• Nenhum resultado encontrado

5.3 Propriedade intelectual e Direitos Humanos

5.3.3 Fundamentalidade Material

5.3.3.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948, surgiu logo após os horrores da Segunda Guerra Mundial e procurou proclamar da forma mais completa

315 BUAINAIN, Antonio Márcio. CARVALHO, Sérgio Paulino. Propriedade intelectual em um mundo globalizado. In: PARCERIAS ESTRATÉGICAS. Nº 9. Outubro/2000. p.145-153. p. 148. Disponível em: <http://ftp.unb.br/pub/download/ipr/rel/parcerias/2000/1918.pdf>. Último Acesso em 21.08.2006.

possível o conjunto de direitos que deveriam ser respeitados por todos os povos, sob pena da ocorrência de novas atrocidades. Nessa linha de raciocínio, fica claro o conteúdo da mensagem presente no preâmbulo da declaração:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homen conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem;316

A pretensão do documento é, portanto, indicar quais direitos são indispensáveis à tessitura das relações sociais e demandam o respeito de todos os indivíduos e instituições, sob pena de suas violações levarem a um cenário de barbárie e revolta da consciência. Em suma, trata-se de um patamar mínimo de civilidade global para a existência de paz.

A Declaração, que é o documento por excelência na ordem internacional a caracterizar e a indicar que direitos são tidos por direitos humanos, possui um artigo específico que se correlaciona com os direitos de propriedade intelectual. Observe-se o art. 27:

Artigo 27°

1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.

2. Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.317

Esta cláusula é amplamente referenciada no plano internacional como um dos argumentos principais para que os Estados adotem formas de proteção aos interesses individuais em criações intelectuais. Por outro lado, o dispositivo referencia em primeiro plano o direito que assiste a toda pessoa de participar e beneficiar-se da vida cultural e dos progressos do desenvolvimento técnico-científico.

316Universal Declaration of Human Rights. Aprovada e adotada pela Resolução 217 A (III) de 10 de dezembro de 1948. No original: Whereas recognition of the inherent dignity and of the equal and inalienable rights of all

members of the human family is the foundation of freedom, justice and peace in the world, Whereas disregard and contempt for human rights have resulted in barbarous acts which have outraged the conscience of mankind, and the advent of a world in which human beings shall enjoy freedom of speech and belief and freedom from fear and want has been proclaimed as the highest aspiration of the common people,

317 Universal Declaration of Human Rights. No original: Article 27.(1) Everyone has the right freely to

participate in the cultural life of the community, to enjoy the arts and to share in scientific advancement and its benefits. (2) Everyone has the right to the protection of the moral and material interests resulting from any scientific, literary or artistic production of which he is the author.

Nesse ponto, constata-se que o artigo 27 não foge da tensão e contraponto básico que permeiam os direitos de propriedade intelectual, o perfil duplo de tais direitos – público e privado. Faz-se necessária à proteção dos interesses individuais, porém como forma de benefício da sociedade como um todo.

Se a primeira parte do artigo fosse promulgada sozinha, poderia ser interpretada como uma simples proclamação da possibilidade de participação cultural, porém o segundo item confirma que o escopo do artigo é garantir que a proteção do indivíduo não se torne tal que viabilize o acesso dos demais à cultura e ao desenvolvimento humano. Os itens não devem inviabilizar-se mutuamente, pelo que é necessária a harmonização dos mesmos.

Essa busca constante de um equilíbrio entre a função social e a proteção dos interesses individuais torna-se ainda mais marcante com a observação da história da redação da cláusula. Nas compilações iniciais das cláusulas discutidas pelas comissões responsáveis dela declaração, a cláusula somente incluía a primeira parte do artigo 27.318

Essa liberdade de participação ganhou especial ênfase com a manifestação do representante peruano José Encinas, ao indicar que um direito limitado apenas à participação não é suficiente. Deveria a declaração enfatizar a liberdade que o pensamento criativo deve possuir, livre de pressões negativas tão freqüentes no contexto histórico de então. Dessa forma, a inclusão da expressão “livremente” foi inserida com ampla aprovação.319

Esta idéia de que a fruição do pensamento criativo e a possibilidade de participação dos benefícios do desenvolvimento técnico-científico e cultural da humanidade são direitos humanos deve ser guardada, pois contém uma série de implicações tanto para o direito internacional quanto para a percepção da ordem constitucional interna.

O segundo item do artigo 27, por sua vez, foi objeto de intensos debates, especialmente pelo fato do sistema anglo-americano de proteção aos direitos literários – o copyright – enfatizar a proteção no caráter econômico de tais direitos, em contraponto ao regime continental europeu – o droit d’auter.

A segunda parte do artigo somente foi inserida após intensas discussões e revisões. Destaque-se que a participação dos países latino-americanos foi essencial, pois

318 YU, Peter K. Reconceptualizing Intellectual Property Interests in a Human Rights Framework. In: UC Davis

Law Review Symposium – Intellectual Property & Social Justice. Vol. 40. p. 1039-1149. 2006. p. 1052.

naquele momento histórico, os Estados Unidos ainda não eram signatários da Convenção de Berna, que preconizava uma proteção ao autor também num viés de cunho moral.320

A declaração dos direitos humanos é, portanto, outro forte argumento para que os direitos de propriedade intelectual sejam repensados sob uma ótica de direitos humanos e com todas as implicações que esta possui.

5.3.3.2 A Convenção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais