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2.3 LÓGICA DA EXCEÇÃO COMO MAIS ALÉM DA LÓGICA DA INIMIZADE

2.3.1 Logica da exceção e a vida matável

Para Agamben (2007), a primeira vez que a história do direito se depara com a expressão "direito de vida e de morte" (vitae necisque potestas), ela designa o incondicional poder do pater sobre os filhos homens, e não o poder soberano. Nesse ponto, a vida aparece, originariamente no direito romano, apenas como contraparte de um poder que ameaça com a morte, sem derramamento de sangue. Trata-se de um poder absoluto que irrompe única e imediatamente da relação pai-filho. No instante em que o pai reconhece o filho varão elevando-o do solo, adquire sobre ele o poder de vida e de morte. Ele não é concebido como sansão de uma culpa e nem como a expressão do poder (jurisdição) mais geral que compete ao pater enquanto chefe da família (domus).

Desse modo, não se confunde com o poder de matar que compete ao marido ou ao pai sobre a mulher ou sobre a filha surpreendidas em flagrante adultério, e ainda menos com o poder do proprietário (dominus) sobre seus servos. Para Agamben (2007), nos romanos existia uma afinidade essencial entre o "direito de vida e de morte" do pai e o poder (imperium) do magistrado. Para eles, o registro do direito dos pais (ius patrium) e o do poder soberano acabam por ser estreitamente entrelaçados.

Portanto, o tema do poder paterno (pater imperiosus) acumula na sua pessoa a qualidade de pai e o ofício de magistrado que desempenha uma função importante na anedótica e na mitologia do poder. Em Roma, o poder paternal (patria potestas) era tido como uma espécie de ofício público e uma "soberania residual e irredutível" (imperium privatum). Portanto, o "direito de vida e de morte" que investe ao nascer todo cidadão varão livre parece definir o próprio modelo do poder político em geral, ao ponto do epiteto "pai da pátria" ser reservado em todos tempos aos chefes investidos no poder soberano. Trata-se de uma espécie de mito genealógico do poder soberano em que o imperium do magistrado nada mais é que o "direito de vida e de morte" do pai estendido em relação a todos os cidadãos. É também nessa direção a afirmação de Foucault (1999: 127): “Por longo tempo um dos privilégios característicos do poder soberano foi o direito de vida e de morte”.

Percebe-se assim que todo cidadão varão livre (que, como tal pode participar da vida pública) encontrava-se imediatamente em uma condição de matabilidade virtual, e de certo modo sagrada em relação ao pai. Então, os romanos se

apercebiam do caráter paradoxal deste poder que, com uma exceção flagrante ao princípio sancionado nas XII Tábuas ― segundo o qual um cidadão não podia ser mandado a morte sem processo (indemnatus) ―, configurava uma forma de ilimitada autorização a matar (lex indemnatorum interficiendum). Poder que investe imediatamente a vida do filho e que não pode ser de modo algum assemelhado à morte ritual em execução de uma condenação capital.

Tudo acontece como se os cidadãos varões devessem pagar a sua participação na vida política com uma incondicional sujeição a um poder de morte, e a vida pudesse entrar na cidade somente na dupla exceção da matabilidade e da insacrificabilidade. Então, para Agamben (2007), se a política clássica nasce através da separação das esferas da família (domus) e da cidade (civitas), a vida matável e insacrificável é o fecho que lhes articula e o limiar no qual elas se comunicam, indeterminando-se. Por conseguinte, somente através do abandono a um poder incondicionado de morte, a vida humana se politiza.

Segundo o autor, os gregos não possuíam um termo único para exprimir a palavra “vida”. Assim, serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos: zoe, que exprimia o simples fato de viver comum aos seres vivos (animais, homens, deuses) e bios, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo, a vida qualificada, um modo particular de vida. Logo, o ingresso da zoe na esfera da pólis, a politização da vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade. Dessa circunstância, somente uma reflexão que interrogue tematicamente a relação entre a vida nua e a política que governa secretamente as ideologias da modernidade, aparentemente distantes entre si, poderá fazer sair o político de sua ocultação.

Portanto, as análises do modelo jurídico-institucional e do modelo biopolítico do poder em que a vida é objeto dos cálculos e das previsões do poder estatal não podem ser separadas, pois a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário do poder soberano, ainda que encoberto. Enfim, o Estado moderno implica na aparição do vínculo secreto que une o poder à vida nua. Esta significa aquilo que deve ser politizado desde sempre, e que tem, na política ocidental, o privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens. Assim, a política ocidental é constituída primeiramente através de uma exclusão/implicação da vida nua.

Por conseguinte, para o autor, a dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua/existência política, zoe-bios, exclusão/inclusão. Logo, se mostra importante analisar a estrutura de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, e que constituí o fundamento oculto sobre o qual repousa o sistema político. Assim, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente coincidir com o espaço político, em que exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoe, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção, como se estivessem no campo da exceção: fossem um caso singular que é excluído da norma geral, uma espécie da exclusão.

Contudo, o que caracteriza propriamente a exceção, para Agamben (2007), é que aquilo que foi excluído não está absolutamente fora da relação com a norma, mas se mantém em relação a ela na forma da suspensão. Isto é, a norma se aplica a exceção desaplicando-se, retirando-se desta. Então, a situação, que vem a ser criada na exceção possui este particular, o de não poder ser definida nem como uma situação de fato nem como uma situação de direito, mas institui entre essas um paradoxal limiar de indiferença.

Segundo o autor, o soberano decide a implicação originaria do ser vivente na esfera do direito e não entre lícito e ilícito. É diferente de Schmitt, com o qual a soberania se apresenta na forma de uma decisão sobre a exceção: o soberano é aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, deste modo, a validade do ordenamento. Portanto, a chave da captura da vida pelo direito não é a sanção, mas a culpa (a dívida por um posicionamento consciente de fins contrários ao ordenamento jurídico). Ou seja, o ser incluído através de uma exclusão, o estar em relação com algo do qual se foi excluído ou que não se pode assumir integralmente. Assim, a culpa não se refere à transgressão, ou seja, à determinação do lícito e do ilícito, mas a pura vigência da lei, ao seu simples referir-se a alguma coisa.

Logo, a estrutura "soberana" da lei tem a forma de um estado de exceção, em que fato e direito são indistinguíveis (e devem ser decididos). A vida somente pode ser implicada na esfera do direito através da pressuposição da sua exclusão inclusiva, numa exceção (exceptio). Isto é, existe uma figura-limite da vida, um limiar em que ela está, simultaneamente, dentro e fora do ordenamento jurídico, e este

limiar é o lugar da soberania. E, a decisão soberana traça e renova este limiar de indiferença entre o externo e o interno, exclusão e inclusão.

Assim sendo, para Agamben (2007), a soberania não é um conceito exclusivamente político nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originaria na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão. Isso tudo pode ser observado na figura enigmática e contraditória do direito romano arcaico, que para alguns é a mais antiga pena do direito criminal romano: o homo sacer: aquele que qualquer um podia matar impunemente (impune occidi), contudo, não devia ser levado à morte nas formas sancionadas pelo ritual (veto ao sacrifício, proibição de imolação).

Desse modo, a vida dele se situa no cruzamento entre uma matabilidade e uma insacrificabilidade, fora tanto do direito humano (ius humanum), porque suspende a aplicação da lei no homicídio ― uma exceptio em sentido técnico ―, porque o assassino quando chamado a juízo, pode opor-se a acusação invocando a sacralidade da vítima. Mas também uma exceção do ius divinum, de qualquer forma de morte ritual, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão.

Nota-se assim aquilo que define a condição do homo sacer: o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e, por conseguinte, da violência a qual se encontra exposto. Essa violência ― a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele ― não é classificada como sacrifício, nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e sacrilégio. No caso do homo sacer, a pessoa é simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina. Trata-se de uma espécie de conceito-limite entre dois direitos do ordenamento social romano, e por isso, de uma estrutura política originária que tem seu lugar numa zona de indistinção entre o religioso (sacro) e o jurídico (profano). Isto porque subtraindo-se das formas sancionadas dos direitos humano e divino, abre-se uma esfera do agir humano que não é a do sagrado ofício e nem a da ação profana.

Então, a estrutura topológica que esta dupla exceção desenha é a de uma dúplice exclusão e de uma dúplice captura, que se apresenta semelhante à estrutura da exceção soberana. Isto porque, segundo Agamben (2007), a esfera da decisão soberana ao suspender a lei no estado de exceção, e assim implicar nele a vida nua

(matável), é uma esfera limite do agir humano que se mantem unicamente numa relação de exceção. Do mesmo modo que o homo sacer é excluído na forma da insacrificabilidade ao pertencer a Deus e incluído na comunidade na forma da matabilidade, na exceção soberana, a lei se aplica ao caso excepcional desaplicando-se, retirando-se deste.

O espaço político da soberania constitui-se, então, de uma dupla exceção, como um excesso do profano no religioso e do religioso no profano, que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Pois, soberana é a esfera na qual se pode matar sem se cometer homicídio, sem se celebrar um sacrifício, e matável e sacrificável é a vida que foi capturada nessa esfera. Assim, nos dois limites extremos do ordenamento, “soberano” e homo sacer apresentam duas figuras simétricas, que têm a mesma estrutura e são correlatas, no sentido de que soberano é aquele em relação ao qual os homens são potencialmente matáveis, e

homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos.

Ambos comunicam na figura de um agir que se excepcionando tanto do direito humano quanto do divino, delimita o primeiro espaço político em sentido próprio, distinto tanto do âmbito religioso quanto do profano, tanto da ordem natural quanta da ordem jurídica normal.

Portanto, para Agamben (2007), o homo sacer ― restituído ao seu lugar próprio ―, além do direito penal e do religioso, é a forma originária da implicação da vida nua na ordem político-jurídica, e conserva a memória da exclusão originaria através da qual se constituiu a dimensão política. Isto é, a figura originaria relacionada a exclusão da comunidade, da vida presa no bando soberano que exclui incluindo, uma vida matável e insacrificável:

Uma outra notável usança hebraica é o bando (herem) com o qual um pecador ímpio, ou então inimigos da comunidade e do seu Deus, eram votados a uma total destruição. O bando é uma forma de consagração a divindade, e é por isto que o verbo "banir" é as vezes vertido como "consagrar" (Miq. 4.13) ou "votar" (Lev. 27.28). Nos tempos mais antigos do Hebraísmo, ele implicava, porém, a completa destruição não somente da pessoa, mas de suas propriedades. (Smith29 apud Agamben, 2007: 84)30.

29 SMITH, Robertson. Lectures on the religion of the Semites. London: Adam and Charles Black,

1894, p. 454;

30 No original em inglês, SMITH (1894) usa o termo ‘ban’ (proibição oficial ou legal, interdito,

banimento, proscrição, excomunhão) e não bando, da seguinte maneira: The ban is a form of

devotion to the deity, and so the verb "to ban" is sometimes rendered "consecrate" (AIicah iv. 13) or "devote "(Lev. xxvii. 28 sq.).

Por conseguinte, aquele que foi banido não é simplesmente posto fora da lei, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem. Então, o que foi posto em bando é remetido a própria separação e, entregue a vontade de quem o abandona, ao mesmo tempo é excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, capturado. Para Agamben (2007: 36): “A relação originaria da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência insuperável do nómos, a sua originaria "força de lei", é que ele mantém a vida em seu bando abandonando-a”.

Para Agamben (2007), esta zona de indiferença, semelhante à do homo

sacer, da vida de exilado, matável e insacrificável, indica a relação política originaria,

mais original até que a oposição schmittiana entre amigo e inimigo, entre concidadão e estrangeiro, pois a externalidade daquele que está sob o bando é mais íntima do que a estranheza do estrangeiro. Por isso, destaca que “bandido” significa tanto "excluído”, “banido" quanto "aberto a todos”, “livre" e abandono e in bando, em italiano quer dizer "à mercê de...". Então, o bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois pólos da exceção soberana: a vida nua e o poder. E, esta estrutura deve ser reconhecida nas relações políticas e nos espaços públicos em que se vive.

Portanto, o relacionamento jurídico-político originário é o bando, estrutura formal e material da soberania, porque o que ele mantém unidos são justamente a vida nua e o poder soberano. Assim, a constituição da vida nua (matável) é o conteúdo primeiro do poder soberano, a produção da vida nua é a utilidade original da soberania (poder político). Na origem, portanto, se tem a sujeição da vida a um poder de morte, a sua exposição na relação de abandono. Desta forma, o sintagma

homo sacer nomeia algo como a relação política originária, ou seja, a vida enquanto,

na exclusão inclusiva, serve como referente a decisão soberana. Trata-se de um fenômeno político jurídico, de formulação política original da imposição do vínculo soberano, e não de categoria religiosa que sanciona o caráter de estranho e enigmático de algo.

Não a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida sacra) é o elemento político originário [...] Não se poderia dizer de modo mais claro que o fundamento primeiro do poder político é uma vida

absolutamente matável, que se politiza através de sua própria matabilidade (AGAMBEN, 2007: 96).

Logo, o seu assassinato não constitui nem uma execução capital nem um sacrifício, mas apenas a realização de uma mera "matabilidade" que é inerente à sua condição de sacer. Por conseguinte, para Agamben (2007), o fundamento do poder soberano não deve ser buscado em Hobbes, na cessão livre, da parte dos súditos, do seu direito natural, mas, sobretudo, na conservação, da parte do soberano, de seu direito natural de fazer qualquer coisa em relação a qualquer um, e que se apresenta como direito de punir. Portanto, do ponto de vista da soberania, somente a vida nua é autenticamente política, e não ao que se está acostumado a representar como seu espaço, em termos de direitos do cidadão, de livre-arbítrio e de contrato social.

Então, a violência soberana na verdade, não é fundada sobre um pacto, mas sobre a inclusão exclusiva da vida nua no Estado. E, o referente primeiro e imediato do poder soberano é, neste sentido, a vida matável e insacrificável que tem seu paradigma no homo sacer. Logo, é preciso dispensar sem reservas todas as representações do ato político originário como um contrato ou uma convenção, que assinalaria de modo pontual e definido a passagem da natureza ao Estado. O que existe é uma complexa zona de indiscernibilidade, na qual a liame estatal, tendo a forma do bando, é também desde sempre não-estabilidade e pseudonatureza, e a natureza se apresenta desde sempre como estado de exceção.

Isto somente é possível porque a relação de bando constituí desde a origem a estrutura própria do poder soberano. De tal modo tem-se, conforme Badiou (1996: 91), que “o Estado não se funda sobre o vínculo social, que ele exprimiria, mas sobre a des-vinculação, que ele interdita”. Para Agamben (2007), essa des- vinculação não deve ser entendida como a dissolução de um vínculo preexistente (que poderia ter a forma de um pacto ou contrato). Mas que o vínculo tem originariamente a forma de uma dissolução ou de uma exceção, na qual o que é capturado é, ao mesmo tempo, excluído. Por isso, o vínculo soberano é mais originário que o vínculo da norma positiva ou do pacto social.

Na verdade, é uma dissolução que implica e produz a vida nua, que, do ponto de vista da soberania, é o elemento político originário. Enfim, para Agamben (2007), soberano é o ponto de indiferença entre violência (Bia) e justiça (Dike), o limiar em que a violência traspassa em direito e o direito em violência. Dessa forma, para o

autor, a dimensão na qual o extermínio tem lugar não é nem religião nem direito, mas biopolítica. E, se hoje não existe mais uma figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque todos são virtualmente matáveis.

Isto posto, ao fazer uma genealogia do conceito de segurança, Agamben (2014) comenta que se pode pensar que os objetivos das políticas de segurança sejam simplesmente prevenir os perigos, todavia remontam ao provérbio romano

Salus Publica Lex Suprema (“a salvação do povo é a lei suprema”). Isto é, se

inscrevem no paradigma do estado de exceção, pois os procedimentos de exceção visam uma ameaça imediata e real, que deve ser eliminada ao se suspender por um período limitado as garantias da lei. Por isso, as “razões de segurança” constituem hoje uma técnica de governo normal e permanente que funciona como um argumento de autoridade que corta qualquer discussão pela raiz, e permite impor medidas que seriam inaceitáveis sem ela. Portanto, seria vão, ou de qualquer modo custoso, governar as causas, e mais útil e mais seguro governar os efeitos. Esse axioma, atualmente, regeria as sociedades. Então, como no debate democrático são tratadas as categorias fundamentais da política ocidental: amigo-inimigo, vida nua/existência?