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Para Kehl (2008), segundo a psicanálise, o mundo das drogas não implica necessariamente o mundo das substâncias, mas o mundo do “no limits”, da adição, e isso pode ser no esporte, na dança, porque é o mundo do gozo em que se extrapola todos os limites. O esporte tem valor como lazer, de uma forma leve e lúdica, mas, em contraponto, se for privilegiada uma maneira mais competitiva, mais violenta, se for visto como puro desafio de competitividade, de ganhar de ser melhor, ele não é o contrário da droga-substância, pois a lógica é a mesma, a de apagamento do sujeito.

Logo, para a psicanálise, “droga” é tudo aquilo que se fixa como o único objeto capaz de satisfazer e dar uma sensação única ao sujeito, tudo que deixa de ser objeto do prazer de que se poderia dispor, para se tornar em objeto-de- necessidade, do qual se depende. Então, no momento do encontro com esse objeto perfeito-com-seu-gozo, nada faltaria ao sujeito, como se ele não precisasse falar e nem pensar, ficando tudo em suspenso, como se o sujeito desaparecesse. Desse modo, para a autora, não seria tão grave que adolescentes experimentassem drogas ilícitas de vez em quando, mas sim o fato deles acharem que sem isso eles não viveriam.

Para Simões (2008), na linguagem mais técnica, “droga” serve para designar amplamente qualquer substância que, por contraste a “alimento”, não é assimilada

de imediato como meio de renovação e conservação pelo organismo, mas é capaz de desencadear no corpo uma reação tanto somática quanto psíquica, de intensidade variável, mesmo quando absorvida em quantidades reduzidas. E, “psicoativo” é um dos termos cunhados para referir as substâncias que modificam o estado de consciência, humor ou sentimento de quem as usa – modificações essas que podem variar de um estímulo leve, como o provocado por uma xícara de café, até alterações mais intensas na percepção do tempo, do espaço ou do próprio corpo, como as que podem ser desencadeadas por alucinógenos vegetais, como a ayahuasca, ou anfetaminas psicodélicas sintéticas, como o “Ecstasy” (metilenodioximetanfetamina - MDMA).

Por outro lado, Simões (2008) assinala que ao lado das significações atuais mais costumeiras de “medicamento” e de “psicoativo”, nas línguas européias encontra-se uma utilização mais antiga do termo para designar ingredientes empregados não só na medicina, mas também na tinturaria e na culinária, provenientes de terras estrangeiras distantes, como as especiarias do Oriente e, posteriormente, o açúcar, o chá, o café e o chocolate. Para o autor, “drogas”, na linguagem mais comum, significam substâncias psicoativas ilícitas (maconha, cocaína, crack, heroína, LSD, ecstasy etc.), cujo uso é tido necessariamente como abusivo e que são alvo dos regimes de controle e proibição.

Araújo (2014) destaca que a maioria das pessoas entende que drogas são coisas proibidas, mas uma menor parte usa a palavra para o álcool e o tabaco porque considera que droga “é aquilo que faz mal” ou “mexe com o cérebro”. O conceito é vago e admite várias interpretações e apenas os médicos e farmacêuticos vão chamar a Aspirina de droga. Deste modo, os farmacologistas consideram droga “qualquer substância capaz de alterar o funcionamento normal do organismo”. Como os gregos antigos, ao se referirem à palavra phármakon tanto para remédio como para veneno, entendem que nenhuma substância é boa ou má em si, pois é o uso que se faz dela que ditará suas consequências. Portanto, essa interpretação considera que maconha e cocaína são drogas da mesma forma que Aspirina e até o chá de camomila, tomado para se dormir melhor.

Para o autor, há pessoas que não chamam de “droga” os remédios convencionais de farmácia, mas incluem a cafeína, por entender que droga é “qualquer substância que dá barato”. Então, a definição corresponde, tecnicamente, a um grupo mais específico de drogas, chamadas de psicotrópicas ou psicoativas,

definidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) (2017)35 como: substâncias “que afetam a mente e os processos mentais”. Já o grupo de pessoas que não considera o álcool como droga adota a interpretação mais restritiva da palavra, ou seja, a de que drogas são substâncias psicotrópicas e proibidas. Esse é o significado da palavra no contexto internacional de controle de drogas, e que ganhou força a partir dos tratados da ONU de 1961 e 1971, os quais visam controlar a distribuição e a produção de mais de cem substâncias e proibir cerca de metade delas.

Assim, a palavra “narcótico” (do grego narkóticos) ― aquilo que adormece ―, desde o século 14 era usada por médicos para se referir apenas às substâncias opióides, conhecida há milênios por sua capacidade de anestesiar seus usuários. Como essas substâncias foram, no início do século 20, o foco das primeiras leis nacionais e internacionais sobre controle de drogas, o termo “narcótico” passou a ser usado para qualquer substância proibida, bem como seus sinônimos ”entorpecente” e “estupefaciente”, e, até a cocaína que não deixa ninguém dormir passou a ser chamada de narcótico. Por esse motivo, o primeiro tratado da ONU sobre psicotrópicos (1961) foi batizado de Convenção Única sobre Entorpecentes (“drogas narcóticas”). Como as línguas evoluem, hoje, em toda a América de língua espanhola, “narco” é a palavra corrente para “traficante”.

Rodrigues (2012) assinala que o primeiro conceito a ser desnudado na sua impropriedade é o de “narcotráfico”, inaplicável, por definição, às substâncias excitantes e/ou alucinógenas, mas que é usado para designar um conjunto de drogas, a maioria das quais não é narcótica, e cuja única característica comum é o estatuto jurídico de ilicitude. Para o autor, a imprecisão na classificação, como todos os mal-entendidos ou equívocos fazem parte de um “imaginário” social meticulosamente construído ao longo das décadas de proibicionismo que se sucede desde que nos Estados Unidos grupos puritanos se articularam para impor a Lei

Volstead, em 1919, proibindo o comércio de álcool.

Por sua vez, também salienta que o monopólio da autoridade científica dos especialistas biomédicos exercido sobre o tema reforça a representação socialmente predominante da “droga” como um perigo em si mesma. Esse é o viés de ameaça à saúde, à juventude, à família e à ordem pública que ainda organiza em grande parte

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a discussão do tema; e assim promove uma distorção decisiva, pois tende a atribuir à existência de “drogas” o sentido universal de encarnação do mal e a tratá-la como um problema conjuntural que poderia ser definitivamente eliminado por meio da proibição e da repressão.

Segundo Zaffaroni (2013b), “droga” é uma palavra criada pela proibição, pois na realidade, o que existe são tóxicos e alguns deles são proibidos, e justamente os que são proibidos são chamados de drogas. Dessa forma, tem-se tóxico de uso comum, sendo o que causa mais mortes no mundo é o álcool, não só pelo uso, abuso ou dependência, mas também porque é o tóxico mais criminógeno. Para o autor, os outros tóxicos proibidos realmente causam mortes, mas não tanto pelo uso, pelo abuso ou pela dependência, mas pela proibição.

Já para Olmo (1990), a palavra “droga” na linguagem científica, a que é representada pela Organização Mundial de Saúde, significa toda substância que introduzida em um organismo vivo pode modificar uma ou mais funções deste. Logo, é um conceito intencionalmente amplo, pois abarca não apenas os medicamentos destinados sobretudo ao tratamento de enfermos, mas também outras substâncias ativas do ponto de vista farmacológico. Por sua vez, na linguagem cotidiana, trata-se como “droga” toda substância capaz de alterar as condições psíquicas, e às vezes físicas, do ser humano, do qual, portanto, pode-se esperar qualquer coisa.

Segundo essa autora, a grande popularidade da droga gerou um excesso de informações (livros, artigos e entrevistas) muitas vezes distorcidas, cheias de preconceitos morais, dados falsos e sensacionalistas, nos quais são misturadas a realidade e a fantasia, e que só contribuiu para que a droga fosse assimilada à literatura fantástica, e se associasse ao desconhecido, ao proibido, e, em particular, ao temido, à difusão e concretização posterior do terror. Segundo Olmo: “Converte- se desta maneira na ‘responsável’ por todos os males que afligem o mundo contemporâneo porque a própria palavra está funcionando como estereótipo, mais do que como conceito; como crença, mais do que como descoberta científica pesquisada. É o bode expiatório por excelência” (OLMO, 1990: 22).

Logo, para a autora, trata-se de uma palavra sem definição, imprecisa e de uma excessiva generalização, porque em sua caracterização não se conseguiu diferenciar os fatos das opiniões e tampouco dos sentimentos. Por conseguinte, a palavra “droga” não pode ser definida corretamente, uma vez que ela é utilizada de maneira genérica para incluir toda uma série de substâncias muito distintas entre si,

inclusive em sua capacidade de alterar as condições psíquicas e/ou físicas, que só têm em comum o fato de haverem sido proibidas. Portanto, o importante não parece ser nem a substância nem a sua definição, e muito menos a sua capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano, mas o discurso que se constrói em torno dela.

Por esta razão Olmo (1990) salienta o papel dos meios de comunicação como “os guardiões do consenso”, indicados para difundir o terror, já que têm a possibilidade de hierarquizar os problemas sociais e de criar o pânico moral sobre determinado tipo de conduta de uma maneira surpreendentemente sistemática (YOUNG, 1974). Desse modo, foram construídos vários discursos em torno da droga que permitiram a criação de estereótipos ― expressão do controle social informal ―, necessários para legitimar o controle social formal, cuja expressão no caso das drogas é a normativa jurídica. Em consequência, se inclui no mesmo discurso não apenas as características das substâncias, mas também as do ator consumidor ou traficante ― o indivíduo se converterá na expressão concreta e tangível do terror, algumas vezes será a vítima e outras, o algoz. Tudo dependendo de quem fale: para o médico, será "o doente", ao qual se deve ministrar um tratamento para reabilitá-lo; para o juiz será o "perverso" que se deve castigar como dejeto.