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6. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

6.1. Conceito

Como exposto acima, a opção pela consagração da personalidade jurídica decorreu da intenção do Estado de incentivar o investimento privado na economia, a fim de propiciar a geração de empregos, a arrecadação tributária e o progresso econômico e cultural da sociedade. No entanto, o uso da personalidade jurídica, como qualquer ferramenta, pode ser desvirtuado, de modo a não atingir a finalidade almejada pelo Estado, mas sim propiciar o abuso de direito ou a fraude à lei, com o que o ordenamento jurídico não pode concordar. Assim como cabe ao Estado conceder o privilégio da personificação, também lhe é permitido fazer cessar tal privilégio nos casos em que as finalidades do instituto forem desvirtuadas pelo particular.

Um dos grandes responsáveis pela sistematização e desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi o alemão Rolf Serick, da Universidade de Heideberg41. Como se extrai da doutrina de Serick, quando a pessoa jurídica é utilizada como ferramenta para prejudicar credores, para eximir os sócios de uma obrigação legalmente prevista, para elidir a aplicação de uma lei, os Tribunais poderiam desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, para responsabilizar seus sócios pelas obrigações contraídas por tal sociedade. Tratava-se, portanto, de uma solução para casos em que o respeito à forma e à autonomia das pessoas jurídicas poderia causar tamanha injustiça e iniquidade

41Ver SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Tradução de Marco Vitale. Milano:

que não poderia ser prestigiado pelo Direito.

Desde logo, no entanto, Serick destacou que a simples existência de prejuízo decorrente do princípio da autonomia patrimonial não seria suficiente para ocasionar a desconsideração. Sendo essa uma medida extrema e de exceção, a desconsideração apenas poderia tomar palco nos casos em que houvesse deliberada intenção dos sócios de prejudicar terceiros, de utilizar a pessoa jurídica de maneira fraudulenta e abusiva. Nesse sentido, Serick propõe quatro princípios que embasariam a sua teoria, quais sejam, (i) o abuso de direito, (ii) a ilicitude, (iii) o paralelismo com a pessoa natural e (iv) o próprio direito objetivo.

De forma geral, o autor entendia que o abuso estaria caracterizado nos casos em que o uso da pessoa jurídica se destinasse a evitar a incidência de uma norma legal ou de uma obrigação contratualmente assumida. Como exemplo, cite-se o caso de uma sociedade que esteja legalmente proibida de atuar em determinado ramo de atividade (i.e., em razão de vedações decorrentes das leis de concorrência) e constitua outra pessoa jurídica que utilize como intermediária para atuar nesse ramo, de forma contrária à lei. Ou, ainda, a hipótese de um indivíduo que, deixando determinada sociedade, assuma o compromisso de não atuar naquele mesmo ramo de atividade por determinado período e, em total desrespeito a tal obrigação, constitua uma pessoa jurídica para desempenhar a mesma atividade, em seu lugar.

Quanto à ilicitude, Serick destaca que a desconsideração não pode ocorrer apenas como forma de garantir que uma finalidade legalmente prevista seja atingida. No entanto, haveria determinadas normas societárias de tamanha

importância, que o descumprimento de sua finalidade, provocado por meio da personalidade jurídica, justificaria, por si só, o afastamento da personalidade jurídica.

O terceiro princípio se refere à circunstância na qual, não sendo possível imputar características humanas à pessoa jurídica, a sua personalidade deva ser afastada a fim de que se considerem as características de seus sócios. Como exemplo dessa hipótese, mencione-se o caso de um pai que não possa doar determinado bem a um filho sob pena de violação do direito à legítima dos demais herdeiros. Nesse caso, o indivíduo poderia constituir uma pessoa jurídica em sociedade com o filho e integralizar o capital por meio da entrega do bem e, em um segundo momento, retirar-se da sociedade. Ato contínuo, a sociedade poderia ser dissolvida, com o filho recebendo o bem, na qualidade de único sócio remanescente. Nessa hipótese, em que pese o fato de que não se pudesse considerar que a pessoa jurídica seria o pai do sócio beneficiado e que, portanto, estaria proibida de intermediar a entrega do bem ao referido sócio, a personalidade jurídica poderia ser desconsiderada para atribuir à sociedade às características humanas próprias de seus sócios (pai e filho).

Por fim, o quarto princípio estaria relacionado aos casos nos quais o uso da pessoa jurídica mascararia o efetivo sujeito participante do negócio jurídico, evitando, com isso, uma norma do ordenamento jurídico (v.g. em um caso no qual um indivíduo A fosse devedor se um sujeito B e a sociedade controlada por A fosse credora do sujeito B e, mesmo não dispondo de bens para pagar a dívida, A não aceitasse a compensação de créditos, na medida em que as partes nos negócios jurídicos seriam diferentes – em um o sujeito A, pessoa física, e no outro, sua sociedade).

O que se nota, portanto, é que, antes de sistematizar requisitos para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, Serick limitou-se a enumerar as situações de fato em que, sob sua concepção, o princípio da autonomia da pessoa jurídica não deveria prevalecer.

Na Itália, por sua vez, o superamento, como é tratada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica naquele país, contou com as importantes contribuições de Tullio Ascarelli, Nicola Distaso e Piero Verrucoli. Ascarelli procurou justificar o superamento da personalidade jurídica com base na doutrina dos negócios jurídicos indiretos, assim entendidos como aqueles negócios por meio dos quais as partes pretendem obter resultado diferente do ordinariamente esperado. Distaso, por sua vez, rejeita a proposta de Ascarelli, por entender que a teoria do superamento não se adequa a qualquer instituto jurídico já conhecido, como a disciplina dos negócios indiretos, da simulação ou da fraude. Distaso procura localizar na Jurisprudência dos Interesses a origem e o fundamento de validade da teoria do superamento, na medida em que o Juiz deveria analisar os atos da pessoa jurídica tendo por base os interesses envolvidos no caso concreto, a equidade e os valores éticos da sociedade. Verrucoli, por sua vez, cujo trabalho encontrou maior repercussão na doutrina em geral, enxerga na autonomia da pessoa jurídica um privilégio concedido pelo Estado para a consecução de fins específicos, como a união de patrimônios e esforços para o desenvolvimento de atividades econômicas. A partir do momento, no entanto, em que a pessoa jurídica passa a ser utilizada com desvio dessa finalidade, em proveito pessoal dos sócios ou administradores, o fundamento desse privilégio deixa de existir, competindo ao próprio Estado, que o concedeu em primeiro lugar, retirá-lo.

Segundo define a doutrina contemporânea, a desconsideração da personalidade jurídica envolve a ineficácia da autonomia da pessoa jurídica em determinado caso concreto, de forma que recaia sobre o proprietário da sociedade a responsabilidade por condutas ou passivos que, de outra forma, recairiam exclusivamente sobre a pessoa jurídica. Nas palavras de Rubens Requião:

“Com efeito, o que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude).”42

Este é o conceito oferecido por Fábio Ulhoa Coelho:

“O juiz pode decretar a suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica, se verificar que ela foi utilizada como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito.”43

Quer nos parecer, no entanto, que o autor não pretende identificar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica com os institutos da fraude e do abuso de direito, pura e simplesmente, até porque, em sua obra, remete a hipóteses em que a desconsideração não seria explicada apenas em razão desses institutos. Fábio Konder Comparato é contrário a tal identificação, preferindo destacar que a desconsideração da personalidade jurídica está relacionada a um desvio de função, ou uma disfunção da própria personalidade

42REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard

doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 58, n. 410, p. 17, dez. 1969.

43COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Ed. Revista dos

jurídica, em prejuízo de terceiros ou dos próprios sócios:

“Toda pessoa jurídica é criada para o desempenho de funções determinadas, gerais e especiais. A função geral da personalização de coletividades consiste na criação de um centro de interesses autônomo, relativamente às vicissitudes que afetam a existência das pessoas físicas que lhe deram origem, ou que atuam em sua área: fundadores, sócios, administradores. As funções específicas variam, conforme as diferentes categorias de pessoas jurídicas e, ainda, dentro de cada categoria, de coletividade a coletividade, em razão de seus atos constitutivos, estatutos ou contratos sociais. A desconsideração da personalidade jurídica é operada como conseqüência de um desvio de função, ou disfunção, resultante sem dúvida, as mais das vezes, de abuso ou fraude, mas que nem sempre constitui um ato ilícito. Daí por que não se deve cogitar à sanção de invalidade, pela inadequação de sua excessiva amplitude, e sim da ineficácia relativa.”44

Importante frisar que a desconsideração da personalidade jurídica não leva à desconstituição do próprio ato jurídico praticado, mas sim da proteção que a autonomia patrimonial confere aos proprietários da sociedade. Como nota definidora, a doutrina entende que a desconsideração da personalidade jurídica redunda (i) na superação do regime habitual de responsabilidade instituído para determinada sociedade empresária; (ii) na limitação dessa superação ao caso sub judice, isto é, uma vez desconsiderada a personalidade jurídica de uma sociedade, apenas os atos que levaram a essa desconsideração serão imputados aos respectivos sócios, o que não atinge, de forma alguma, a responsabilidade pelos demais atos já praticados ou que vierem a ser praticados pela sociedade e que com eles não se relacionem; e (iii) na conservação da eficácia e da validade dos atos jurídicos que levaram à necessidade de desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido, atente-se para os comentários de Fábio Konder Comparato:

“Importa, no entanto, distinguir entre despersonalização e desconsideração (relativa) da personalidade jurídica. Na primeira, a pessoa coletiva desaparece como sujeito autônomo, em razão da falta original ou superveniente de suas condições de existência, como por exemplo, a invalidade do contrato social ou a dissolução da sociedade. Na segunda, subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes; mas essa distinção é afastada, provisoriamente e tão-só para o caso concreto.”45

Em resumo, a desconsideração da personalidade jurídica não implica a extinção da sociedade ou a desconstituição de todos os atos e negócios por ela praticados. Pelo contrário, apenas resulta em seus sócios terem que responder por tais atos, com seus patrimônios pessoais, uma vez que plenamente válidos e eficazes. A título de exemplo, caso uma sociedade seja utilizada como ferramenta para evitar, de forma ilícita o ressarcimento de danos sofridos por um consumidor, o interesse juridicamente tutelado desse consumidor não necessariamente está na declaração de nulidade do ato que gerou tal prejuízo, com a restituição do status quo ante. Antes, o verdadeiro interesse do consumidor está na validade do negócio jurídico celebrado com o fornecedor e no reconhecimento de que, advindo danos de tal negócio, a responsabilidade por indenizá-los será dos proprietários da sociedade, que a utilizaram com desvio de finalidade ou em fraude à lei.

Diferentemente do que acreditam alguns, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não enfraquece ou questiona a autonomia da pessoa jurídica e sua personalidade. Pelo contrário, se bem aplicada, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica reforça a importância da pessoa jurídica e serve justamente para garantir que tal instituto seja respeitado sempre

que os sócios e administradores atuarem de acordo com as finalidades legalmente previstas, nenhuma responsabilidade podendo lhes ser imputada por atos praticados pela sociedade.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 57-64)