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A revolução mahdista

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 113-117)

O Sudão era desde 1821 administrado pelo governo turco do Egito. Por volta de 1880, os povos egípcio e sudanês lutavam para se libertar da tutela de uma aristocracia estrangeira. A ideia da djihad e da resistência islâmica à dominação estrangeira, propagada no Egito por Urabi, encontrou igualmente um poderoso eco junto ao movimento revolucionário militante dirigido por Muhammad Ahmad al -Mahdi no Sudão (fig. 4.5). Seu movimento, o Mahdiyya, era essen- cialmente uma djihad – uma guerra santa – e, como tal, reclamava o apoio de todos os muçulmanos. Seu objetivo fundamental, como atestam repetidamente as cartas e proclamações do Mahdi18, era reviver a fé pura e primitiva do Islã,

“expurgada das heresias e das excrescências”19, e propagá -la no mundo inteiro, se

necessário pela força. O autêntico fervor espiritual da revolução mahdista estava expresso no bay’a (juramento de obediência) que os adeptos do Mahdi (a quem ele próprio chamava os Ansar20, seguindo assim o exemplo do Profeta) deviam

16 VATIKIOTIS, 1969, p. 229 -30. 17 Ibid., p. 234.

18 Para uma boa compilação dessas cartas e proclamações, ver ABU SALIM, 1969. 19 HOLT, 1970, p. 19.

fazer ao chefe ou a seu representante, antes de serem admitidos no Mahdiyya. No bay’a, os Ansar juravam fidelidade ao Mahdi “renunciando a este mundo e abandonando -o, contentando -se com o que está com Deus, desejando o que está com Deus e o mundo futuro”. E acrescentavam: “Nós não fugiremos à

djihad”21.

Afirmar que a revolução mahdista era religiosa não significa que a religião tenha sido a única causa da sua origem. Havia outros fatores, secundários, todos derivados das faltas cometidas pela administração turco -egípcia, totalmente corrupta, faltas que tinham provocado o descontentamento geral no Sudão. As violências consequentes à ocupação do país, em 1820 -1821, tinham criado um forte desejo de vingança, e os elevados impostos que os turcos arrancavam pela força só faziam agravar a situação. Além disso, as tentativas feitas pelo governo para eliminar o comércio de escravos tinham descontentado certos sudaneses do norte, pois ameaçavam uma importante fonte de riqueza e até a base da economia agrícola interna do país. Por fim, os favores que os turcos concediam ao povo Shaykiyya e à seita Khatmiyya parecem ter suscitado a inveja dos outros grupos locais e religiosos, estimulando -os a apoiar o Mahdi22.

O chefe da revolução, Muhammad Ahmad ibn Abdallah, era um homem pio, cujo ideal era o Profeta Maomé [Muhammad] em pessoa. Como este último, Muhammad assumiu o papel de Mahdi aos 40 anos de idade, comunicou isso em segredo a um grupo de adeptos fiéis e depois fez o anúncio público e oficial. Com isso, entrou em confronto militar direto com o governo anglo -egípcio durante quatro anos (1881 -1885). Este o subestimou no início, considerando -o um simples darwish (mendigo), conforme o prova a fraca e desorganizada expe- dição que foi enviada contra ele à ilha de Aba. Seguiu -se breve escaramuça, na qual os Ansar obtiveram uma vitória fácil e rápida, ficando a administração numa confusão completa. O Mahdi e seus adeptos consideraram a vitória mira- culosa23. A clarividência política e o gênio militar do Mahdi se refletem na sua

decisão de “emigrar”, depois do combate de Aba, para Djabal Kadir, nas mon- tanhas da Núbia. Independentemente do fato de apresentar um paralelo com a vida do Profeta, esta hidjra (hégira) marcou de fato uma reviravolta na história do Mahdiyya. Ao afastar a revolução da região do Nilo, estabelecendo -a no oeste do Sudão, os sudaneses desta área tornaram -se a coluna vertebral – militar e

21 HOLT, 1970, p. 117. 22 SHOUQAIR, 1967, p. 631 -6. 23 SHIBAYKA, 1978, p. 39 -44.

civil – da revolução, enquanto declinava o papel das populações que viviam às margens do Nilo24.

A batalha de Shaykan, travada a 5 de novembro de 1883, marcou outra reviravolta da revolução mahdista. Nessa época, o quediva Tawfik e seu governo estavam dispostos a esmagar o Mahdi, que controlava então as principais cida- des da província de Kordofan. Os egípcios enviaram um corpo expedicionário, formado pelos remanescentes do exército de Urabi e comandado por um oficial inglês, Hicks Pasha. Os Ansar aniquilaram totalmente o adversário na floresta de Shaykan, perto de al -‘Obeid25. A vitória encheu de orgulho o Mahdi e seu

movimento. Enquanto numerosos sudaneses aderiam à revolução, delegados de vários países muçulmanos vieram felicitar o Mahdi por sua vitória contra os “infiéis”. A consequência imediata de Shaykan foi o colapso total da adminis- tração turco -egípcia no oeste do Sudão. Os mahdistas assumiram o controle das províncias de Kordofan, Darfur e Bahr al -Ghazal. O Mahdi estava, entretanto, prestes a passar à segunda fase das operações: tomar Khartum e pôr fim à domi- nação turco -egípcia sobre o Sudão26.

Os mahdistas atacaram em seguida a região oriental do Sudão, sob o hábil comando de Osman Digna. Digna obteve numerosas vitórias sobre as forças governamentais e não tardou a ameaçar os portos do Mar Vermelho, defendidos pelos britânicos, do que resultou uma intervenção militar destes, de resto pouco eficaz. Com a exceção de Souakin, os Ansar controlavam a totalidade do Sudão oriental e impediam o transporte de reforços e de munições para Khartum pela estrada Souakin -Berbere.

Após a batalha de Shaykan, a política britânica relativamente ao Sudão sofreu importante mudança. Antes, o Reino Unido dizia tratar -se de um pro- blema puramente egípcio, mas, depois da batalha, concluiu que seus interesses imperiais exigiam que o Egito se retirasse imediatamente do Sudão27. Ordenou

então que o governo egípcio evacuasse o país e encarregou o general Charles Gordon de fazer cumprir a ordem. Entrementes, o Mahdi avançava sobre a capi- tal, colocando o general Gordon numa situação muito perigosa. Após demorado cerco, as forças mahdistas atacaram a cidade, mataram Gordon a 26 de janeiro de 1885 e puseram fim à dominação turco -egípcia no Sudão28.

24 ABU SALIM, 1970, p. 21 -2. 25 ZULFU, 1976, p. 203 -29. 26 AL -HASAN, 1964, p. 4. 27 SHIBEIKA, 1952, p. 107 -9. 28 HAMZA, 1972, p. 159 -83.

No espaço de quatro anos (1881 -1885), o movimento Mahdiyya de revolta reli- giosa transformara -se em poderoso Estado militante, que iria dominar o Sudão por catorze anos. Suas instituições administrativas, financeiras e jurídicas, assim como a legislação, estavam estritamente baseadas no Corão e na Sunna, muito embora o Mahdi ocasionalmente promulgasse novas formas de legislação acerca de problemas prementes, como a situação das mulheres e da propriedade de terras29.

As relações do Estado mahdista com o mundo exterior eram rigorosamente governadas pela djihad. O Mahdi e seu califa, Abdullah ibn al -Sayyid Muham- mad, escreveram cartas de advertência (indharat) – virtualmente, ultimatos – a certos dirigentes, como o quediva do Egito, o imperador da Turquia e o da Abissínia, para que aceitassem a missão do Mahdi, ameaçando -os com uma

djihad imediata se não respondessem afirmativamente30.

O Mahdi não viveu tempo bastante para dar prosseguimento a sua política (morreu em junho de 1885), mas a djihad tornou -se o alvo de toda a política externa do califa Abdullah, sucessor dele. Não obstante os pesados problemas administrativos e financeiros que tinha de enfrentar, Abdullah prosseguiu com a djihad em duas frentes: contra o Egito e a Etiópia. Sob o comando de Abd al -Rahman al -Nudjumi, as forças mahdistas invadiram o Egito, mas foram bati- das em Tushki no ano de 1889. O avanço mahdista na frente oriental também foi detido, e os Ansar perderam Tokar em 1891 e Kassala em 1894. O engaja- mento ideológico do califa na djihad havia arruinado os esforços do imperador da Etiópia para concluir uma aliança africana entre o Sudão e a Etiópia contra o imperialismo europeu. De fato, para concluir a aliança, o califa exigia que o imperador aderisse ao mahdismo e ao Islão. O resultado dessa atitude dogmática foi uma série de embates armados, que enfraqueceram os dois Estados, fazendo deles presas fáceis para o imperialismo europeu31.

Em março de 1896, o governo imperial britânico decidiu invadir o Sudão e constituiu -se para tanto um exército, comandado pelo general H. H. Kitchener. Durante a primeira fase da invasão, de março a setembro de 1896, as forças inimigas ocuparam toda a província de Dongola, sem encontrar resistência séria da parte dos sudaneses. Isso se devia a sua superioridade técnica e ao fato de o califa ter sido surpreendido pela ofensiva.

Como o califa tinha suposto, a ocupação de Dongola não era senão o prelúdio para um ataque generalizado ao Estado mahdista. Enquanto Kitchener avan-

29 HOLT, 1970, p. 128. 30 SHOUQAIR, 1967, p. 921 -9. 31 AL -KADDAL, 1973, p. 105 -7.

çava para o sul, o califa mobilizava as suas tropas, decidido a resistir ao invasor. Comandados pelo emir Mahmud Ahmad (ver fig. 4.6), os Ansar tentaram rechaçar, sem êxito, o inimigo perto do rio Atbara, em 8 de abril de 189832. Três

mil sudaneses foram mortos e mais de quatro mil feridos. O próprio Mahmud foi capturado e encarcerado em Roseta, no Egito, onde morreu alguns anos depois. Após a derrota de Atbara, o califa decidiu enfrentar o inimigo perto da capital, Omdurman, pois era evidente que os problemas de suprimento e de transporte lhe proibiam qualquer deslocamento importante de tropas. Os sudaneses combateram o inimigo com admirável coragem na batalha de Karari, a 2 de setembro de 189833. Mais uma vez o armamento superior do adversário

os derrotou. Quase 11 mil sudaneses foram mortos e perto de 16 mil feridos. Ao compreender que a batalha estava perdida, o califa retirou -se para leste da província de Kordofan, onde esperava reunir seus partidários e atacar o ini- migo na capital. Sua resistência foi um problema para a nova administração durante um ano, mas foi finalmente vencido na batalha de Umm Diwaykrat, a 24 de novembro de 1899. Após a batalha, o califa foi encontrado morto sobre o seu tapete de orações de pele de carneiro34; todos os demais chefes e generais

mahdistas tinham sido mortos ou capturados. O Estado mahdista desmoronou mas, enquanto realidade religiosa e política, o Mahdiyya sobreviveu.

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