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CAPÍTULO 2: BREVE ESTUDO HISTÓRICO-EPISTEMOLÓGICO

2.2 A DEMONSTRAÇÃO

Segundo Putnam (1988), os não-matemáticos vêem a matemática como uma disciplina não-problemática, pois a entendem como um conjunto de métodos seguros e infalíveis. Dessa forma, restringir o conceito de demonstração ao campo da matemática garantiria uma resposta objetiva à pergunta: o que é uma demonstração?

Em nossa busca por uma resposta, nos deparamos com a subjetividade do tema demonstração mesmo no contexto da própria matemática, e encontramos pesquisas em Educação Matemática que nos conduziram a uma noção de demonstração para o trabalho que desenvolvemos.

Com base em (SILVA, 2002; DOMINGUES, 2002; BICUDO, 2002; GARNICA, 2002), caracterizamos a demonstração como a essência do fazer matemática funcionando como uma “marca” que a distingue de outras ciências. Para Davis e Hersh (1985, p. 178), “a matemática fica caracterizada, de maneira única, por algo conhecido como demonstração”. Já para MacLane (1981), as afirmações matemáticas podem ser checadas e entendidas sem que se precise recorrer a exemplos ou significados reais dos axiomas; é esse caráter formal da matemática que a distingue de todas as outras ciências.

Davis e Hersh (1985), ao escreverem um diálogo fictício entre um professor (matemático puro) e um aluno – em que este pergunta ao professor: o que é uma demonstração?, e o professor responde com um exemplo, dizendo que demonstrar é tudo o que ele tem feito nas aulas de Matemática. Porém, o aluno continua querendo saber: o que é uma demonstração? O diálogo segue, e após a explicação pelo

professor do que é uma demonstração, o aluno conclui que professor algum nunca fez uma demonstração para ele. O matemático puro justifica, dizendo que se mostra apenas o que é possível e isso chega. O aluno rebate afirmando: “portanto, os matemáticos não fazem demonstrações.” Isso nos levou a considerar a subjetividade que existe acerca da demonstração em matemática e nos motivou a buscar referências sobre o assunto, para que, só assim, pudéssemos fazer nossas considerações.

Com relação ao processo histórico, foi a busca pela validação de proposições que levou ao método axiomático-dedutivo, no qual se apóia a demonstração, diferentemente do aplicado nas ciências empíricas. Com relação a métodos gerais de comprovar a verdade matemática, alguns historiadores indicam Tales como o primeiro a usá-los. Acredita-se, também, que os pitagóricos são os responsáveis pela criação da matemática pura, daí se pensar que, em algum momento, eles tenham dado um caráter dedutivo à matemática.

Porém, das obras que chegaram até os dias atuais, são “Os Elementos”, de Euclides (300 a.C.) que propõem uma estrutura composta de noções básicas, postulados, definições, proposições e teoremas. Segundo Boyer (1996), esta obra apresenta uma exposição em ordem lógica dos assuntos básicos da matemática elementar, constituindo o primeiro grande testemunho do poder do método dedutivo na matemática. Esta obra sofreu muitas análises e críticas, sendo apontadas algumas falhas. Porém, a demonstração ainda tinha um aspecto material, é o que relata Domingues (2002):

No final do século XIX, a demonstração em matemática tinha um caráter grandemente material. A demonstração de uma proposição era uma atividade intelectual que visava a nos convencer e a convencer os outros, racional, mas também psicologicamente, da veracidade dessa proposição (Ibid, p. 62).

Todavia, com o desenvolvimento da própria matemática, a intuição e/ou raciocínios heurístico-geométricos não conseguiram explicar alguns resultados matemáticos e, sendo assim, essa idéia de demonstração não resistiu, levando a conceito de demonstração mais formal. Este conceito é apresentado por Domingues (2002) com base em Tarski (1969) como sendo:

uma construção de uma seqüência de proposições tais que:(i) a primeira proposição é um axioma; (ii) cada uma das outras ou é um axioma ou é dedutível diretamente das que a precedem na seqüência; (iii) a última proposição é aquilo que se pretende demonstrar (Ibid, p. 62).

Vale destacar que, no final do século XIX, Os Elementos de Euclides foi revisto por David Hilbert (1852 – 1943), que, ao publicar sua obra “Fundamentos da Geometria”, em 1899, não definiu conceitos iniciais como fez Euclides, desvinculando a Geometria de conceitos físicos. Ele aceitou três conceitos primitivos – ponto, reta e plano – e definiu relações entre esses objetos por meio de axiomas, sem usar nenhuma intuição geométrica; nesse contexto as demonstrações tornaram-se puras. Por outro lado, o processo de construção de uma demonstração deve ser considerado e um dos autores que contribuiu nesse sentido foi Lakatos (1978), que ao propor um cenário da lógica da descoberta matemática, retrata um diálogo imaginário entre um professor e seus alunos. O tema deste diálogo é a demonstração da relação de Euler para poliedros: V – A + F = 2, onde V representa o número de vértices, A o número de arestas e F o número de faces do poliedro. Nesse diálogo, o professor é interpelado pelos alunos com contra-exemplos, o impacto destes contra-exemplos, leva a uma modificação do enunciado do teorema e a ajustes na demonstração, o que gera novos contra-exemplos e novos ajustes. Este desenvolvimento, apresentado por ele, é dado como modelo do desenvolvimento da matemática em geral. Com argumentos parecidos, Steen (1979) afirma que:

O fato de certos métodos levarem a contradições, quando usados indiscriminadamente, não significa que devam ser abandonados; tal situação apenas aponta para a necessidade de determinar as áreas nas quais esses métodos se mostrem seguros (apud Domingues, 2002, p. 66).

Também podemos citar (Truesdell, III, 1919 – 2000):

Os erros cometidos por um grande matemático são de dois tipos: primeiramente, enganos triviais, que qualquer um pode corrigir; em segundo lugar, falhas titânicas, refletindo a escala do combate travado pelo grande matemático. Falhas desse último tipo são, freqüentemente, tão importantes como o sucesso, pois dão lugar a grandes descobertas por outros matemáticos (TRUESDELL apud, BICUDO, 2002, p. 80).

Em nosso entendimento, Lakatos (1978) criticou o método dedutivista imposto pela matemática pura e passou a valorizar o estilo heurístico para se construir a demonstração de um teorema. Segundo este autor, o estilo dedutivista é aquele que:

[...] começa com uma lista laboriosamente feita de axiomas, lemas e/ou definições. Os axiomas e definições freqüentemente parecem artificiais e mistificadoramente complicados. Nunca se fica sabendo como essas complicações surgiram. A lista de axiomas e definições é seguida de teoremas cuidadosamente redigidos. Estes, por sua vez, estão carregados de pesadas condições; parece impossível que alguém jamais os tivesse suposto. O teorema é seguido da prova (LAKATOS, 1978, p. 185).

Para este autor, o estudante de matemática é obrigado a assistir a esse ritual sem fazer perguntas sobre o que está ocorrendo. Lembrando também que muito do que se construiu em matemática: definições, teoremas, provas, passaram por um processo nada dedutivista. Dessa forma, Lakatos (1978) critica o estilo dedutivista, que não mostra a evolução de um conceito, e sim os apresenta de forma pronta e acabada. Propõe, então, o estilo heurístico, pois entende que as “verdades” matemáticas não são construídas de forma autoritária e sim por um caminho que mostra contradições, refutações e descobertas. Para ele:

o estilo dedutivista rompe as definições geradas pela prova dos antepassados, apresenta-as no vazio, de modo artificial e autoritário. Ele oculta os contra-exemplos globais que levaram ao seu descobrimento. Pelo contrário, o estilo heurístico acentua esses fatores. Dá ênfase à situação problemática: acentua a “lógica” que deu nascimento ao novo conceito (LAKATOS, 1978, p. 188).

Este autor, ainda salienta a importância das hipóteses na construção de provas, pois, caso contrário, grandes refutações podem aparecer. Percebemos em sua obra que as demonstrações eram concebidas com o viés do estilo heurístico, o que levava à construção de verdades locais e possibilitava a descoberta de novos teoremas, ou seja, uma demonstração que dava margens à inserção de contra- exemplos, podendo induzir a descobertas.

Já Silva (2002), destaca três aspectos da demonstração em matemática: • Retórico: destinado a convencer às teses.

• Lógico-epistemológico: como um encadeamento lógico conduzindo à verdade e ao conhecimento.

O aspecto heurístico das demonstrações não é, a rigor, um aspecto das demonstrações, se entendermos por isso algo intrínseco a elas. Ao contrário, uma demonstração só pode desempenhar esse papel com a explícita participação do sujeito. Uma demonstração só desempenha sua função heurística se move o sujeito a reagir a ela, aceitando seu desafio (SILVA, 2002 p. 74).

Ao estudar a gênese da demonstração, Arsac (1987) explica a transformação inicial da matemática, justificando o aparecimento da demonstração. Afirma que foi levado a estudar o assunto em face da constatação de que tudo, em matemática, provém da resolução de problemas, destacando que “é para resolver problemas, que foram criados os conceitos e os métodos, e o encadeamento de sucessivos problemas explica a evolução da matemática” (Ibid, p. 267).

Segundo esse autor, a demonstração interpretada como uma seqüência de enunciados organizados, de acordo com regras determinadas, surgiu na Grécia no século V a.C. com o problema da irracionalidade e incomensurabilidade na escola Pitagórica. Ele destaca, ainda, dois pontos de vista para o surgimento da demonstração, o externalista, em que a demonstração surge de fora para dentro da matemática, como conseqüência do desenvolvimento das cidades, da necessidade de regras precisas e convincentes na política; e o internalista, em que a demonstração surge dentro da própria matemática na tentativa de resolver problemas como o da irracionalidade.

Buscando esclarecer o que é uma demonstração, Bicudo (2002, p. 83) apresenta uma definição rigorosa:

Seja, agora, F um sistema formal16 em que todas as regras sejam finitas. Então, uma DEMONSTRAÇÃO em F é uma seqüência finita de fórmulas, em que cada uma seja ou um axioma, ou seja, conclusão de uma regra cujas hipóteses precedam essa fórmula na seqüência dada. Se A for a última fórmula em uma demonstração P, diremos que P é uma DEMONSTRAÇÃO de A. Uma fórmula A de F será um teorema de F se existir uma demonstração de A.

Com respeito ao rigor MacLane (1981), nos revela que a maioria das demonstrações matemáticas, apresentadas oralmente ou por escrito, são simplesmente esquemas que fornecem detalhes suficientes para se construir uma demonstração absolutamente rigorosa. Por outro lado, este pesquisador afirma,

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Um sistema formal é a parte sintática de um sistema axiomático, ou seja, linguagem, símbolos, fórmulas, axiomas, regras de inferência, hipóteses e conclusão.

ainda, que muitos matemáticos acreditam que a matemática não precisa do rigor absoluto e que a efetiva compreensão por meio do rigor não é alcançada.

A esse respeito, Davis e Hersh (1985) destacam que:

As linguagens formais foram introduzidas pela primeira vez por Peano e Frege no fim do século dezenove, com o intuito de tornar as demonstrações matemáticas mais rigorosas, isto é, de aumentar a certeza da conclusão de um raciocínio matemático. No entanto, este objetivo não podia ser atingido enquanto o raciocínio fosse destinado a um leitor humano (p. 167-168).

Segundo os autores, os textos matemáticos do tipo usual nunca são completamente formalizados. São escritos em língua natural, pois são destinados a serem lidos por seres humanos. No entanto, acredita-se que qualquer texto matemático pode ser formalizado. E relatam que:

[...] uma aula típica de matemática avançada, especialmente uma aula dada por um professor com interesses “puros”, consiste inteiramente em definição, teorema, demonstração, definição, teorema, demonstração, [...] numa concatenação solene e sem interrupções. Por que isso? Se, como afirmado, uma demonstração é confirmação e certificação, então poder-se-ia pensar que, uma vez que uma demonstração tivesse sido aceita por um grupo competente de estudiosos, o restante deles acreditaria em sua palavra, e prosseguiria suas atividades. Por que os matemáticos e seus alunos acham que vale a pena demonstrar repetidamente o teorema de Pitágoras? (DAVIS e HERSH, 1985, p. 182).

Percebemos, no questionamento acima, que a função da demonstração não é única, ou seja, não serve apenas para verificar a validade de um teorema, mas, sobretudo, para explicar, descobrir novas propriedades, como nos sugere De Villiers (2001; 2002).