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Conceito de relação de consumo

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 100-108)

7. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS RELAÇÕES DE

7.1. Conceito de relação de consumo

O Código de Defesa do Consumidor, bem como a legislação correlata, criou um direito especial que não se confunde com o Direito Civil ou o Comercial, ou qualquer outro ramo do Direito. É um sistema próprio, de caráter protecionista, que somente pode ser aplicado quando presentes os pressupostos estabelecidos pela própria Lei nº 8.078/90. Tratando-se de um Direito especial, as regras legais que compõem o Direito do Consumidor somente poderão ser aplicadas quando restar caracterizada a existência de uma relação de consumo, ou seja, quando existir um fornecedor numa ponta, um consumidor na outra e o fornecimento de bens ou serviços como objeto dessa relação. A verificação da existência de relação de consumo é essencial para a aplicação ou não das regras do direito especial. Por sua vez, a averiguação da existência do papel do consumidor é o ponto central para se definir a caracterização da relação de consumo.

Como bem salientado por Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, o termo “consumidor” não é unívoco e recebeu tratamento diferenciado nas mais diversas legislações71. Segundo Thierry Bourgoignie, citado por Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, “consumidor será toda pessoa individual que adquire ou utiliza, para fins privados, bens e serviços colocados no mercado econômico por alguém que atua em função de atividade comercial ou profissional”. Vale

71BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. O conceito jurídico do consumidor. Revista dos

dizer, para Thierry Bourgoignie, não apenas o conceito de consumidor exige o uso privado dos bens ou serviços adquiridos, mas envolve também o próprio conceito de fornecedor, que deverá ser aquele que comercializa bens ou serviços como parte de sua atividade profissional ou comercial.

Fato é que não apenas a doutrina, mas também as legislações dos diversos países diferem quanto ao tratamento do conceito de consumidor. Nesse sentido, a Diretiva 2005/29/EC, da Comunidade Europeia, a qual trata das práticas comerciais abusivas, conceitua consumidor como a pessoa física que contrata, na forma prevista na Diretiva, desde que não o faça em razão de sua atividade comercial, trabalho, ofício ou profissão (artigo 2, “a”).

A Lei de Vendas ao Consumidor da Suécia, por sua vez, ainda de 1973, prevê em seu artigo 1º, § 1º, que as suas normas são aplicáveis “onde o consumidor compra de um comerciante de bens destinados principalmente ao seu uso privado e que são vendidos no curso das atividades profissionais do comerciante”. Ou seja, a legislação de defesa do consumidor sueca presume que o consumidor seja aquele indivíduo que utiliza os bens adquiridos para fins privados, e não comerciais, assim como que o fornecedor deve ser aquele que comercializa bens como parte de sua atividade profissional.

A Lei de Vendas de Mercadorias ao Consumidor da Noruega, de 1974, caminha nesse mesmo sentido, enunciando, em seu artigo 1º, que, para que se caracterize a relação de consumo, a mercadoria deve ser adquirida “principalmente para uso pessoal do comprador, de sua família ou amigos, ou, de qualquer modo, para fins pessoais”.

diretamente o conceito de consumidor. Caso o produto ou serviço adquirido tenha uma destinação comercial, não se tratará de relação de consumo. Caso contrário, sim.

No Direito português, a Lei de Defesa do Consumidor conceitua consumidor em seu artigo 2º como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens ou serviços destinados ao seu uso privado por pessoa singular ou coletiva que exerça, em caráter profissional, uma atividade econômica”.

Na Inglaterra, a Lei de Cláusulas Abusivas, de 1977, prevê quais os requisitos para se considere um contratante como consumidor, sendo eles: (i) que o indivíduo não esteja contratando o produto ou serviço como parte de sua atividade comercial; (ii) que a outra parte contratante esteja atuando no desempenho de uma atividade profissional de cunho comercial; (iii) que os bens objeto do contrato sejam ordinariamente adquiridos para uso ou consumo privado (artigo 12, inciso I). Além disso, a legislação inglesa determina a presunção de que o contratante seja um consumidor, sendo ônus da parte contrária comprovar não ser esse o caso, isto é, que está ausente algum dos requisitos acima enumerados.

Em Israel, a Lei de Proteção do Consumidor, de 1981, enuncia que consumidor é “a pessoa que compra um bem ou recebe um serviço de um negociante no curso de seu negócio para uso principalmente pessoal, doméstico ou familiar” (artigo 1º).

Nos Estados Unidos, não há um código geral de relações de consumo ou um conceito que se aplique de forma irrestrita em todo o ordenamento, tendo o legislador optado por definir a figura do consumidor em cada lei específica e

dentro do contexto de cada produto ou serviço regulamentado.

No Brasil, de acordo com o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, não havendo, no entanto, qualquer norma que conceitue ou delimite o conceito de “destinatário final”. Considerando que no Código de Defesa do Consumidor existem regras excepcionais, o destinatário final do produto somente poderá ser entendido como aquele que utiliza o bem ou serviço para satisfação de uma necessidade própria e não no seu processo produtivo.

Nesse contexto, não se enquadra na definição de consumidor contida no artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor aquele que adquire produto a ser utilizado ou integrado ao seu processo produtivo, com a finalidade de obtenção de lucro. Atente-se para a lição de José Geraldo Brito Filomeno, para o qual o conceito de consumidor adotado pelo Código de Defesa do Consumidor tem cunho econômico, não abrangendo, assim, os indivíduos ou sociedades que adquirem um bem para inseri-lo em seu sistema de produção, como um típico insumo:

“Consoante já salientado, o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial. (...) Prevaleceu, entretanto, a inclusão das pessoas jurídicas igualmente como ‘consumidores’ de produtos e serviços, embora com a ressalva de que assim são entendidas aquelas como destinatárias finais dos produtos e serviços que adquirem, e não como insumos necessários ao desempenho de sua atividade lucrativa.”72

72FILOMENO, José Geraldo Brito et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado

Esse também é o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho:

“O âmbito de incidência do Código de Defesa do Consumidor é delineado pelo conceito de relação de consumo, e o empresário que adquire bens ou serviços para reinseri-los, ainda que transformados, na cadeia de circulação econômica não pode ser determinado como consumidor, pela legislação brasileira, visto que não age nesse caso como destinatário final. (...) Sob o ponto de vista econômico, esses bens ou serviços incorporam aos oferecidos ao mercado de consumo pelo empresário que os adquiriu. Em uma palavra, são insumos.”73

Ainda tratando sobre o conceito de consumidor adotado pela legislação brasileira, importantes são os ensinamentos de Cláudia Lima Marques:

“O destinatário final é o Endverbraucher, o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de produção (destinatário final econômico), e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir, pois ele não é o consumidor-final, ele está transformando o bem, utilizando o bem para oferecê-lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor.

Portanto, em princípio, estão submetidos às regras do Código os contratos firmados entre o fornecedor e o consumidor não- profissional, e entre o fornecedor e o consumidor, que pode ser um profissional, mas que, no contrato em questão, não visa lucro, pois o contrato não se relaciona com a sua atividade profissional, seja este consumidor pessoa física ou jurídica.”74

O entendimento majoritário da doutrina é claro no sentido de não se configurar a relação de consumo quando o bem ou serviço adquirido é utilizado para integrar ou implementar atividade produtiva. E a razão é muito simples: aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço na sua atividade produtiva o faz para melhorar, aprimorar e/ou ampliar a sua capacidade de administração,

73COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor, cit., p. 47.

74MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Ed.

produção e comercialização de produtos ou serviços. A despeito disso, fato é que a jurisprudência dos Tribunais brasileiros tem oscilado de forma considerável na interpretação do conceito de “destinatário final” empregada pelo Código de Defesa do Consumidor. Em muitos casos, deixa-se de lado a análise quanto à finalidade pela qual o produto ou serviço é adquirido e decide-se pela aplicação ou não da legislação protetiva com base nas características próprias da parte, isto é, sua maior ou menor “vulnerabilidade” frente ao fornecedor. Ainda assim, o próprio Superior Tribunal de Justiça, após algumas decisões contraditórias quanto ao assunto, pacificou o entendimento de que o indivíduo que adquire bens ou serviços para incrementar seu processo produtivo, com o objetivo de obtenção de lucro, não é consumidor no sentido jurídico do termo. Confira-se:

“COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DE SERVIÇO DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE.

- A aquisição de bem ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. (...)

A lei consumerista, à evidência, não veio contemplar o comerciante, puro e simples, que no seu campo de atuação profissional, adquire bens e contrata serviços com a finalidade de implementar a sua atividade negocial. O produto adquirido não se destina ao consumo próprio, daí por que inexiste a relação de consumo a atrair a competência da vara especializada.

Em realidade, a relação de consumo restringe-se à autora, ‘Central de Tintas Ltda.’ e à pessoa que adquiriu, em seu estabelecimento comercial, o produto no varejo. O que faz parte da cadeia econômica da atividade do comerciante, não pode ser tida como relação de consumo.” (Recurso Especial nº 541.967- BA, Segunda Seção, Relator para acórdão Ministro Barros Monteiro, j. 10.11.2004)

Por todo o exposto, quer nos parecer que a disciplina da desconsideração da personalidade jurídica trazida pelo Código de Defesa do Consumidor apenas poderá ser aplicada naqueles casos em que o Código seja aplicável, isto é, em que fique caracterizada uma relação de consumo, propriamente dita. Diferentemente do que acreditam aqueles que defendem a assim denominada “teoria maximalista” do conceito de consumidor, pretender aplicar as normas do Código de Defesa do Consumidor em benefício daqueles que adquirem produtos como insumos de produção, por exemplo, é enfraquecer a própria norma, retirá-la de seu contexto e desviar sua finalidade. Ao se pretender aplicar uma norma protetiva para aqueles que não justificam tal proteção, para aquelas relações que não são naturalmente desequilibradas e não necessitam da intervenção estatal em favor de uma das partes, retira-se a força dessa norma, banalizando e suavizando sua aplicação em todo e qualquer caso. Como é evidente, se um magistrado depara com uma situação que não reclame a proteção conferida pelo Código de Defesa do Consumidor e, ainda assim, veja-se impelido a aplicá-lo, irá interpretar as normas do Código de maneira tal que não provoquem desequilíbrio em favor do suposto “consumidor”. Isto é, irá esvaziar a força da norma, interpretá-la de forma mitigada de modo a evitar que a concessão de um benefício a quem não necessita de proteção estatal não gere tamanha injustiça, que retire a própria legitimidade do Código. Ao fazê-lo, esse magistrado e todos aqueles que utilizarem o precedente como razão de decidir passarão a interpretar a norma de modo mais brando e menos incisivo do que o necessário para proteção daquele a quem a norma efetivamente visa a proteger, do consumidor que, de fato, reclama a tutela estatal.

Por todos esses motivos, entendemos importante ressaltar que, assim como as demais disposições do Código de Defesa do Consumidor, em regra, as normas atinentes à desconsideração da personalidade jurídica ali contidas apenas devem ser aplicadas aos casos que envolvam efetiva relação de consumo, não podendo ser estendidas indistintamente a outros ramos do Direito. Confira-se a lição de Nelson Nery Junior:

“Objeto de regulamentação pelo Código de Defesa do Consumidor é a relação de consumo, assim entendida a relação jurídica existente entre fornecedor e consumidor, tendo como objeto a aquisição de produtos ou utilização de serviços pelo consumidor. 1. As relações jurídicas privadas em geral continuam a ser regidas pelo Código Civil, Código Comercial e Legislação extravagante.

... As relações jurídicas que se encontram sob o regime do CDC são as denominadas relações jurídicas de consumo, vale dizer, aquelas que se formam entre fornecedor e consumidor, tendo como objeto a aquisição de produtos ou a utilização de serviços pelo consumidor. Os elementos da relação jurídica de consumo são três: a) os sujeitos; b) o objeto; c) o elemento teleológico. São

sujeitos da relação de consumo o fornecedor e o consumido; são objeto da relação de consumo os produtos e serviços. O elemento

teleológico da relação de consumo é a finalidade com que o consumidor adquire os produtos ou se utiliza do serviço, isto é, como destinatário final. Se a aquisição for apenas meio para que o adquirente possa exercer outra atividade, não terá adquirido como destinatário final e, conseqüentemente, não terá havido relação de consumo.”75

Ainda porque, como será demonstrado a seguir, o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor é claro em restringir a sua aplicação aos casos nos quais a personalidade jurídica quando essa for utilizada de maneira indevida “em detrimento do consumidor”. Desse modo, pretender aplicar o aludido dispositivo a casos que não envolvam consumidores, no sentido jurídico do termo, contraria as disposições expressas da norma.

75NERY JÚNIOR, Nelson et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 100-108)