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Olhar, conflito e presença

No documento Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre (páginas 140-143)

1.4 Huis clos: entre o conflito e a ajuda

1.4.2 Olhar, conflito e presença

Huis clos é uma história que tematiza, especialmente, a intersubjetividade, o ser- para-outro e as relações concretas com o outro227. Pensar o estatuto do outro e a

intersubjetividade a partir de Huis clos traz um elemento fundamental de transição228 e

reenvia a dois princípios de L’être et le néant: 1. o olhar e 2. o conflito, ambos tidos como bases das relações concretas com o Outro.

O cenário de Huis clos é o inferno: um salão decorado no estilo Segundo Império Francês. Os três personagens principais estão mortos e chegam ao inferno, um mordomo – personagem menor – os recebe. A peça é composta de cinco cenas em apenas um ato; não há pausas; as cenas seguem ininterruptamente. O inferno de Sartre é um universo onde não se escapa jamais às relações intersubjetivas, é impossível evitar a presença ao outro já que não faz noite nunca e não se dorme jamais. É um inferno onde todas as defesas contra o outro229

são cuidadosamente suprimidas, e o verdadeiro eu é revelado pelo olhar do outro sem que eu o conheça. A indicação da importância do olhar é encontrada desde o início da primeira cena, quando Garcin sente falta de espelhos e lamenta a inexistência das pálpebras, o que levará os condenados à confrontação ininterrupta com o olhar/a presença dos outros230.

A centralidade do olhar como tema da fenomenologia do outro de Sartre e seu uso recorrente na ficção, como a metáfora da ausência de espelhos, indicam a riqueza teórica deste tema e, em especial, a relação existente entre a filosofia e a ficção de Sartre. O problema do olhar tornou-se ainda mais relevante durante a Ocupação, pois os alemães se tornaram o Grande Outro supervisionando e vigiando os cidadãos franceses: “L’occupation, ce n’était pas seulement cette présence constante des vainqueurs dans nos villes : c’était aussi sur tous les murs, dans les journaux, cette immonde image qu’ils voulaient nous donner de nous-mêmes” (Sit III, p. 35).

O olhar reenvia à presença do outro, ao ser-visto (être vu)231. Em um movimento

recíproco, ver e ser visto demonstram ao mesmo tempo a objetivação que o outro é capaz de

227A peça se chamava, inicialmente, Les autres. (Cf. LES, p. 98). 228O apelo à ajuda, que será apresentado em 1.3.3 Para além do conflito.

229“Ainsi, être vu me constitue comme un être sans défense pour une liberté qui n’est pas ma liberté” (EN, p.

306).

230Cf. HC, p. 17.

fazer e, consequentemente, a alienação sofrida com a presença do outro. A relação com o outro é descrita por Sartre analogamente à relação senhor-escravo, não em sentido histórico e passível de ser ultrapassada, mas em sentido ontológico, como condição própria de meu ser: En tant que je suis objet de valeurs qui viennent me qualifier sans que je puisse agir sur cette qualification, ni même la connaître, je suis en esclavage. Du même coup, en tant que je suis l'instrument de possibilités qui ne sont pas mes possibilités, dont je ne fais qu'entrevoir la pure présence par delà mon être, et qui nient ma transcendance pour me constituer en moyen vers des fins que j'ignore, je suis en danger. Et ce danger n'est pas un accident, mais la structure permanente de mon être- pour-autrui. (EN, p. 306).

O outro me priva da minha liberdade, pois quando ele me olha não sei quem sou para ele. Em sentido negativo de indeterminação da liberdade, o olhar do outro me faz prisioneiro de sua percepção. Isso significa que o olhar do outro me determina, pois me fixa no instante em que sou visto, me aprisiona nisto e como o isto que ele viu. No momento de sendo visto não sou para o outro nada além do que ele pensa sobre mim. Nesse movimento, o outro é aquele que me aliena e mata minhas possibilidades de ser (EN, p. 311). O outro é aquele que me capta de uma certa maneira que me escapa, de um modo que ignoro completamente, mas que sou eu mesmo assim232.

Em geral, o fato de ver a própria imagem refletida no espelho pode amenizar a sensação desconfortável de nudez e fragilidade frente ao outro, pois permite ver-se como o outro vê. O reflexo no espelho se assemelha à percepção que o outro tem de mim, é quase como me ver da forma que os outros me veem. De alguma maneira, o espelho devolve a imagem que lhe ofereço, ele dá uma ideia da imagem que o outro tem de mim.

Importante observar que o conceito de olhar não se refere, exclusivamente, ao voltar-se do globo ocular: “ils ne renvoient donc jamais aux yeux de chair […]” ; contudo, “[...] saisir un regard n’est pas appréhender un objet-regard dans le monde […], c’est prendre conscience d'être regardé” (EN, pp. 297 ; 298). O olhar, o ser visto, não significam apenas dar-se conta da presença física do outro, mas o fato que “[...] je suis vulnérable [...]” (EN, p. 298). A presença do outro expõe a fragilidade física, corporal e moral daquele que é visto. É sempre diante do outro que se tem vergonha, por exemplo, pois a indignidade de um ato é

conhecida e devolvida através dos olhos do outro. A vergonha só pode existir para o outro, a vergonha “est honte de soi, elle est reconnaissance de ce que je suis cet objet qu’autrui regarde et juge” (EN, p. 300); assim, naquilo que o outro enxerga e julga, eu me reconheço: é meu ato, sou eu. Quando o outro me observa, ele toma conhecimento do que sou por uma ação petrificada no tempo. A vergonha é um “sentiment de chute originelle, non du fait que j’aurais commis telle ou telle faute, mais simplement du fait que je suis ‘tombé’ dans le monde, au milieu des choses” (EN, p. 336). A vergonha não tem origem na má ação, mas na objetivação que o outro faz de mim pelo meu ato, o outro me cola nesta ação e termina por identificar-me à ela e a nada mais, ou seja, me envergonho porque o outro me capta como uma coisa entre as coisas, sem que eu tenha chance de defesa.

Longe de alcançar a totalidade do ser visto, o olhar apreende um ato e o cristaliza na eternidade daquele momento, de onde emerge toda a objetivação daquele que olha. O sujeito olhado será transformado no objeto do meu julgamento, reduzido a uma única peça, alterado em um todo alienado no mundo. Em presença do outro, uma parte de quem sou eu se desprende de mim em sua direção e retorna a mim por meio dele: “Et ce moi que je suis, je le suis dans un monde qu’autrui m’aliéné, car le regard d’autrui embrasse mon être et corrélativement les murs, la porte, la serrure; toutes ces choses-utensiles, au milieu desquelles je suis, tournent vers l’autre une face qui m’échappe par principe” (EN, p. 300).

A ausência de espelhos, de noites, de pálpebras, obriga os condenados ao inferno à confrontação pura com o outro e a entrega pura de si ao outro, não sabem que imagem o outro vê de si. Na relação com o outro, nesse momento preciso em que duas consciências se olham, uma torna-se sujeito que olha e a outra o objeto que é olhado. Na ausência de reflexo233, os personagens devem servir de espelho uns aos outros. A observação de Estelle

“Je suis si petite” (HC, p. 46), vendo-se nos olhos de Inès, reproduz bem a preocupação que temos em relação à nossa própria imagem frente ao outro e o poder que o outro tem em relação à minha imagem: o olhar do outro sempre me capta de maneira inferiorizada.

Essa conceituação da relação intersubjetiva rapidamente descrita aqui, é hiperbolicamente construída na trama de Huis clos. Os personagens estão mortos,

233A ausência de reflexo também pode ser lida como uma ausência de reflexão, uma vez que os personagens

evitam a todo custo falar de si, a tornar claro para si e para os outros seus projetos e seus atos; evitam o confronto honesto consigo e com os verdadeiros crimes que os levaram ao inferno.

condenados ao inferno como consequência das ações cometidas no passado, quando eram vivos. O ato que os manda ao inferno é potencializado ao máximo em relação à objetivação que o outro pode fazer: cada personagem do drama não é nada mais que seu ato criminoso com toda força e em toda essência. Por mais que os personagens recusem a imagem negativa que carregam – e que de algum modo eles próprios têm de si –, o olhar do outro denunciará constantemente seus erros e fracassos.

Inicialmente, Estelle e Garcin lamentam e se envergonham dos seus crimes; Inès, ao contrário, não se lamenta, parece sentir orgulho do seu sadismo. Os primeiros se refugiaram mutuamente numa imagem distorcida de si mesmos, criaram uma máscara e se escondem atrás dela. Estelle se declara a garota órfã e pobre que se casa com um velho para garantir sua sobrevivência e a do irmão menor; Garcin, por sua vez, se autoproclama um pacifista, um herói que recusa a guerra por ideologia. Cada olhar dirigido a qualquer um dos condenados denuncia a existência de um criminoso. No inferno, os três personagens de Huis clos serão por toda a eternidade seus crimes cometidos.

No documento Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre (páginas 140-143)