regra, e a existência da regra lhe proporciona um emprego, uma profissão, uma razão de ser, um poder. Logo, como a imposição de certas regras fornece justificativa para seu estilo de vida, o impositor tem dois interesses que condicionam sua atividade de imposição: em primeiro lugar, ele deve justificar a existência de sua posição e, em segundo, ganhar o respeito daqueles com quem lida. Dessa forma, ao justificar a existência de sua posição, o impositor da regra se defronta com um duplo problema. Por um lado, deve demonstrar aos outros que o problema ainda existe: as regras que ele deve impor têm algum objetivo, porque as infrações ocorrem. Por outro, deve demonstrar que suas tentativas de imposição são eficazes e vantajosas, que o mal com o qual se supõe que ele vá́ lidar esta na verdade sendo tratado adequadamente.

Para Becker (1977), as organizações de imposição, particularmente quando estão buscando fundos, oscilam caracteristicamente entre dois tipos de afirmativas. A primeira que em virtude de seus esforços o problema com o qual lidam está se aproximando de uma solução. A segunda que o problema é, na verdade, mais sério do nunca (embora não exista de sua parte nem uma falha) e, por isso, exigem esforços renovados e crescentes para ser mantido sob controle. Desse modo, os funcionários de imposição podem ser mais veementes do que qualquer outra pessoa ao insistirem em que o problema com o qual se supõe que eles vão lidar ainda existe e na verdade é maior do que nunca. Dessa forma, os funcionários da imposição fornecem boas razões para que a posição que eles ocupam continue existindo. Assim, o cruzado moral e o impositor de regras podem se unir na luta contra um inimigo comum e sofrerem a influência dos meios de comunicação de massa.

Um outro tipo de cruzada moral é assinalado por Badiou (1995) ao se referir à “intervenção civilizadora”. Este autor faz uma crítica a uma certa concepção de humanismo e a uma certa ética dos Direitos Humanos. São pressupostos dessa ética:

a) supõe-se um sujeito humano geral tal que o que lhe sucede de mal seja identificável universalmente, de modo que esse sujeito é ao mesmo tempo um sujeito passivo, ou patético, ou reflexivo: aquele que sofre; e um sujeito de julgamento, ou ativo, ou determinante: aquele que, identificando o sofrimento, sabe que é preciso fazê-lo cessar por todos os meios disponíveis;

b) os “direitos humanos” são os direitos do não-Mal: não ser ofendido ou maltratado em sua vida (horror à morte e à execução), em seu corpo (horror à tortura, às sevícias e à fome), nem em sua identidade cultural (horror à humilhação das mulheres, minorias etc.). Para ele, essa ética subordina a identificação do sujeito ao reconhecimento universal do mal que lhe é feito. Essa “ética, portanto, define o homem “como uma vítima [...] o homem é ‘aquele que é capaz de reconhecer a si mesmo como vítima’” (BADIOU, 1995: 22). E, essa ética debruçada sobre a miséria do mundo esconde, por trás de seu Homem-vítima, o Homem-bom, o Homem-branco. E, essa cisão colocaria sempre os mesmos nos mesmos papéis.

Assim, para este autor, a barbárie de uma situação é refletida em termos de “direitos humanos” como o incivilizado que exige do civilizado uma intervenção

civilizadora. Entretanto, toda intervenção em nome da civilização exige um desprezo primordial à situação completa, incluindo às vítimas. Então, trata-se de uma concepção ética do homem que no final das contas é biológica (imagem de vítimas) ou “ocidental” (satisfação do benfeitor armado), que proíbe toda visão positiva e ampla dos possíveis. O que essa ética legitima é na realidade a conservação, pelo pretenso “Ocidente”, daquilo que ele possui. Baseada nessa posse (posse material, mas também posse de seu ser), essa ética determina o Mal, como aquilo que de certa maneira, não é o que ela goza. Por fim, para Badiou é preciso rejeitar o dispositivo ideológico dessa “ética”, não fazer concessões à definição negativa e vitimária do homem, porque esse dispositivo identifica o homem com um simples animal mortal e é sintoma de um conservadorismo inquietante e, por sua generalidade abstrata e estatística, impede pensar a singularidade das situações.