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O quarto: subjetividade diluída

1.2 Cinco tentativas de fuga

1.2.3 O quarto: subjetividade diluída

O tema da loucura e da demência interessou o jovem Sartre; em 1927, traduz Psychopathologie, de Karl Jaspers143, em 1935 frequenta cursos de psiquiatria no Hospital

Sainte-Anne. Acompanhado de Simone de Beauvoir, visita um asilo psiquiátrico em Rouen no ano seguinte. Curioso sobre os efeitos das drogas no imaginário e na consciência, faz uso supervisionado de mescalina. O caso de amor levado à loucura de Louise Perron, uma amiga de Beauvoir, interessa à Beauvoir e a Sartre e, provavelmente, é a principal fonte de inspiração para a personagem Ève. Uma das questões investigadas por Sartre nesse período e que aparece, de alguma forma, em La chambre, é saber se a loucura é um tipo de projeto existencial e, em caso afirmativo, se é uma atitude autêntica144. Para o Sartre de O imaginário, existe uma experiência privilegiada que pode ajudar o homem a conceber o que seria uma consciência delirante, que parece perder seu ser-no-mundo e estar privada da categoria do real: experiência do sonho (I, p. 220). Sartre relaciona a alucinação ao sonho porque aquele que delira parece não ter consciência do real, assim como aquele que dorme, tudo se passa para ele no campo do imaginário, da fantasia, como um sonho145. O doente

vive no mundo imaginário, tomando uma imagem por uma percepção. A questão central de Sartre é, portanto, tentar desvendar como o doente acredita na realidade de uma imagem que se dá, por essência, como irreal (I, p. 195). O tema a ser investigado é, dessa forma, o da crença: o doente crê na alucinação ainda que ele saiba referir-se a algo irreal. Trata-se, segundo Sartre, com efeito, de uma decisão. O doente é aquele que realiza o irreal pela sua atividade criadora (I. p. 199)146.

Na Prière d’insérer, Sartre afirma que o mundo da loucura é o mundo do irreal: “Ève essaie de rejoindre Pierre dans le monde irréel et clos de la folie. En vain ; ce monde n’est qu’un faux-semblant et les fous sont des menteurs” (LES, p. 70) 147. Curioso que do

143“A la psychologie analytique et poussiéreuse qu’on enseignait à la Sorbonne, il souhaitait opposer une

compréhension concrète, donc synthétique, des individus. Cette notion il l’avait rencontré chez Jaspers, dont on

avait traduit en 1927 le traité de Psychopathologie écrit en 1913 ; avec Nizan, il avait corrigé les épreuves du texte français” (BEAUVOIR, 1960, p. 49).

144Cf. Beauvoir, 1960, pp. 192-206.

145Ainda que, segundo Sartre, não haja ruptura entre o real e o imaginário. Sobre o estatuto do sonho na obra

L’imaginaire, conferir o elucidativo artigo de Thana Mara de Souza (2015).

146Sobre o tema da imaginação e do imaginário, recomendo o artigo de Coorebyter, De Husserl a Sartre. La

structure intentionnelle de l’image dans L’imagination et L’imaginaire. Cf. Referências.

lado dos sãos, isto é, do Sr. e da Sra. Darbédat, Jeannette Darbédat padece de uma doença desconhecida e está tão enclausurada em seu quarto quanto seu genro, Pierre. Charles Darbédat tem horror aos doentes148 e preferiria que todos estivessem longe da sua vista,

presos em hospitais.

Ève, a filha dos Darbédat, é casada com Pierre, que enlouquecera muito jovem, provavelmente antes do casamento, mesmo que ninguém percebesse. Pierre e sua esposa vivem num apartamento grande num prédio velho. Para o pai, Ève havia herdado a sua natureza reta e lógica149, mas agora deixava-se levar pelos delírios de Pierre e isso,

certamente, o incomoda; afinal, o pai tem a mesma natureza científica e lógica, a filha deixar-se guiar pelas paixões e não pela reta razão representa uma afronta pessoal.

Como é natural e esperado de um espírito dotado de razão lógica, em que tudo o que se passa é calculado e planejado, toda quinta-feira o Sr. Darbédat mantém uma conversa rotineira, cansativa e premeditada com sua esposa e depois visita a filha Ève. A diferença deste dia é que a Sra. Darbédat conta ao marido que Ève e Pierre ainda têm relações sexuais. Indignado, o pai reage acusando a filha de perversão150. Durante sua visita à Ève, Sr.

Darbédat tenta convencê-la que o melhor a fazer é entregar os cuidados de Pierre a um hospício; Ève se nega e afirma amá-lo do modo como ele está atualmente. O pai se irrita e confronta a filha, dizendo que o que ela sente não pode ser amor:

Ce n’est pas vrai, dit M. Darbédat avec force. Ce n’est pas vrai : tu ne l’aimes pas ; tu ne peux pas l’aimer. On ne peut éprouver de tels sentiments que pour un être sain et normal. Pour Pierre, tu as de la compassion, je n’en doute pas, et sans doute aussi tu gardes le souvenir des trois années de bonheur que tu lui dois. Mais ne me dis pas que tu l’aimes, je ne te croirai pas. (Mu, p. 56).

chambre. Cf. IDT, 1972; LOUETTE, 2008. Por outro lado, Philippe Cabestan duvida que Sartre entenda a loucura como uma mera mentira, mas que ele se refere à mentira no sentido de inautenticidade ou má-fé. Cf. Cabestan, 2005, p. 605.

148“J’ai horreur des êtres malsains” e “Les malades l’agaçaient toujours eu peu – et tout particulièrement les

fous parce qu’ils avaient tort” (Mu, p. 50; 51).

149“Ève, au contraire, tenait de son père, c’était une nature droite et logique […]” (Mu, p. 53).

150“C’est de la perversité ! Il la prend dans ses bras et il l’embrasse en l’appelant Agathe et en lui débitant toutes

ses calembredaines sur les statues qui volent et je ne sais quoi ! […] Je la considérais comme veuve. Ecoute, Jeannette, dit-il d’une voix grave, je vais te parler franchement ; eh bien, si elle a des sens, j’aimerais encore mieux qu’elle prenne un amant !” (Mu, p. 47).

Numa tentativa desesperada de persuadir a filha, M. Darbédat revela que em três anos Pierre perderá completamente o juízo : “Pierre aura sombré dans la démence la plus complète, il sera comme une bête” (Mu, p. 56). Ève conhece o futuro da doença, ainda assim, o manterá consigo. “Tu es complétement folle” (Mu, p. 57), diz seu pai. O que o Sr. Darbédat reprova em Ève é estar à margem do humano: “Je lui reproche de vivre en dehors de l’humain. Pierre n’est plus un être humain: tous les soins, tout l’amour qu’elle lui donne, elle en prive un peu tous ces gens-là. On n’a pas le droit de se refuser aux hommes ; quand le diable y serait, nous vivons en société” (Mu, p. 58). Como um bom lógico, o Sr. Darbédat segue a definição aristotélica do homem como animal racional; tendo a racionalidade comprometida, Pièrre não apenas deixou de ser humano, como se tournou um ser impossível de ser amado. Coerente ainda com a visão aristotélica, o amor só existe entre iguais, por isso o amor de Ève por Pièrre é inconcebível.

Ève está entre a razão e a loucura. Ela não se sente mais confortável entre os normais, mas também não é louca, Ève não conhece exatamente o seu lugar: “Les normaux croient encore que je suis de leurs. Mais je ne pourrais pas rester une heure au milieu d’eux. J’ai besoin de vivre là-bas, de l’autre côté de ce mur. Mais là-bas, on ne veut pas de moi” (Mu, p. 62, grifo meu). A facticidade e a contingência da realidade humana colocaram Ève nessa situação: quando conheceu Pierre, o que mais lhe chamou atenção foi o seu encanto nervoso e a sutileza; entretanto, esse comportamento provavelmente já estava maculado pela loucura151. Ainda assim, ela diz que o ama e nesse amor visto pelo seu pai como antinatural,

Ève descobriu outra realidade, outra forma de perceber e viver a realidade152: “Pourtant, se

dit-elle avec angoisse, je ne les [os objetos, as coisas] vois plus tout à fait comme mon père. Ce n’est pas possible que je les voie tout à fait comme lui [Pièrre]” (Mu, p. 66). Pierre cria teorias sobre o comportamento deles, dos normais, daqueles que são sempre vistos como Outros; mesmo Ève, a quem Pierre chama Agathe, não merece total confiança, ele pensa que talvez ela seja uma traidora que está do lado deles.

151“Cette grâce nerveuse et cette subtilité qui avaient tant plu à Ève, quand il faisait sa cour, c’étaient des fleurs

de folie” (Mu, p. 50).

152Será, talvez, uma tentativa de pensar a consciência imaginante levada ao seu limite? Como se Sartre estivesse

testando a possibilidade de não um doente, mas um sadio, dirigir-se ao mundo de outra maneira como uma transição entre a consciência imaginante e a consciência perceptiva? Ou um ensaio do que seria o refúgio deliberado e refletido de viver permanentemente entre o irreal e o real?

Pierre pergunta o que aquele sujeito, M. Darbédat, veio fazer, Ève/Agathe conta que ele quer interná-lo. Pierre responde com ironia: “M’enfermer! Ils déraillent. Qu’est-ce que ça peut me faire, des murs? Ils croient peut-être que ça va m’arrêter. […] Les murs, ça se traverse” (Mu, p. 65). As paredes físicas não significam limites para Pierre, porque seu mundo acontece no campo do imaginário. Os limites que Pierre percebe são entre si e Agathe (Ève): “Il y a un mur entre toi et moi. Je te vois, je te parle, mais tu es de l’autre côté. Qu’est- ce qui nous empêche de nous aimer ? Il me semble que c’était plus facile autrefois” (Mu, p. 68). Apesar da doença degenerativa que aflige Pierre, algumas das suas elucubrações são dotadas de coerência interna. Os labirintos da consciência se mostram tão escuros em determinadas regiões que, mesmo seu cérebro degenerando a ponto de estar em completa invalidez dentro de um a três anos, a loucura de Pierre, vez por outra, dá espaço à reflexões e experiências de análise a respeito dos seus sentimentos e da sua vida. Pierre não teme as paredes e os muros porque eles não oferecem resistência, sua realidade não é externa, ela se passa, quase que exclusivamente, internamente. Da mesma forma, a loucura é o muro que separa Pierre de Ève e que os coloca em dimensões diferentes da realidade.

O muro entre Pierre e Ève designa, ao mesmo tempo, o obstáculo que Pierre observa entre ele e sua esposa e a “petrificação”153 da esposa em coisa. Pierre despersonaliza

Ève, chamando-a de Agathe. Ève aceita a mudança de nome que a desumaniza e a transforma em outra que não é ela porque Pièrre também é outro que não ele. Pierre ressignifica a esposa segundo a nova configuração que o mundo tem na sua mente perturbada. A mulher que vive com Pierre não é mais Ève, é Ágathe e Pièrre também não é mais o mesmo. A compreensão que ele tem agora dos objetos – que ganham vida e o ameaçam –, do mundo – circunscrito ao quarto – e de si mesmo – aquele que possui certo poder sobre as estátuas e se distingue dos demais porque entende como são as coisas – é completamente diferente, portanto, Agathe substituiu Ève, mas enquanto Ève não é totalmente Agathe, há um muro e ela está do lado de lá.

O conto traz um tipo de relação sexual e afetiva que causa espanto aos leitores, fazendo-nos questionar a sensatez de Ève. É usual pensarmos como M. Darbédat e esperar

153Ágata, além de um nome feminino, é um mineral do tipo quartzo, isto é, uma pedra. Pièrre, em francês,

também é nome próprio e o substantivo pedra. Será que Pièrre chama Ève com um nome de pedra por que quer tê-la novamente no seu mundo?

que ela interne seu marido e continue a viver a vida, considerando-se uma viúva, como disse o pai de Ève. Por outro lado, isso não seria também uma forma de fugir daquilo que a vida reservou? Podemos também perguntar se sua escolha em manter Pierre consigo não é, por sua vez, um outro tipo de fuga, uma fuga da sua própria vida, pois ela se encerra na existência marginal ao lado de Pierre, tenta entrar num mundo de delírios e loucuras que não são as suas, deseja vivê-las e senti-las como Pierre. Ève se esforça para ver as estátuas de Pierre154, para pensar como Pierre155, mas ela não deseja realmente a loucura de Pierre156. Ève

quer ser normal e imperceptível, alguém que apenas observa a loucura de Pierre157. De fato,

parece que Ève vive a vida louca de Pierre para não ter que viver a sua própria vida. Ève se esconde do outro lado do muro de Pièrre, Ève está para além do muro de pedras.

Enquanto o marido dorme, Ève divaga solitária sobre a evolução da doença do marido. Sempre que Pierre dorme, Ève teme que ele acordará completamente demente, sem que ela possa ainda identificar sequer um traço do seu amado: “Un jour, ces traits se brouilleraient, il laisserait prendre as mâchoire, il ouvrirait à demi des yeux larmoyants” (Mu, p. 76). A loucura de Pierre, contudo, causa horror e espanto à Ève. O horror é tamanho que Ève planeja matá-lo assim que ele perder seus últimos traços humanos. Enquanto houver um brilho de existência semelhante, ela o terá consigo. Ève toma para si a responsabilidade de decidir sobre a vida de Pierre, como se levasse até o limite a aliança matrimonial que sacramenta a união em um só corpo e um só espírito, dando poderes de decidir sobre o fim da vida de Pièrre como se decidisse sobre o fim da própria vida.

A última palavra de Pierre, antes de dormir, é récapitulation, uma palavra que saiu sem querer, “Ma belle démone! Tu me gênes un peu, tu es trop belle: ça me distrait. S’il ne s’agissait pas de récapitulation…” (Mu, p. 75) Na mesma hora Pierre se dá conta do equívoco, do lapso cometido: “Ce n’est pas ce mot-là... Il est venu... il est venu, dit-il en souriant d’un air vague. J’avais un autre sur le bout de la langue… et celui-là… s’est mis à sa place. J’ai oublié ce que je disais. […] Je ne trouve plus mes idées” (Mu, p. 75). Recapitulação, essa palavra que não tinha ligação nenhuma com o contexto em que foi dita,

154Cf. Mu, pp. 72-74.

155“C’est comme toi que je voudrais penser” (Mu, p. 70).

156“Il y a des moments où je deviens folle. Mais non, pensa-t-elle avec amertume, je ne peux pas devenir folle.

Je m’énerve, tout simplement” (Mu, p.67).

Pierre ao mesmo tempo em que ressaltava a beleza da esposa acusava-a de ser – exatamente pela sua aparência – uma distração. Em um certo sentido, todos os personagens de Sartre operam em algum nível uma recapitulação dos seus atos158, com a exceção de Pierre, cuja

tarefa de reavaliar o sentido das ações e das escolhas foi assumido por Ève. Ironicamente, o Pierre antes da loucura, é o único personagem de Le mur a se analisar em demasia, de pensar demais sobre as coisas, de refletir em exagero e sempre levar tudo muito a sério. A palavra vem à sua boca espontaneamente, sem nenhuma conexão com a frase precedente. Ève é bela, mas o incomoda, é ela quem recapitula as ações de Pierre sem recapitular as suas159 próprias

ações.

O final de La chambre pode fazer lembrar o final de Huis clos, cuja última fala “Eh bien, continuons!” (HC, p. 95), marca, justamente, a ideia de continuação, um final sem final, algo que não termina. O pai de Ève, M. Darbédat, é o Outro diante do qual Ève precisa continuamente recapitular e reafirmar as escolhas feitas, o seu projeto existencial, os motivos que a fazem continuar mantendo Pierre junto de si e os seus sentimentos em relação a Pierre. Convencer o pai que ama o marido é convencer a si mesma, explicar ao pai a razão de não internar Pierre é, cada vez recapitular e analisar para si mesma se não é chegado o momento de Pierre estar sob os cuidados de especialistas e se haverá algum dia esse momento.

Cada quinta-feira é esse momento em que Ève tem a chance de parar de fugir da sua própria existência, mas, semanalmente, ela opta em permanecer no muro. Cada dia em que M. Darbédat visita a filha, é o momento da recapitulação das suas escolhas, do seu projeto existencial e do sentido que Ève dá a sua vida e o sentido que Pierre tem na sua vida. A vida, personalidade e os interesses particulares de Ève são conhecidos pelas memórias e lembranças que seu pai revela sobre a filha e todas se referem ao período anterior à doença de Pierre; depois da loucura, nada mais de próprio e individual sobre Ève é revelado, toda a descrição da personagem é em relação a Pierre. Os atos de Ève não são seus, tampouco são atitudes de generosidade, como a de Bariona, por exemplo, nem representam o complexo de

158Recapitular é o ato de recuperar descritor nos Cahiers pour une morale como a origem da reflexão não

cúmplice: “L'origine de la réflexion est un effort de récupération du Pour-soi par soi-même, pour arriver à un Pour-soi qui soit Soi. Il convient donc que la réflexion ait pour but direct et essentiel le Pour-soi irréfléchi. Rien n'est important pour elle que le Pour-soi. Dans la réflexion morale complice, ce qui importe c'est l'être moral du réfléchi. Il s’agit de vouloir le Bien (dans l'irréflexion) pour être moral”. (CPM, p. 12)

159Jean-François Louette propõe outras cinco interpretações para o significado de récapitulation. Cf. Louette,

inferioridade que Sartre descreverá em L’être et le néant. A relação de Ève com Pierre também não é a relação amorosa que Sartre descreve em L’être et le néant, pois não há um Outro em Pierre do qual ela pode se apossar160.

Ève se refugiou da sua própria existência na existência de Pierre, não há mais Ève por si só. O relacionamento com Pierre é o lugar seguro onde Ève se esconde de viver e enfrentar a própria existência e se perde num universo que não exige dela fazer face à própria realidade. Ela escolheu fugir da relação intersubjetiva entregando-se à relação quase unilateral com Pierre. Escamoteando o mundo exterior, ela se perde e se tranca no imaginário de Pierre. Ève faz do seu casamento um muro para não ter que uma experiência autêntica e original de si, dos outros e da vida em sociedade.