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A cronologia da resistência: interpretação econômica

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 95-101)

Iniciei este capítulo com uma descrição da situação que caracterizava os vinte últimos anos do século XIX. De fato, tem -se mostrado muito difícil analisar a resistência dentro desses limites cronológicos. Num extremo, comentei Makana, o profeta xhosa de começos do século XIX; no outro, comentei o levante zam- bezano de 1917 e suas conexões com a Frelimo. Mas, pelo menos, limitei o comentário à resistência contra a invasão dos brancos ou aos levantes armados contra a dominação colonial quando ela começou a “morder”; as extensões cronológicas devem -se ao fato de a penetração dos brancos na África ter sido

37 STEINHART, (?).

irregular e ainda mais irregular a efetiva dominação colonial. Se se adotar esta definição essencialmente política, o período 1880 -1900 emerge como um período capital para a resistência, embora muitos dos grandes esforços de redefinição da soberania pela oposição se tenham manifestado mais tarde.

Concluindo, se considerarmos a importância crescente atribuída à resistência econômica, os limites cronológicos ficam ainda menos definidos. A reinterpre- tação mais radical talvez seja a de Samir Amin. Para ele, foi no final do século XVII e durante o XVIII que se desencadearam, na África ocidental, os movi- mentos de resistência verdadeiramente cruciais contra a Europa; Amin sumaria- mente trata as resistências do período da corrida propriamente dito como ações sem entusiasmo, de retaguarda de uma classe dirigente já comprometida. Aos olhos dele, o que estava essencialmente em jogo na confrontação entre a África e a Europa não era a dominação política oficial, mas as tentativas europeias de manipulação econômica. A resistência africana verdadeiramente significativa era dirigida contra essa manipulação econômica.

Amin afirma que o comércio através do Saara tinha “reforçado a centraliza- ção estatal e favorecido o progresso”. Por outro lado, o tráfico atlântico, que os europeus dominavam,

não deu origem a forças produtivas; pelo contrário, provocou a desintegração da sociedade [...] Sociedades africanas evidentemente se opuseram a essa degradação da sua situação, e o islamismo servia -lhes de base para a resistência [...] Os sacerdotes muçulmanos ten- taram organizar um movimento de resistência, visando pôr fim ao tráfico de escravos, ou seja, à exportação de mão de obra, mas não à escravidão interna [...] O islamismo mudou de caráter: religião de um grupo minoritário de comerciantes, tornou -se um movimento popular de resistência.

Amin distingue três importantes movimentos de resistência no gênero: as guerras de 1673 a 1677; a revolução dos Torodo de 1776, que “derrubou a aris- tocracia militar e pôs fim ao tráfico de escravos”; o movimento de 1830, dirigido pelo profeta Diile, no reino de Waalo, que fracassou “diante da intervenção militar francesa”. Amin aqui descreve movimentos de resistência que, voltados contra uma aristocracia africana, também constituíam resposta à agressão eco- nômica francesa.

À medida que se avança pelo século XIX, continua Amin, a demanda fran- cesa de escravos é substituída pela demanda de matérias -primas e produtos agrícolas. Em Waalo os franceses tentaram fazer experiências de plantação agrícola, mas não conseguiram, devido à resistência das comunidades de aldeãos. Também não lograram vencer a resistência à proletarização enquanto não ocupa-

ram toda a região, tendo de recorrer à força permanente. A conquista colonial, porém, progrediu tão lentamente que a resistência a ela não foi muito eficaz. Por essa época, o islamismo tinha deixado de ser uma ideologia da resistência para se tornar o consolo espiritual da aristocracia vencida, que o empregava para disciplinar os aldeãos agricultores e conseguir que produzissem tudo o que os franceses deles exigiam39.

Se Amin afirma que os movimentos de resistência verdadeiramente impor- tantes são anteriores à corrida, outros historiadores, adeptos da perspectiva eco- nômica, parecem alegar que os movimentos verdadeiramente importantes de resistência à dominação econômica oficial datam apenas do século XX. Certa- mente houve, na época da corrida, vários movimentos de resistência econômica. Mais precisamente, os europeus, rompendo a velha aliança com os mercadores e intermediários africanos, recorreram à força para instaurar o monopólio comer- cial. O resultado foi uma resistência feroz da parte dos mercadores africanos, conduzida pelo chefe Nana Olomu, de Itsekiri, no delta do Níger (Nigéria), que Anthony G. Hopkins descreve como o protótipo do homo economicus, ou pelos chefes swahili, que dominavam o comércio de escravos no norte de Moçambi- que, ou ainda pelo grande mercador Rumaliza, que lutou na África oriental ao mesmo tempo contra os belgas e contra os alemães.

Immanuel Wallerstein via nessa guerra dos mercadores um dos acontecimen- tos decisivos do começo do colonialismo:

Muitas regiões da África ao sul do Saara tinham [...] entrado num processo de desenvolvimento relativamente autônomo, ligadas ao mundo europeu de forma limitada mas importante, por intermédio de mercadores ou de agentes estatais de comércio de um e de outro lado [...] No entanto, em 1879 toda essa estrutura entrou em desagregação e em 1900 tinha deixado de existir.

Com a dominação colonial,

as relações entre africanos e europeus deixaram de ser relações de parceiros comerciais. O efeito mais imediato da dominação colonial foi seu impacto sobre os mercadores africanos [...] Ao fim da Primeira Guerra Mundial, o declínio radical da importância relativa da classe de mercadores africanos e árabes era já um fato consumado40. No conjunto, porém, a nova geração de historiadores é indiferente à resistên- cia dos mercadores. Hopkins adverte -nos contra a ideia de que mercadores do

39 AMIN, 1972.

delta do Níger, como Nana Olomu, pudessem ser precursores do nacionalismo ou porta -vozes dos descontentamentos populares, salientando que “a visão que eles tinham de justiça social não comportava a emancipação de seus próprios escravos”. Nancy Hafkin destaca os interesses puramente egoístas dos chefes da resistência do norte de Moçambique: “De forma alguma”, conclui ela, “a resistência deles era popular ou progressista”41.

A capacidade de resistência dos grandes mercadores, tal como a dos dirigen- tes dos Estados secundários, foi minada pelo fato de terem suscitado demasiados agravos entre os africanos. Pretendendo quebrar o poderio dos mercadores árabes, swahili e africanos, a Imperial British East Africa Company conseguiu estabelecer uma nova rota comercial de Malindi para o interior, “reforçada por estacadas construídas por comunidades de escravos fugidos das plantations cos- teiras de seus senhores árabes”42.

Os “importantes empresários” do hinterland de Lagos tiveram dificuldades em oferecer resistência à penetração dos britânicos, devido à agitação de sua “abundante mão de obra, constituída principalmente de escravos e de servos”43.

A situação do comércio internacional, que favorecera a ascensão de poderosos mercadores africanos, fizera também com que o êxito deles fosse obtido ao preço de grandes tensões e ressentimentos internos. Havia exceções a essa situação de tensão entre os poderosos mercadores e as massas populares. Por exemplo, no reino Bailundu, em Angola, “todo mundo comerciava”; na década de 1870, “os empresários umbundu descobriram e exploraram um novo tipo de seringueira” e, “nos dez anos seguintes, um número sem precedentes de Bailundu dedicava -se ao comércio privado”. A queda do preço da borracha, entre 1899 e 1902, pôs fim a essa prosperidade comercial generalizada.

O problema agravou -se depois de 1899 no reino Bailundu, devido à intrusão de comerciantes europeus [...] Com a queda do preço da borracha comerciantes por- tugueses e uma nova vaga de brancos pobres [...] chegaram para se estabelecer no comércio.

Segundo o último estudo da guerra dos Bailundu, de 1902, o ressentimento contra essa agressão comercial dos europeus contribuiu muito para o levante popular em massa que irrompeu contra os portugueses44.

41 HOPKINS, A. G., 1973, p. 147; HAFKIN, 1971. 42 SMITH, C. B., 1973, p. 112 -3.

43 HOPKINS, A. G., 1966a, p. 141.

Em compensação, os historiadores da resistência que se colocam na perspectiva econômica associam habitualmente a revolta popular não ao ressentimento contra a agressão comercial dos europeus, mas ao fato de as populações africanas irem compreendendo, pouco a pouco, que os brancos estavam decididos a conseguir mão de obra a baixo preço. A princípio, muitos africanos talvez tenham acolhido os europeus como protetores contra chefes demasiado exigentes, ou mercadores swahili rapaces ou ainda proprietários de escravos; mas não tardaram a perceber que as exigências dos europeus eram igualmente ou mais intoleráveis. No começo, o comportamento de boa parte dos proprietários de escravos, de chefes e de mercadores africanos relativamente aos europeus talvez fosse ditado pelo medo e pelo ódio, mas muitos deles descobriram que, a longo prazo, os interesses dos detentores do poder, negros e brancos, frequentemente coincidiam. Dessa forma, o caráter da resistência passou por uma profunda transformação.

Donald Denoon coloca o problema com clareza:

Quando falamos da corrida para a África, geralmente pensamos na divisão do ter- ritório e da soberania africana entre europeus. O fenômeno comporta um terceiro aspecto, o da corrida aos recursos africanos. Os diamantes e o ouro figuram entre tais recursos, é certo, mas talvez o mais precioso, aquele para o qual as autoridades colo- niais se lançaram com paixão, fosse a mão de obra africana. Assim como outrora os comerciantes europeus e árabes compravam escravos em toda parte da África, agora novas agências de recrutamento se abriam para obter mão de obra não especializada para trabalhar nas minas [...] Em Angola, no Zambeze e em Katanga, na virada do século, os agentes de recrutamento para as minas do sul concorriam com os agentes das plantações portuguesas de trabalho forçado no golfo do Benin45.

Tal como a primeira corrida ao território e à soberania, a segunda corrida à mão de obra também encontrou resistência. Foi uma resistência armada, e o apoio dado às grandes revoltas que no começo do século XX tentaram redefinir a soberania veio, em grande parte, de homens que execravam o trabalho forçado. A resistência tomou, portanto, a forma de deserções e de greves, de recusa ao trabalho debaixo da terra, de múltiplos tumultos. Os trabalhos de pesquisa- dores como Charles van Onselen abrem novas perspectivas para o estudo da resistência, que já não é apenas a perspectiva da “resistência do Zambeze” ou da “resistência de Bemba”, mas a perspectiva da resistência ao longo de toda a rede interterritorial de migração de mão de obra do início da época colonial46.

45 DENOON, 1972, p. 74. 46 VAN ONSELEN, 1973.

Conclusão

Como se vê, a historiografia da resistência é dinâmica e crítica. Todavia as modificações e as novas perspectivas ampliam, ao invés de contradizer, os três postulados básicos por mim analisados. A “organização” e a “generalização” da resistência aparecem ainda mais nítidas se acrescentamos à lista de oposições e revoltas armadas, durante a corrida, os movimentos de resistência indireta anteriores à agressão econômica europeia. A pesquisa sobre a base ideológica da resistência se enriquece se juntamos um elemento novo, as primeiras mani- festações de “consciência” nos operários e camponeses, à ideia de soberania e à busca de uma nova ordem moral. E a pesquisa das conexões entre a resistência e a atual situação da África ganha nova ressonância com a ideia de resistência econômica. A última palavra talvez caiba não a um historiador, mas a um espe- cialista em ciências políticas, Colin Leys, que preconiza uma teoria do “subde- senvolvimento” mais dinâmica e historicamente fundamentada:

Num aspecto crítico, a teoria do subdesenvolvimento tende a assemelhar -se à do desenvolvimento – ela se concentra no que acontece aos países subdesenvolvidos nas mãos do imperialismo e do colonialismo e não no processo histórico correspon- dente, incluindo as diversas formas de luta contra o imperialismo e o colonialismo nascidas das condições do subdesenvolvimento [...] O que falta não é uma teoria do subdesenvolvimento, mas do subdesenvolvimento e da sua liquidação [...] Semelhante teoria implica nada menos que uma teoria da história mundial vista pelos países sub- desenvolvidos, uma teoria da opressão e da libertação desses países, a qual ainda se acha em estágio bastante rudimentar, embora se sinta vivamente a necessidade dela47. O estudo dos movimentos de resistência não é uma exaltação fútil das glórias do passado, mas algo que pode contribuir para a elaboração de uma teoria da opressão e da libertação.

C A P Í T U L O 4

Em nenhuma parte da África as iniciativas e a resistência dos africanos à partilha e à ocupação europeia foram tão determinadas e contínuas quanto nos modernos Estados do Egito, do Sudão e da Somália. As reações começaram em 1881 com o levante militar no Egito e continuaram em algumas partes da região até os anos de 1920. Jamais, na história da África, um povo lutou tão aguerridamente para defender sua liberdade, soberania, e sobretudo religião e cultura. Veremos neste capítulo quais foram essas iniciativas e reações, a começar pelo Egito, em seguida o Sudão e por fim a Somália.

Egito

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