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A desconsideração no Brasil

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 87-100)

6. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

6.4. A desconsideração no Brasil

No Brasil, o Código Civil de 1916 positivou, em seu artigo 20, o instituto da personalidade jurídica, ao prever expressamente que “as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. A pessoa jurídica não pode de nenhuma forma ser confundida com a pessoa de seus sócios. Seu objeto e finalidade são diferentes daqueles de seus sócios e sua atuação tem nítido caráter coletivo, que transcende a simples conjugação de interesses individuais. Atente-se para a lição de Clóvis Bevilaqua59 quanto às causas e efeitos da personalidade jurídica:

“A conseqüência imediata da personificação da sociedade é distingui-la, para os efeitos jurídicos, dos membros, que a compõem. Pois que cada um dos sócios é uma individualidade e a sociedade uma outra, não há como lhes confundir a existência. A sociedade constituída por seu contrato, e personificada pelo registro, tem um fim próprio, econômico ou ideal, move-se, no mundo jurídico, a fim de realizar esse fim: tem direitos seus, e um patrimônio que administra, e com o qual assegura, aos credores, a solução das dívidas que contrai.”60

59BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Rio, 1976. v. 1,

p. 43.

60A doutrina moderna ressalta três caracteres típicos da personalidade jurídica que, em essência,

apenas esmiúçam as referências gerais do autor do Código Civil de 1916. São elas (i) a não responsabilização do sócio pelas condutas da sociedade; (ii) a total distinção entre o patrimônio do sócio e o da sociedade; bem como (iii) a existência autônoma e distinta de seus membros, com o que, em regra, a morte do sócio não afeta a existência e continuidade da sociedade.

Nota-se, portanto, que, naquele momento, o ordenamento brasileiro apenas se preocupou com os requisitos formais de constituição válida e eficaz da sociedade como requisito garantidor da autonomia da pessoa jurídica. Uma vez observadas as regras impostas de forma genérica e abstrata, a sociedade resultante dos atos legalmente consagrados seria beneficiada pelo instituto da personalidade jurídica, de forma muito semelhante à decisão final obtida no caso Salomon vs. Salomon & Co., acima referido. Ao Direito não importava que as atividades da sociedade estivessem estritamente ligadas ao seu objeto ou que a personalidade jurídica fosse utilizada como instrumento legítimo e não mecanismo de subtração de direitos. Desde que o objeto social não fosse ilícito, contrário à moral ou aos bons costumes, a sociedade regularmente constituída poderia beneficiar-se do instituto de personalidade jurídica.

Ainda assim, o ordenamento jurídico brasileiro há muito passou a contemplar casos nos quais a personalidade jurídica poderia ser desconsiderada ou afastada como forma de sanção pela prática de atos prejudiciais à sociedade e ao Estado. Assim é que a Lei nº 4.137, de 10.9.1962, a qual regula a repressão ao abuso de poder econômico, prevê, em seu artigo 6º, parágrafo único, a desconsideração da personalidade jurídica como sanção à sociedade que cometer abuso de poder econômico, na forma definida na respectiva lei.

De modo análogo, a Lei nº 4.729, de 14.7.1965, também em seu artigo 6º, previu a responsabilidade penal das pessoas físicas que, responsáveis pela condução dos negócios da sociedade, tenham participado do crime de sonegação fiscal, definido pela aludida lei.

em seu artigo 135, III, a responsabilização pessoal dos diretores, gerentes ou representantes legais das sociedades que tivessem inadimplido suas obrigações tributárias, desde que tal inadimplemento estivesse relacionado a atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.

Aqui, é importante destacar que tais exemplos de afastamento da personalidade jurídica configuram, na verdade, hipóteses de responsabilização dos sócios ou administradores pela prática de atos ilícitos, e não propriamente da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica61. Nessas hipóteses, o que se verifica na prática é que sócios e administradores agiram contra a lei e, em razão disso, devem ser responsabilizados. Não há, nessas hipóteses, o chamado “desvio de finalidade” da pessoa jurídica ou a sua utilização como artifício para encobrir uma realidade. Atente-se para a doutrina de Fábio Ulhoa Coelho:

“Com efeito, a teoria da desconsideração tem pertinência quando a responsabilidade não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica. Quando a imputação pode ser direta, quando a existência da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem quer que seja, não há por que se cogitar de superamento de sua autonomia. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador ou representante legal de pessoa jurídica, provoca danos a terceiros em razão de comportamento ilícito, ele é responsável pela indenização correspondente. Nesse caso, no entanto, estará respondendo por obrigação pessoal dele, decorrente do ilícito que praticou.”62

Tratando do mesmo tema, Heleno Tôrres enumera a existência de três perspectivas teóricas diferentes para a teoria da desconsideração da

61Vide os comentários de COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica, cit.,

p. 37.

personalidade jurídica:

“Para examinar a possibilidade de aplicação da desconsideração de personalidade das pessoas jurídicas, mister separar as chamadas leis especiais, dotadas de hipóteses típicas de desconsideração da personalidade de sociedades (i), das formas de desconsideração mediante regra geral de autorização (ii) e daquela que é promovida sem qualquer disposição autorizativa expressa, mas por integração jurisprudencial, alegando analogia

iuris ou presunção hominis (iii).”63

Quanto à primeira categoria, tratada pelo autor como “leis especiais”, parece claro que não se trata propriamente de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica conforme aqui exposta, mas sim de responsabilidade civil por ato ilícito atribuível aos diretores ou sócios das pessoas jurídicas. Exemplos da segunda categoria seriam o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e o artigo 50 do Código Civil, os quais, conforme será abordado em maiores detalhes ao longo deste trabalho, encerram normas gerais que preveem a desconsideração como sanção na hipótese de concretização das situações genéricas ali previstas. Por fim, a terceira categoria seria aquela que justifica a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em ordenamentos jurídicos que não preveem expressamente a sua possibilidade, decorrendo de uma interpretação sistemática e teleológica das normas que compõem esse ordenamento. Era a teoria que justificava a desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro antes do advento do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil atualmente em vigor.

A seu turno, a Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto Lei nº 5.242, de 1º.5.1943, prevê em seu artigo 2º, § 2º, a responsabilidade solidária de todas as

63TÔRRES, Heleno Taveira; QUEIROZ, Mary Elbe (Coord.). Desconsideração da personalidade

sociedades que compõem um grupo econômico, no que se refere aos débitos decorrentes da relação de emprego. Uma vez mais, não se trata propriamente da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que o referido dispositivo legal nem mesmo menciona os requisitos do abuso de direito ou do desvio da finalidade da pessoa jurídica, limitando-se a criar uma hipótese de responsabilidade solidária dentro do grupo econômico. Trata-se, portanto, de uma opção legislativa e política que visa a tutela dos empregados, ampliando as hipóteses de solidariedade ordinariamente previstas e, para isso, superando, neste caso específico, os efeitos da autonomia societária.

A primeira norma a tratar especificamente da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro foi justamente o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor. Foi nessa norma que, pela primeira vez, o legislador previu de forma genérica a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica desde que preenchidos os requisitos ali enunciados.

Ainda assim, mesmo antes da edição do Código já era possível identificar decisões judiciais acolhendo a teoria da desconsideração, mesmo não havendo norma expressa no ordenamento que a autorizasse. Tais decisões, em regra, valiam-se dos artigos 82 e 145, II, do Código Civil de 191664 a fim de justificar o

afastamento da personalidade jurídica e a responsabilização direta dos sócios das respectivas pessoas jurídicas:

“EMBARGOS DE TERCEIRO - Penhora - Efetivação em bens de pessoa jurídica sócia majoritária da empresa executada - Admissibilidade - Aplicação da teoria da desconsideração da 64“Artigo 82. A validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não

defesa em lei.”

“Artigo 145. É nulo o ato jurídico:

I – Quando praticado por pessoa absolutamente incapaz. II – Quando for ilícito, ou impossível, o seu objeto. (...)”

personalidade jurídica - Improcedência dos embargos - Decisão mantida - Voto vencido - Inteligência do art. 20 do CC.

A legislação vem acolhendo a condenação e execução sobre bens de sociedades e sócios que servem de capa para o funcionamento de outras sociedades irresponsáveis e sem condições de suportar os efeitos de condenação judicial. Assim, admissível é a penhora dos bens de pessoa jurídica sócia majoritária daquela que é executada.

... Conforme se vê da última alteração do contrato social, a embargante possui 99% das cotas da empresa devedora, sendo o 1% distribuído entre dois sócios, que são os mesmos integrantes da embargante (fls. 33 e 36). Dúvida não há de que embargante e devedora são pessoas Jurídicas distintas. Comprovam-no os documentos trazidos com a inicial.

A principal conseqüência da individualização das pessoas jurídicas estabelecida no art. 20 do CC é decorrer a identificação patrimonial, para efeito de suportar as conseqüências jurídicas decorrentes de comportamentos lícitos e ilícitos. Ocorre que a mera autonomia patrimonial enseja a ocorrência de fraudes. Mas ensina Rolf Serick que, ‘se si abusa della forma della persona giuridica il giudice pu, al fine di impedire che venga raggiunto lo scopo filecito perseguito, non rispettare tale forma, allontanandosi quindi dal principio della netta distinzione tra socio e persona giuridica (Forma e Realtà della Persona Giuridica, Dota. A. Giuffrè Editore, Milão, 1966, p. 275). No mesmo sentido é a opinião de Piero Verrucoli (Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitali nella ‘Common Law’ e nella ‘Civil Law’, Dota. A. Giuffrè, Milão, 1964, p. 76).

Na verdade, postula a teoria da desconsideração da personalidade jurídica da atitude a ser adotada pelo juiz quando se defronta com a fraude no Direito perpetrada através da denominada autonomia patrimonial. Não se anula a pessoa jurídica. Simplesmente, desconhece-se a autonomia da personalidade, por ter a entidade jurídica desviado-se de suas finalidades especificas, causando danos e não os podendo suportar.

Ressalta Rubens Requião que é preciso, para a invocação exata e adequada da doutrina repelir a idéia preconcebida dos que estão imbuídos do fetichismo da intocabilidade da pessoa jurídica, que não pode ser equiparada tão insolitamente à pessoa humana, no desfrute dos direitos incontestáveis da personalidade (Curso de Direito Comercial, v. I/84, 1977).

Trata-se, em suma, de reconhecer a ineficácia dos estatutos sociais para que possa o verdadeiro dirigente da entidade, ou seja, o que a dirige, o que está por trás, ser responsabilizado diante da imputação da ocorrência de atos ilícitos. Assim é o que parece a Fábio Konder Comparato (O Poder de Controle na

Sociedade Anônima, Ed. RT, 1977, pp. 271 e ss.). Embora se nos afigure cuidar-se de mera questão de interpretação, vem a doutrina cuidando da desconsideração da pessoa jurídica de forma a evitar que se desviem as execuções em meras questões de forma, perdendo-se a perspectiva da realidade jurídica.

Percebe-se, pela declaração de rendimentos e bens requisitada pelo MM. Juiz (fls. 97-104), que não tem a devedora condições de suportar as conseqüências do evento danoso. A legislação, embora timidamente, vem acolhendo a condenação e execução sobre bens de sociedades e sócios que servem de capa para o funcionamento de outras sociedades irresponsáveis e sem condições de suportar os efeitos de condenação judicial. É a hipótese dos autos. Neste sentido decidiu o digno magistrado Hamilton Elliot Akel, subsistindo a r. sentença, por seus próprios e jurídicos fundamentos.” (extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, Apelação nº 358.421, 7ª Câmara, relator Juiz Régis de Oliveira, j. 12.8.1986)

Com redação idêntica à do artigo 28, caput, do Código de Defesa do Consumidor, também o artigo 18 da Lei Antitruste (Lei nº 8.884, de 11.6.1994) previu de forma genérica e abstrata a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, desde que preenchidos os requisitos ali enumerados.

Também a Lei nº 9.605, de 12.2.1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas decorrentes de condutas lesivas ao meio ambiente, previu, em seu artigo 4º, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, adotando redação extremamente ampla e abrangente:

“Artigo 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”

Modernamente, o Código Civil de 2002 estabeleceu, em seu artigo 50, o instituto do abuso de personalidade jurídica, cujo resultado é exatamente a desconsideração dessa personalidade jurídica. No entanto, a redação original do

dispositivo do Código Civil que tratava da desconsideração da personalidade jurídica em nada se assemelhava ao instituto:

“A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou do Ministério Público, decretar-lhe a dissolução.

Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.”

Como se nota, tratava-se de medida que em nada se confundia com a desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que a sua consequência era a própria dissolução da pessoa jurídica. Conforme já exposto acima, um dos traços característicos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é justamente que a sua consequência não afeta a existência e a personalidade jurídica da sociedade, e nem mesmo a validade dos atos por ela praticados, implicando apenas a suspensão episódica da autonomia entre pessoa jurídica e seus sócios65. Felizmente, o texto final aprovado pelo Congresso Nacional apresenta a seguinte redação:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

65A esse respeito, ver comentários de Fábio Konder Comparato quanto à distinção entre

A exemplo do que previu o Código de Defesa do Consumidor doze anos antes, o Código Civil em vigor abraçou a possibilidade de afastamento da personalidade jurídica naqueles casos nos quais essa é utilizada como ferramenta para desrespeitar direitos de terceiros, sendo seu exercício conduzido com abuso ou de forma diversa daquela para a qual o Direito a instituiu. Conforme destacado por Miguel Reale, muito embora o Código Civil vigente não tenha repetido a redação do artigo 20 do Código Civil de 1916, o qual previa expressamente a autonomia da pessoa jurídica, o Código Civil atual não abandona a distinção entre a personalidade da pessoa jurídica e a de seus proprietários, mas também não trata tal princípio como absoluto:

“Não abandonamos o princípio que estabeleceu a distinção entre pessoa jurídica e os seus membros componentes, mas também não convertemos esse princípio em tabu, até o ponto de permitir sejam perpetrados abusos em proveito ilícito dos sócios e em detrimento da comunidade.”66

Pelo que se depreende do dispositivo transcrito, o abuso da personalidade jurídica pode ocorrer por dois meios, o desvio de finalidade da pessoa jurídica ou a confusão patrimonial. Por desvio de finalidade, pode-se entender tanto o desvio de finalidade específica de determinada pessoa jurídica, com a prática de atos que vão de encontro a seu objetivo social; quanto o desvio da finalidade geral que o Direito impõe a todas as pessoas jurídicas, de fomentar a conjugação de esforços e patrimônios para o desenvolvimento de atividades que, ainda que indiretamente, promovam o bem comum. Nesse ponto, parte da doutrina critica a

66Apud KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica

caracterização do desvio de finalidade como causa para desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que, nesse caso, teria lugar a aplicação da teoria ultra vires67, a qual não se confunde de qualquer forma com a desconsideração da personalidade jurídica:

“A desconsideração não se confunde com a teoria ultra vires. A pessoa jurídica age por intermédio de atos que se exteriorizam através daqueles praticados pelos diretores e administradores que, como pessoas naturais, também são sujeitos de direitos e obrigações, com capacidade para agirem em nome próprio ou da sociedade. A teoria ultra vires funda-se no objeto social, englobando a atividade e o fim, que é sempre o lucro. Assim, são atos ultra vires aqueles que estiverem em desacordo com a atividade e o objetivo da empresa.”68

Segundo a teoria ultra vires, os atos praticados por uma sociedade devem, sempre, estar alinhados com o objeto e as cláusulas de seu contrato social. Se a sociedade tem como fundamento de existência a consecução de seu objetivo social, todo e qualquer ato praticado que vá de encontro a esse objetivo não apenas é prejudicial à sociedade, mas também é considerado nulo de pleno direito. Como é natural, se a sociedade retira de seu objeto social a sua razão de existência, qualquer ato que renegue essa mesma razão estará rejeitando o seu próprio fundamento de validade. Em vista disso, pela teoria ultra vires, qualquer ato praticado em dissonância com o objeto social deve ser considerado nulo de pleno direito.

No entanto, acreditamos, a solução da desconsideração da personalidade jurídica é mais adequada para esses casos do que a simples aplicação da teoria ultra vires, até mesmo em prestígio ao princípio da boa-fé e da teoria da aparência. Com efeito, na sociedade contemporânea, inúmeros são os negócios

67Ver GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração da personalidade jurídica. 1. ed. Curitiba: Juruá,

2008. p. 79.

jurídicos celebrados com sociedades e pessoas jurídicas todos os dias. Nesse contexto, não seria razoável exigir que o contratante tivesse conhecimento dos atos societários de toda pessoa jurídica com quem contrata, a fim de verificar se a pessoa física que representa a sociedade naquele ato tem poderes para fazê-lo, ou mesmo se aquele negócio está de acordo com a finalidade específica da respectiva pessoa jurídica. A aplicação da teoria ultra vires, pura e simples, poderia levar a situações indesejáveis, com a própria pessoa jurídica se recusando a dar cumprimento a uma obrigação assumida indevidamente por seus representantes, em prejuízo de terceiros de boa-fé. Assim, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica a tais casos garante que a pessoa jurídica responda pelos atos de seus prepostos, até o limite de suas forças, sempre preservado o direito de regresso contra aqueles. E mais, permite que, na hipótese de a pessoa jurídica não suportar o pagamento de suas dívidas ou adimplemento da obrigação assumida, a pessoa física que atuou com excesso de poder ou desvio de finalidade seja chamada a responder por seus atos, perante o terceiro de boa-fé.

Também no que diz respeito à confusão patrimonial, a doutrina é praticamente uníssona em reconhecer que tal condição não deveria ser considerada causa da desconsideração da personalidade jurídica, não sendo a origem da disfunção da pessoa jurídica, mas sim um sintoma. Nesse sentido, adotando-se a escola de Fábio Konder Comparato, para quem a desconsideração se relaciona a aspectos dinâmicos, funcionais da pessoa jurídica, a confusão patrimonial, por ser um vício estrutural, da própria existência da pessoa jurídica,

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 87-100)