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5.3 Propriedade intelectual e Direitos Humanos

5.3.2 Direitos de Propriedade Intelectual,

Verificando-se as sistemáticas dos principais tratados internacionais é possível vislumbrar a propriedade intelectual como sendo exatamente o conjunto de normas que estabelece a forma de benefício individual e, com suas limitações, o acesso da coletividade aos bens intelectuais.

Logo, é possível dizer que o sistema de propriedade intelectual é o mecanismo jurídico que garante eficácia aos direitos humanos reconhecidos nos tratados internacionais, especialmente em relação aos direitos sociais, econômicos e culturais. Flávia Piovesan destaca que estes últimos são essenciais à própria existência dos direitos humanos:

(...) ressalta-se que não há direitos humanos sem que os direitos econômicos, sociais e culturais estejam garantidos.

Isto é, em face da indivisibilidade dos direitos humanos, há de ser definitivamente afastada a equivocada noção de que uma classe de direitos (a dos direitos civis e políticos) merece inteiro reconhecimento e respeito, enquanto outra classe de

direitos (a dos direitos sociais, econômicos e culturais), ao revés, não merece qualquer observância. Sob a ótica normativa internacional, está definitivamente superada a concepção de que os direitos sociais, econômicos e culturais não são direitos legais. A idéia da não-acionabilidade dos direitos sociais é meramente ideológica e não científica. São eles autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis e demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como caridade, generosidade ou compaixão.321

Na opinião deste trabalho, é possível derivar dos tratados internacionais a conclusão de que o sistema de propriedade intelectual conjuga em si a conciliação de dois direitos humanos: o direito de cada ser humano, enquanto potencial criador ou inventor, de beneficiar-se das próprias criações intelectuais e o direito de todo ser humano de beneficiar-se do progresso científico e cultural da comunidade da qual fazer parte.

Os direitos de propriedade intelectual não só efetivam o primeiro, como ao fazerem isso, estimulam o desenvolvimento de novos bens intelectuais. Ao serem limitados em escopo, ou seja, na quantidade de usos exclusivos da informação ou conhecimento, garantem a efetividade do segundo, pois permitem a utilização daquele conhecimento por parte dos membros da comunidade. Ao serem limitados temporalmente, garantem que haverá um fluxo contínuo de novos conhecimentos ao patrimônio comum, ao “domínio público”, que servirá de fundamento para novas criações e invenções.

Assim, a efetivação desses dois direitos humanos, pressupõe um sistema de propriedade intelectual devidamente equilibrado, ou seja, que consegue conjugar com máxima eficiência o benefício atribuído aos autores e inventores e o amplo acesso aos conhecimentos por parte da coletividade.

Corroborando este entendimento, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, órgão vinculado ao Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, que monitora a efetivação do Pacto, adotou a Recomendação Geral nº 17322, onde consta uma série de indicações aos estados membros sobre como proceder à efetivação do direito humano de gozar de proteção dos interesses morais e materiais sobre as criações artísticas e científicas de forma adequada e balanceada.

O documento ainda retrata uma série de possíveis restrições ao sistema de propriedade intelectual para que o reconhecimento dos direitos dos autores e criadores não

321 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Propriedade Intelectual. 2007. Disponível em: <http://www.culturalivre.org.br>. Acesso em: 08/08/08. p. 10-11.

322 General Comment No. 17 de 12/01/2006. Documento E/C.12/GC/17. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/E.C.12.GC.17.En?OpenDocument>. Acesso em: 08/08/08.

seja excessivo a ponto de comprometer outros direitos humanos, como os relativos à alimentação, saúde, ensino e de participar da vida cultural e de desfrutar o progresso científico.

A propriedade intelectual é expressamente reconhecida como um produto social e, portanto, possuidora de uma função social. Assim, dentro de uma perspectiva de direitos humanos, o equilíbrio é elemento essencial de qualquer sistema jurídico que pretenda tutelar as criações intelectuais:

The right of authors to benefit from the protection of the moral and material interests resulting from their scientific, literary and artistic productions cannot be isolated from the other rights recognized in the Covenant. States parties are therefore obliged to strike an adequate balance between their obligations under article 15, paragraph 1 (c), on one hand, and under the other provisions of the Covenant, on the other hand, with a view to promoting and protecting the full range of rights guaranteed in the Covenant.

In striking this balance, the private interests of authors should not be unduly favoured and the public interest in enjoying broad access to their productions should be given due consideration. States parties should therefore ensure that

their legal or other regimes for the protection of the moral and material interests resulting from one’s scientific, literary or artistic productions constitute no impediment to their ability to comply with their core obligations in relation to the rights to food, health and education, as well as to take part in cultural life and to enjoy the benefits of scientific progress and its applications, or any other right enshrined in the Covenant. Ultimately, intellectual property is a social product

and has a social function. States parties thus have a duty to prevent unreasonably high costs for access to essential medicines, plant seeds or other means of food production, or for schoolbooks and learning materials, from undermining the rights of large segments of the population to health, food and education. Moreover, States parties should prevent the use of scientific and technical progress for purposes contrary to human rights and dignity, including the rights to life, health and privacy, e.g. by excluding inventions from

patentability whenever their commercialization would jeopardize the full realization of these rights

States parties should also consider undertaking human rights impact assessments prior to the adoption and after a period of implementation of legislation for the protection of the moral and material interests resulting from one’s scientific, literary or artistic productions.323 (grifado e negritado)

323 General Comment No. 17 de 12/01/2006. Documento E/C.12/GC/17. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/E.C.12.GC.17.En?OpenDocument>. Acesso em: 08/08/08. Na versão original da Resolução em Espanhol: “El derecho de los autores e inventores a beneficiarse de la protección de los intereses morales y materiales que les correspondan por razón de sus producciones científicas, literarias y artísticas no puede considerarse independientemente de los demás derechos reconocidos en El Pacto. Por consiguiente, los Estados Partes tienen la obligación de lograr un equilibrio entre lãs obligaciones que les incumben en el marco del apartado c) del párrafo 1 del artículo 15, por um lado, y las que les incumben en el marco de otras disposiciones del Pacto, por el otro, a fin de promover y proteger toda la serie de derechos reconocidos en el Pacto. Al tratar de lograr esse equilibrio, no deberían privilegiarse indebidamente los intereses privados de los autores y debería prestarse la debida consideración al interés público en el disfrute de un acceso generalizado a SUS producciones26. Por consiguiente, los Estados Partes deberían cerciorarse de que sus regímenes legales o de otra índole para la protección de los intereses morales o materiales que correspondan a las personas por razón de sus producciones científicas, literarias o artísticas no menoscaben su capacidad para cumplir sus obligaciones fundamentales en relación con los derechos a la alimentación, la salud y la educación, así como a participar en la vida cultural y a gozar de los beneficios del progreso científico y de sus aplicaciones, o de cualquier otro derecho reconocido en el Pacto. En definitiva, la propiedad intelectual es un producto social y tiene una función social. Así pues, los Estados tienen el deber de impedir que se impongan costos

O equilíbrio do sistema de propriedade intelectual é expressamente consignado como uma responsabilidade estatal em face dos direitos humanos, cumulando-se, ainda, um dever do Estado de coibir abusos na utilização dos direitos de propriedade intelectual.

Assim, não seria de todo descabido imaginar que o duplo perfil da propriedade intelectual encontra sua síntese na idéia de “um sistema equilibrado”, sendo ainda possível afirmar que existiria um direito difuso da coletividade a esse equilíbrio. Faz-se necessária, portanto, não só uma legislação que assegure esse equilíbrio, como toda uma atuação estatal voltada a esta finalidade.

Denis Borges Barbosa ressalta que a harmonização desse duplo perfil se faz através da aplicação do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, relevante tanto para a elaboração como para a interpretação das normas jurídicas:

Dois óbvios resultados derivam da aplicação do princípio da razoabilidade: um, na formulação da lei ordinária que realiza o equilíbrio, que deve – sob pena de inconstitucionalidade ou lesão de princípio fundamental - realizar adequadamente o equilíbrio das tensões constitucionais; a segunda conseqüência é a de que a interpretação dos dispositivos que realizam os direitos de exclusiva deve balancear com igual perícia os interesses contrastantes.324

Os abusos exemplificados no capítulo passado revelam desequilíbrios atuais do sistema, decorrentes não só da expansão dos direitos exclusivos, como também da utilização prática em detrimento de suas finalidades sociais.

Flávia Piovesan coloca em destaque que o real conflito muitas vezes não é a proteção ao autor (ou inventor) frente os interesses da coletividade, mas sim a exploração comercial abusiva dos bens intelectuais:

irrazonablemente elevados para el acceso a medicamentos esenciales, semillas u otros medios de producción de alimentos, o a libros de texto y material educativo, que menoscaben el derecho de grandes segmentos de la población a la salud, la alimentación y La educación. Además, los Estados deben impedir el uso de los avances científicos y técnicos para fines contrarios a la dignidad y los derechos humanos, incluidos los derechos a la vida, la salud y la vida privada, por ejemplo excluyendo de la patentabilidad los inventos cuya comercialización pueda poner en peligro el pleno ejercicio de esos derechos29. En particular, los Estados Partes deberían estudiar en qué medida la comercialización del cuerpo humano o de sus partes puede afectar las obligaciones que han contraído en virtud del Pacto o de otros instrumentos internacionales pertinentes de derechos humanos30. Los Estados deberían considerar asimismo la posibilidad de realizar evaluaciones del impacto en los derechos humanos antes de aprobar leyes para proteger los intereses morales y materiales que correspondan por razón de lãs producciones científicas, literarias o artísticas, así como tras un determinado período de aplicación”.

324 BARBOSA, Denis Borges. Bases constitucionais da propriedade intelectual. Revista da ABPI. Rio de Janeiro, n. 59, p. 16-39, jul/ago. 2002. p. 27.

(...) à luz dos direitos humanos, o direito à propriedade intelectual cumpre uma função social, que não pode ser obstada em virtude de uma concepção privatista deste direito que eleja a preponderância incondicional dos direitos do autor em detrimento da implementação dos direitos sociais, como o são, por exemplo, à saúde, à educação e à alimentação. Observe-se ainda que, via de regra, o conflito não envolve os direitos do autor versus os direitos sociais de toda uma coletividade; mas, sim, o conflito entre os direitos de exploração comercial (por vezes abusiva) e os direitos sociais da coletividade.

Reitere-se que, muitas vezes, quem exerce esse direito não é propriamente o autor/inventor, mas as grandes empresas a preços abusivos ou como reserva de mercado via estratégias de patenteamento.325

Assim, dos tratados e convenções internacionais, verifica-se a importância que o sistema de direitos de propriedade intelectual desempenham na efetivação dos direitos humanos.

Se, no plano internacional, os direitos de propriedade intelectual podem ser reconhecidos como direitos humanos, sua positivação constitucional e seu impacto no desenvolvimento cultural, científico e tecnológico garantem o seu reconhecimento no rol de direitos fundamentais da constituição pátria – formal e materialmente.

5.3.3 Direitos de Propriedade Intelectual e Direitos Fundamentais de Quarta e