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ORIGEM HISTÓRICA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 51-57)

Antes mesmo do surgimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a doutrina já se preocupava com os abusos cometidos por meio da pessoa jurídica, havendo registros de uma teoria desenvolvida por Hausmann, na Alemanha, com o fito de ignorar a forma societária e imputar diretamente ao controlador da pessoa jurídica a responsabilidade pelas obrigações por ela assumidas e não satisfeitas. Tratava-se da teoria da soberania, de traços muito semelhantes à desconsideração da personalidade jurídica, mas que não apresentou grande repercussão nos meios jurídicos e nem receptividade nos Tribunais40.

A despeito de algumas divergências quanto ao tema, a doutrina contemporânea destaca o caso Bank of United States vs. Deveaux como a primeira decisão judicial que teria aplicado a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ainda em 1809. O caso envolvia uma disputa entre um banco e uma pessoa física na qual se discutia quais seriam a lei de regência e o foro aplicáveis ao caso já que, segundo o artigo 111, Seção II, da Constituição norte-americana, a Lei Federal seria aplicável a todos os casos que envolvessem cidadãos com domicílio em Estados diferentes, com o consequente deslocamento de competência para a Justiça Federal. Nesse caso específico, a discussão travada tinha como foco principal a questão de que se deveria ser aplicada a

Legislação Federal ao caso, uma vez que, mesmo que o Banco tivesse sede em Estado diverso da parte contrária, não se compreendia como um banco poderia ser caracterizado como “cidadão”. Diante disso, o Juiz Marshall, da Suprema Corte, teria decidido pela aplicação da Lei Federal ao caso, uma vez que o domicílio das pessoas físicas que compunham a sociedade (Bank of United States), às quais certamente deveria ser conferido status de “cidadão”, era diferente do domicílio da parte contrária na demanda (outra pessoa física). Na prática, o que se verificou, portanto, foi o afastamento da personalidade jurídica para, desconsiderando-se a personalidade jurídica do banco, substituí-lo pela pessoa de todos os seus proprietários, cujos domicílios eram diferentes daquele da parte contrária e que certamente poderiam ser enquadrados como “cidadãos”.

Em que pese o fato de grande parte da doutrina enunciar esse como o primeiro caso de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, entendemos que, ainda que a personalidade jurídica do banco tenha, de fato, sido desconsiderada na prática, esse caso em nada se assemelha à teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Na decisão proferida pelo Juiz Marshall, não houve qualquer justificativa para desconsideração da personalidade jurídica do banco, não havendo menção ao fato de que os seus proprietários teriam utilizado a pessoa jurídica para mascarar uma situação de fato, prejudicar terceiros ou fraudar a lei. Não houve alegação de desvio de finalidade da pessoa jurídica ou qualquer hipótese de violação da lei que pudesse provocar o afastamento da personalidade jurídica. Não se tem notícia, seja na decisão que determinou o afastamento da personalidade jurídica, seja na doutrina que se refere ao caso, de qual o fundamento para a desconsideração da personalidade jurídica naquele caso concreto, mas apenas da finalidade almejada pelo Juiz

Marshall, qual seja, a de garantir a aplicação da Lei Federal ao caso, conforme preconizado pela Constituição norte-americana. Muito embora a decisão tenha tido o efeito de afastar a personalidade jurídica, tal decisão em nada se confunde com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Na verdade, o fundamento do decisum seria a teoria da ficção da pessoa jurídica, tendo a Suprema Corte interpretado a pessoa jurídica como uma ficção, devendo o seu domicílio ser extraído das pessoas reais e concretas que a compunham. Dessa forma, a despeito de a grande maioria da doutrina caracterizar o caso Bank of United States vs. Deveaux como o leading case da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, entendemos que em tal caso a decisão da Suprema Corte Norte-Americana não se relaciona com os fundamentos da aludida teoria. Ainda que os efeitos da decisão tenham sido os mesmos almejados pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica, os fundamentos dessa decisão em nada se relacionam aos da referida teoria.

Nesse sentido, o caso clássico registrado por quase todos os manuais de Direito Privado que tratam da utilização de personalidade jurídica para fins ilegítimos teve palco na Inglaterra, ainda em 1898, quase um século após a decisão proferida no caso Bank of United States vs. Deveaux, sendo hoje referido como o caso Salomon vs. Salomon & Co.

Aaron Salomon era um comerciante de sapatos e botas que exercia o comércio em Londres por meio de uma sociedade denominada A. Salomon & Co., na qual também trabalhavam quatro de seus seis filhos. Em 1892, já quando atuava no ramo há mais de trinta anos, Salomon constituiu uma sociedade por

ações, tendo observado todos os requisitos legais então existentes, tal como a necessidade da presença de sete sócios, no caso, sua mulher e cinco filhos. Desde logo, os sócio nomearam Salomon e dois de seus filhos como diretores da nova sociedade, denominada Aaron Salomon & Co. Ltd. A nova sociedade, de responsabilidade limitada, teve seu capital social dividido em 40.000 ações, no valor de £1,00 cada ação. Em 2.8.1892, a sociedade de Salomon (Salomon & Co.) foi transferida para a nova sociedade por um preço considerado, na época, exorbitante (mais de £38.000, quando sua sociedade era estimada em algo em torno de £10.000). Como pagamento pela aquisição da sociedade, Aaron Salomon & Co. Ltd. entregou a Salomon 20.000 quotas no valor total de £20.000, e cem debêntures no valor total de £10.000. As £10.000 restantes constituíram uma dívida em aberto, garantida por meio da hipoteca de todos os bens da Aaron Salomon & Co. Ltd., que vinham a ser, em verdade, o estabelecimento e os bens de produção que lhe foram alienados pela A. Salomon & Co. Logo após a constituição da Aaron Salomon & Co. Ltd., teve início um período de retração do comércio de sapatos e botas em Londres, com a perda de vários contratos da parte da Aaron Salomon & Co. Ltd., o que levou à liquidação da companhia e à venda de seus ativos.

Durante o processo de liquidação, o liquidante entendeu que a aquisição da sociedade A. Salomon & Co. havia sido fraudulenta, uma vez que o valor de compra da sociedade seria excessivo. Tendo em vista que a dívida ainda existente com Salomon e a garantia a ele concedida inviabilizariam o pagamento dos créditos dos demais credores, quirografários, o liquidante requereu em juízo fosse desconsiderada a personalidade jurídica da Aaron Salomon & Co. Ltd. a fim de reconhecer que a sociedade se confundia com a pessoa de seu sócio

majoritário, Salomon. O objetivo do liquidante era evidenciar que Salomon utilizou a Aaron Salomon & Co. Ltd. para obter um fim ilícito, limitando a sua responsabilidade em prejuízo dos credores da sociedade e, com isso, responsabilizar diretamente Salomon pelo pagamento das dívidas da Aaron Salomon & Co. Ltd.

O Juiz de Primeira Instância, Vaughan Williams J., acolheu o pedido do liquidante a fim de desconsiderar a personalidade jurídica da Aaron Salomon & Co. Ltd., de modo a permitir que os credores quirografários da sociedade buscassem o patrimônio pessoal de Salomon a fim de satisfazerem seus créditos. O Juízo entendeu que Salomon havia utilizado a sociedade de forma fraudulenta e com desvio de finalidade, o que motivou o afastamento da figura da pessoa jurídica, a fim de responsabilizar diretamente Salomon pelo pagamento das dívidas remanescentes. O curioso é que, ainda que esse seja tratado como leading case da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pelos Tribunais, fato é que Salomon recorreu contra essa decisão, sendo certo que a House of Lords, última instância inglesa com jurisdição para decidir o litígio, entendeu por maioria de votos que, uma vez observados os requisitos formais legalmente previstos, a autonomia da pessoa jurídica deveria ser preservada, não sendo possível responsabilizar Salomon pelas dívidas da sociedade. A House of Lords julgou procedente o recurso interposto por Salomon, para o fim de restituir a figura da Aaron Salomon & Co. Ltd. e declarar que apenas o patrimônio da sociedade poderia ser utilizado para saldar suas dívidas, após a quitação do crédito preferencial de Salomon. Nas razões de seu voto, Lord Halsbury consignou expressamente que, uma vez observadas as formalidade legais, a pessoa jurídica foi legalmente constituída e deveria ter sua autonomia e

personalidade preservadas, sendo irrelevantes os motivos e finalidades almejadas pelos indivíduos que a constituíram. Ainda, a decisão reconheceu que Salomon teria agido com boa-fé, sendo certo que a criação da Aaron Salomon & Co. Ltd. constituiria uma forma de planejamento empresarial legítima e formalmente irrepreensível.

Curiosamente, o leading case da desconsideração da personalidade jurídica trouxe uma hipótese na qual os Tribunais entenderam pela improcedência da desconsideração, ainda que estivessem presentes todos os indícios de má utilização da personalidade jurídica e o desvio de sua finalidade. Aqui, cumpre destacar que, se, de um lado, o caso Salomon vs. Salomon & Co. provocou reflexões na doutrina quanto à desconsideração da personalidade jurídica, de outro, deu início a um movimento da jurisprudência inglesa de extrema resistência à desconsideração, o qual se verifica até hoje. Conforme será exposto neste trabalho, ainda hoje as Cortes inglesas são extremamente reticentes em conceder a desconsideração da personalidade jurídica, mantendo-se fiéis à formalidade e às regras procedimentais de constituição e preservação da personalidade jurídica.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 51-57)