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Desconsideração e vício dos atos jurídicos

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 64-68)

6. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

6.2. Desconsideração e vício dos atos jurídicos

Muitos autores, especialmente civilistas, consideram a teoria da desconsideração da personalidade jurídica desnecessária, uma vez que o ordenamento jurídico contemporâneo já contaria com normas e princípios suficientes para evitar o abuso da utilização da pessoa jurídica. A esse respeito, cite-se a doutrina de Márcio Tadeu Guimarães Nunes:

“[As hipóteses que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica] Nada mais são do que típicos preceitos de responsabilidade civil especial por ato ilícito diretamente atribuíveis aos gestores e controladores da pessoa jurídica, sem que se possa entender a razão pela qual tais normas são tratadas no contexto da superação da personalidade jurídica da sociedade, ainda mais diante do singelo argumento de que o simples obstáculo da separação patrimonial decorrente da personificação societária é razão suficiente à sua equiparação genérica ao regime do ato ilícito decorrente da teoria da desconsideração.“46

Ainda assim, mesmo que haja semelhanças entre a desconsideração da personalidade jurídica e os vícios dos atos jurídicos, por exemplo, trata-se de institutos jurídicos absolutamente diversos, e com consequências diversas. Com efeito, não se questiona que tanto na desconsideração da personalidade jurídica quanto nos vícios dos atos jurídicos, o Direito exclui a produção dos efeitos pretendidos pelas partes, ou ao menos por uma delas, assim como afasta a

46NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade

aplicação do regime jurídico ordinariamente aplicável. Como tal, tanto a desconsideração da personalidade jurídica quanto os vícios dos negócios jurídicos são considerados exceções no ordenamento jurídico. No entanto, as semelhanças entre os institutos se resumem a isso.

Enquanto o vício do ato jurídico é compreendido como um defeito na própria formação do ato, em sua estrutura existencial, a desconsideração é ocasionada pela dissociação entre a finalidade almejada pelo ordenamento jurídico ao instituir a figura da personalidade jurídica e o uso efetivo que foi feito dessa figura. O vício, no caso da desconsideração, não se relaciona à estrutura existencial do ato, ou à sua formação, mas sim à finalidade perseguida pelo agente, necessariamente diversa daquela pretendida pela norma. No caso da desconsideração da personalidade jurídica, a decisão que a decreta não afeta a constituição da pessoa jurídica, como bem destacado por Fábio Konder Comparato na passagem acima transcrita. Não se questiona ou analisa a validade do ato de constituição da pessoa jurídica, mas sim a pertinência entre os atos da sociedade e a finalidade legalmente prevista.

O mais importante, no entanto, é que as consequências da desconsideração da personalidade jurídica e da aplicação da teoria dos vícios dos atos jurídicos são absolutamente diversas. A desconsideração da personalidade jurídica não implica, por si só, a invalidade de qualquer ato jurídico. Tratando-se de desconsideração da personalidade jurídica, a regra é que os atos que provocaram tal desconsideração são plenamente válidos e eficazes. O que ocorre é apenas a deslocação do centro de imputação das consequências jurídicas desses atos da pessoa jurídica para a pessoa dos seus proprietários ou administradores. O reconhecimento do vício do ato jurídico, por sua vez, tem

como consequência natural a invalidade do ato em si, salvo nas hipóteses de ineficácia. Uma vez violada a regra legal, o ato é tido por inválido e, como tal, não se reconhece a própria existência do ato praticado.

O que se nota, portanto, é que a desconsideração da personalidade jurídica é incompatível com os vícios dos atos jurídicos, na medida em que pressupõe a existência de um ato formalmente válido e jurídico, apenas cujos efeitos serão deslocados da pessoa que aparentemente o praticou para a pessoa de seus proprietários. Confira-se o entendimento de Marçal Justen Filho quanto à distinção entre desconsideração da personalidade jurídica e vício dos atos jurídicos:

“O vício acarreta a não-produção dos efeitos desejados pelas partes, enquanto o superamento importa ou a atribuição do ato a pessoa diversa daquela a quem usualmente seria atribuível ou a incidência de regime jurídico (atinente à personificação societária) distinto daquele normalmente aplicável.”47

Assim, nota-se que a desconsideração da personalidade jurídica não pode ser confundida com a disciplina do vício dos atos jurídicos.

Da mesma forma, parte da doutrina pretende identificar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica com os institutos da fraude e do abuso de direito, pura e simplesmente, entendendo que a aplicação de tais institutos, aliada aos princípios gerais do direito, já seria suficiente para evitar a má utilização da personalidade jurídica. Nesse ponto, Fábio Konder Comparato é incisivo em rechaçar tal proposta, especialmente pelo fato de que tal abordagem ignora as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica em benefício

do sócio controlador da sociedade:

“O efeito jurídico fundamental da personalização – separação de patrimônios – e que pode ser atingido por outras técnicas de direito, como lembramos, deve ser normalmente afastado, quando falte um dos pressupostos formais, estabelecidos em lei; e, também, quando desapareça a especificidade do objeto social de exploração de uma empresa determinada, ou do objetivo social de produção e distribuição de lucro – o primeiro como meio de atingir o segundo; ou, ainda, quando ambos se confundem com a atividade ou o interesse individuais de determinado sócio. A sanção jurídica, em tais casos, não deve ser, indistintamente, a nulidade (absoluta ou relativa) do ato, negócio ou da relação, mas a ineficácia. Não deve ser a destruição da ‘entidade’ pessoa jurídica, mas a suspensão dos efeitos da separação patrimonial in

casu, acrescentando, um pouco mais adiante, que uma larga

corrente teórica e jurisprudencial tem procurado justificar esse efeito do afastamento de personalidade com as noções de abuso de direito e de fraude à lei. A explicação não nos parece inteiramente aceitável. Ela deixa de lado os casos em que a ineficácia da separação patrimonial ocorre em benefício do controlador, sem qualquer abuso ou fraude, como por exemplo na interpretação ampliativa, feita pela jurisprudência brasileira, da norma constante do artigo 8, alínea ‘e’ do Decreto nº 24.150, de 1934, de modo a permitir a retomada do imóvel, na locação de prédio de fundo de comércio, pela sociedade cujo controlador é o proprietário do prédio.”48

Nessa linha, o autor propõe que a desconsideração da personalidade jurídica, muito embora na maioria dos casos seja uma resposta a um desvio de função da pessoa jurídica ocasionado por abuso de direito ou por fraude, nem sempre decorre de ato ilícito, com o que pretender substituir a teoria da desconsideração da personalidade jurídica pelos institutos de Direito Civil já conhecidos seria um equívoco.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 64-68)