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5.3 Propriedade intelectual e Direitos Humanos

5.3.3 Direitos de Propriedade Intelectual e

Os direitos fundamentais são usualmente agrupados de forma a refletir o momento histórico e as agendas subjacentes ao processo de afirmação destes frente a determinados contextos políticos. Uma forma tradicional e didática de representá-los é com a metáfora de gerações de direitos. George Marmelstein assim sintetiza as gerações:

“(...) a primeira geração dos direitos humanos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté), que tiveram origem com a Revolução Francesa e as demais revoluções burguesas. A segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (égalité), ocasionada pela Revolução Industrial e com os problemas sociais por ela causados. Por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité), que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.”326

325 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Propriedade Intelectual. 2007. Disponível em: <http://www.culturalivre.org.br>. Acesso em: 08/08/08. p. 22.

326 LIMA, George Marmelstein. Efetivação Judicial dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza. 2005. p. 60.

O autor prossegue criticando a teoria das gerações por criar a ilusão de que há uma progressividade linear na evolução dos direitos fundamentais, quando na verdade a mesma é pautada por avanços, retrocessos e contradições.

Em realidade, existiriam dimensões de direitos fundamentais voltadas para objetivos específicos na relação entre Estado e indivíduo e até mesmo indivíduo-indivíduo.327 Contudo, a idéia de gerações ainda é utilizada de forma contínua na doutrina, pelo seu valor didático.

Relevante para os propósitos deste trabalho é a formulação doutrinária moderna de direitos fundamentais de terceira e de quarta geração.

Safira Meirelles do Prado, identificado o surgimento dos direitos de terceira geração com o contexto internacional do pós-guerra, na segunda metade do século XX, aponta que o objeto de tutela são direitos difusos, não do homem individualizado, mas da própria humanidade:

(...) os direitos fundamentais de terceira geração revelam-se como protetores, não do homem enquanto ser individualizado, mas enquanto ser pertencente à coletividade. Deste modo, a titularidade destes direitos é difusa ou coletiva. Neste rol podemos enumerar o direito à paz, à solidariedade, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento sustentável, ao meio ambiente.328

Ressaltando a sua natureza internacional e de estreita vinculação ao progresso cultural e científico, José Adércio Leite Sampaio, assim os exemplifica:

No plano internacional, os direitos culturais ganham força para além do desenvolvimento cultural e identitário, no direito à igual participação na herança comum da humanidade e ao compartilhamento dos benefícios obtidos pelos avanços científicos, e, ainda conexionados coma a política e a revolução dos meios de informação, o direito à comunicação.

[...]

Tem-se a afirmação do direito ao desenvolvimento sustentável e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; tanto quanto, para alguns, incluem-se os direitos que contextualizam no plano global a proteção à saúde, de modo a tornar acessíveis, sem as barreiras das patentes, remédios para doenças graves como a AIDS.

Há pensadores que restringem os direitos dessa geração a um só: o direito ao desenvolvimento, com o objetivo de criar uma ordem internacional mais justa.329

Fica patente a direta vinculação dos direitos de propriedade intelectual aos direitos fundamentais de terceira geração, especialmente se vislumbrados dentro da proposta de

327 LIMA, George Marmelstein. Efetivação Judicial dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza. 2005. p. 60 et seq. 328 PRADO, Safira Orçatto Merelles; O Controle Judicial dos Serviços Públicos sob a Perspectiva de

Concretização de Direitos Fundamentais. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade

Federal do Paraná. Curitiba. 2007. p. 8.

concepção delineada no presente capítulo – como um direito humano a um sistema equilibrado de incentivos à produção intelectual e de garantias de acesso.

A internacionalização do sistema de propriedade intelectual, por sua vez, impacta diretamente sobre o modelo de desenvolvimento a ser adotado pelas nações, especialmente, no tocante aos conhecimentos e informações necessários aos países em desenvolvimento para uma tutela efetiva de direitos fundamentais como a saúde, por exemplo.

O exemplo citado por José Adércio aborda a questão do acesso à saúde pública em face dos direitos de patentes. Tal exemplo, porém, é mero corolário de uma formulação mais abrangente, o direito humano de beneficiar-se da evolução cultural e tecnológica da humanidade.

Esse direito humano geral reflete-se não só no imperativo de acesso a tecnologias necessárias à manutenção da vida humana – remédios, tratamentos, vacinas – como na possibilidade de acesso às informações e conhecimentos necessários à efetivação do princípio da dignidade humana.

O sistema de propriedade intelectual, em sua perspectiva global-internacional, deve ser talhado para atender essa efetivação dos direitos fundamentais de terceira geração relativos ao desenvolvimento.

Nesse particular, cabe um comentário sobre a posição e atuação do Brasil frente à OMPI. Realizou-se, em setembro de 2004, uma Assembléia Geral da OMPI aonde Brasil e Argentina, conduzindo um grupo de quinze países que veio a ser identificado como o “Grupo de Amigos do Desenvolvimento”, apresentaram o documento WO/GA/31/1 – “Proposta da Argentina e Brasil para o estabelecimento de uma agenda de desenvolvimento para a OMPI”.

A Agenda do Desenvolvimento foi finalmente adotada, após três anos de sua propositura inicial, em 28 de setembro de 2007. As 45 recomendações feitas pelo então Comitê Provisório sobre uma Agenda para o Desenvolvimento foram aceitas por unanimidade na OMPI. Através do Documento WIPO – WO/GA/34/16330, o Comitê provisório deixa de existir e passa a dar lugar ao novo CDIP – Comitê sobre Desenvolvimento e Propriedade Intelectual.

A adoção da Agenda para o Desenvolvimento é um claro exemplo do progressivo entrelaçamento dos conceitos de propriedade intelectual e desenvolvimento na atualidade.

Desse binômio, também surgem importantes questões sobre acesso ao conhecimento e informação frente aos novos paradigmas sociais, culturais, científicos e tecnológicos, já apontando, possivelmente, para uma quarta geração de direitos fundamentais.

Da análise de José Adércio sobre as diversas correntes doutrinárias que apresentam formulações do conteúdo dos direitos fundamentais de quarta geração, fica clara uma preocupação recorrente da efetivação da dignidade humana frente aos avanços tecnológicos:

Também incluiriam limites ou restrições aos avanços da ciência e especialmente da biotecnologia nos domínios de interferência com a liberdade, a igualdade e dignidade humanas. Assim, temos os direitos bioéticos ou biodireitos, referidos à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia. (...) Lembremos da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e Dignidade do Ser Humano de 1997 e da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos do Homem de 1997, que proíbem discriminações com base em herança genética e a clonagem humana.

[...]

A propósito dos avanços científicos, uma quarta orientação analisa a proteção da dignidade humana, independentemente do gênero, contra os possíveis abusos do progresso tecnológico como integrante da quarta geração(...).

[...]

Não falta quem a veja como um era de “direitos de aspiração” ou de “auto- realização” de todas as potencialidades do homem, inclusive as latentes e as relativas a formas mais altas e dignas do ser, o que pressupõe o atendimento das necessidades básicas, como indivíduo isolado e como membro de um grupo social, tanto de ordem material, social, política, cultural e psicológica quanto de natureza econômica e intelectual (...).331

Com base nos exemplos ofertados, verifica-se um o ponto de convergência dos doutrinadores em relação direitos fundamentais de quarta geração. Os direitos parecem gravitar em torno da idéia de que as novas potencialidades ofertadas ao indivíduo em razão das progressivas revoluções tecnológicas devem encontrar limites na mesma pauta ética de valores que informa os demais direitos fundamentais.

Os direitos de propriedade intelectual são exatamente um dos segmentos mais expressivos do ordenamento jurídico que regulam as relações entre a sociedade, informações, conhecimentos e tecnologia. Mais que isso, a forma como são talhadas as normas de propriedade intelectual vai refletir um maior ou menor compromisso social com o livre fluxo de idéias que, por sua vez, é premissa vital para a existência de uma sociedade livre e democrática.332

331 SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 298 et seq. 332 MCLEOD, Kembrew. Freedom of Expression – Resistance and Repression in the Age of Intellectual

Parece também ser ponto central da idéia de direitos fundamentais de quarta geração o reconhecimento de que os avanços científicos e tecnológicos implicam numa ampliação das necessidades básicas do ser humano, determinando assim uma redefinição do princípio e do próprio conceito de dignidade da pessoa humana.

Na lição de Emmanuel Teófilo Furtado,

Destarte, o princípio da dignidade da pessoa humana assegura um mínimo necessário ao homem tão só pelo fato de ele congregar a natureza humana, sendo todos os seres humanos contemplados de idêntica dignidade, tendo, portanto, direito de levar uma vida digna de seres humanos.333

Esse mínimo essencial não é estanque, sofrendo necessariamente uma ampliação na mesma proporção de desenvolvimento da humanidade. Do contrário, se estaria a reduzir de maneira injustificada o patamar de direitos dos indivíduos frente à evolução da sociedade e dos novos direitos que se agregam a interpretação do que vem a ser a dignidade.

Uma área onde fica clara essa mudança de paradigma na aferição dos elementos constitutivos da dignidade humana é a seara da informação. Há um consenso que a humanidade está vivenciando uma “Revolução Digital”, que determinou a mudança da “Sociedade Industrial” para a “Sociedade da Informação.334

A sociedade informacional põe em relevo o conflito entre a liberdade de expressão,335 o acesso à informação e o controle atribuído aos titulares de direitos autorais em ambientes digitais. Especialmente em razão da proteção autoral consagrada internacionalmente ter sido pensada para um paradigma tecnológico e um modelo social- econômico diferente dos atuais.336

Marcos Wachowicz, elaborando sobre a importância da Internet na sociedade atual, aponta seu profundo impacto sobre o direito fundamental à informação:

333 FURTADO, Emmanuel Teófilo. Direitos Humanos e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Revista

do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. Fortaleza. Ano 6, Vol. 6, n. 6, p. 103-120, 2005. p. 112.

334 FERREIRA DE MELO, Marco Antônio Machado. A tecnologia, direito e solidariedade. In: ROVER, Aires José (org.). Direito, Sociedade e Informática: limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteux. 2000. p. 22.

335 A liberdade de expressão e informação é considerada um direito humano em vários documentos internacionais: a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela ONU (art. 19); o Convênio Europeu para a proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, aprovado em Roma no ano de 1950 (1 e 2); mais recentemente, a Convenção Americana de Direitos Humanos -Pacto San de José da Costa Rica.

336 WACHOWICZ, Marcos; WINTER, Luis Alexandre Carta. Os paradoxos da sociedade informacional e os limites da propriedade intelectual. In: Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte: Fundação . Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux. 2007. p. 2489-2509.

A Internet se apresenta como um canal de informação por excelência, que elimina distâncias e tempo, gerando um altíssimo tráfico de informação. Tal fato na sociedade, no início do século XXI, faz que o direito fundamental de informação ganhe novos contornos e dimensões, gerando a necessidade da criação de instrumentos e mecanismos jurídicos adequados, que garantam a liberdade de acesso à informação, assegurando, assim, o desenvolvimento do indivíduo na Sociedade da Informação.337

A importância da informação também ganha destaque particularmente na visão de Paulo Bonavides, para quem a quarta geração de direitos fundamentais é pautada na questão da globalização política, inserindo nesta geração o direito à democracia, ao pluralismo e à informação.338

Democracia e pluralismo dependem da informação e de sua livre circulação, sem censura ou controle que venha a inibir o processo de difusão da educação e da cultura. Com posicionamento similar, Flávia Piovesan destaca que:

(...) o direito ao acesso à informação surge como um direito humano fundamental em uma sociedade global em que o bem estar e o desenvolvimento estão condicionados, cada vez mais, pela produção, distribuição e uso eqüitativo da informação, do conhecimento e da cultura.339

Nesse particular, ao permitir uma apropriação de bens intelectuais, o sistema de propriedade intelectual, se desregulado e usado de forma patológica, pode se tornar um obstáculo à efetivação dos direitos fundamentais de quarta geração.

Indo além da noção de direitos fundamentais de quarta geração os direitos de propriedade intelectual impactam significativamente na livre circulação de informações no ambiente digital e notadamente na Internet, apontando já para uma quinta geração de direitos humanos. Na visão de Marcos Wachowicz:

A complementação da quinta geração de direitos, na classificação de Bobbio, é dada por Oliveira Júnior e por Luís Carlos Cancelier de Olivo, partindo do reconhecimento da importância das modernas tecnologias da informação subjacentes na Sociedade do conhecimento e nos desafios para a democratização e transparência do Estado.

Trata-se dos princípios jurídicos do direito de liberdade de expressão e do direito de acesso à informação, que merecem uma reflexão sobre sua dupla aplicação na Internet, como forma de comunicação e meio de difusão do pensamento, e suas 337 WACHOWICZ, Marcos. Os Direitos da Informação na Declaração Universal dos Direitos Humanos. In: WACHOWICZ, Marcos (coord.). Propriedade Intelectual & Internet. Curitiba: Juruá Editora, 2002. p. 37-49. p. 38.

338 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 525.

339 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Propriedade Intelectual. 2007. Disponível em: <http://www.culturalivre.org.br>. Acesso em: 08/08/08. p. 38.

aplicações com as garantias constitucionais cada vez mais relevantes de direito de informação ao usuário/cidadão.340

Com efeito, numa perspectiva de máxima efetividade dos direitos fundamentais é possível aferir a legitimidade de um regime de propriedade intelectual exatamente na medida em que o sistema concretiza os direitos correlatos, promovendo simultaneamente, num equilíbrio ideal, a criação e difusão dos avanços culturais e tecnológicos.

Reitere-se aqui o argumento exposto no capítulo referente à análise econômica da propriedade intelectual. Os bens imateriais sofrem um problema de provisionamento, não de escassez.

Dessa forma, a atribuição de direitos exclusivos aos indivíduos, como forma de concretização do direito individual de beneficiar-se das criações intelectuais deve ter somente a extensão necessária e suficiente para promover a criação de novos bens imateriais (produção de novos conhecimentos).

Além desse limite, há uma restrição desnecessária do direito humano de cada um dos membros da comunidade de beneficiar-se dos avanços tecnológicos e culturais, através do acesso a informações e da redução dos custos dos produtos intelectuais na ausência dos preços monopolísticos associados aos direitos de propriedade intelectual.

5.4 Propriedade intelectual e Colisões de Princípios Constitucionais