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Estados Unidos da América

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 71-80)

6. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

6.3. A desconsideração no Direito estrangeiro

6.3.2. Estados Unidos da América

Nos EUA, país considerado um dos maiores responsáveis pelo crescimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ações envolvendo pedidos de desconsideração da personalidade jurídica constituem o campo de maior litígio em matéria de Direito Societário.50

Como regra geral, o ordenamento norte-americano respeita a separação entre a personalidade da pessoa jurídica e a de seus proprietários e administradores, sendo a limitação de responsabilidade considerada um dos princípios fundamentais do sistema societário.

O Professor da Universidade de Washington Robert Thompson fez um

estudo empírico a fim de verificar estatisticamente quais os casos nos quais os Tribunais acolheram a tese da desconsideração da personalidade jurídica e sob quais fundamentos. Em seu estudo, Thompson analisou 3.800 julgados, desde a década de 1960 até 1996, para concluir que tal teoria é bem aceita pelos Tribunais norte-americanos, tendo a desconsideração da personalidade jurídica sido declarada em 40% dos casos analisados. Thompson concluiu que em mais de 97% dos casos em que se comprovou que a pessoa jurídica era utilizada como uma ferramenta por outra sociedade, para atingir finalidades almejadas por essa segunda sociedade, foi concedida a desconsideração da personalidade jurídica (“instrumentality”). A personalidade jurídica também foi desconsiderada em mais de 95% dos casos em que a pessoa jurídica servia de fachada para a prática de atos em nome e no interesse pessoal de um de seus sócios (“alter ego”); em quase 95% dos casos em que se comprovou que a sociedade fez declarações ou ofereceu garantias falsas a seus credores (“misrepresentation”); em quase 90% dos casos quando a pessoa jurídica era constituída apenas para ocultar os negócios praticados por seus sócios (“dummy”); em mais de 85% dos casos em que se alegou a existência de confusão patrimonial (“lack of substantive separation”); e em mais de 50% dos casos em que o fundamento do pedido era o fato de que uma sociedade era totalmente controlada por um único indivíduo ou sociedade, com o objetivo de perpetrar fraudes (“domination and control”).51

Quanto às espécies de sociedades cuja personalidade jurídica foi afastada, Thompson demonstrou que houve a desconsideração da personalidade jurídica em quase 50% dos casos em que a ré era uma pessoa jurídica de sócio único (autorizada naquele país); em mais de 45% dos casos envolvendo sociedades

com até três sócios; em quase 35% dos casos que diziam respeito a pessoas jurídicas com mais de três sócios.

Tais números permitem inferir que há uma relação direta entre a propensão dos Tribunais norte-americanos em autorizar a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade e o número de sócios que essa sociedade tem. Considerando que, em regra, quanto maior a expressão econômica de uma sociedade, maior a sua necessidade de capital e mais difusa a sua divisão societária, com maior número de sócios, pode-se perceber que o estudo do Professor Thompson evidenciou que ao menos nos EUA a desconsideração da personalidade jurídica atinge preferencialmente as pequenas e médias sociedades, e não os grandes agentes do mercado.

Da mesma forma, esse estudo demonstrou que, nos EUA, os Tribunais jamais autorizaram a desconsideração da personalidade jurídica de sociedades por ações de capital aberto, livremente negociadas na bolsa de valores. Segundo o entendimento de Thompson, referendado pelas decisões que indeferiram a desconsideração em casos envolvendo sociedades por ações, (i) o mercado de capitais seria consideravelmente abalado se os investidores privados tivessem que conviver com o constante risco de terem suas economias pessoais atingidas pelas dívidas das sociedades das quais adquiriram ações na bolsa de valores; bem como (ii) haveria uma enorme fuga de capitais do mercado caso os investidores soubessem que, ao adquirir ações de determinada sociedade, estariam arriscando-se não apenas a perder o investimento realizado (risco sistêmico do próprio mercado), mas também a ver sacrificado seu patrimônio pessoal em razão de dívidas de sociedades cujas atividades estão totalmente alheias ao seu controle ou direção.

Um dado curioso do estudo realizado por Thompson se refere à espécie de credores que tiveram atendidos seus pedidos de desconsideração da personalidade jurídica das entidades societárias. O estudo revelou que foi mais comum a desconsideração da personalidade jurídica em casos em que essa foi pleiteada pelos chamados credores contratuais (42%), do que nos casos em que pleiteada pelos credores involuntários (31%), o que contraria a percepção dominante da doutrina no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica é mais justificável em casos de credores involuntários do que voluntários, ou contratuais.

Conforme acima mencionado, no caso dos credores contratuais, esses têm a oportunidade de verificar a situação patrimonial da pessoa jurídica antes de contratá-la, de exigir garantias adicionais dos sócios, caso não estejam confortáveis com a aludida situação patrimonial, ou mesmo não contratar com a sociedade caso entendam que sua situação econômica representa algum risco de inadimplemento. Para esses credores, portanto, autorizar a desconsideração da personalidade jurídica seria conferir um benefício indevido, na medida em que, ao se tornarem credores da sociedade, conheciam sua situação patrimonial e consentiram que seu crédito apenas estaria garantido pelo patrimônio da própria pessoa jurídica, e não pelo de seus sócios. No caso dos credores involuntários, no entanto, tendo o crédito nascido de um ato ilícito extracontratual, o respectivo credor nunca teve qualquer possibilidade de negociar com a pessoa jurídica, de verificar sua situação patrimonial ou exigir garantias adicionais de quem quer que fosse. Os credores involuntários jamais assumiram o risco de inadimplemento da pessoa jurídica e, como tal, haveria maiores justificativas para que seu direito de crédito fosse prestigiado, ainda que por meio da desconsideração da

personalidade jurídica do devedor.

Nesse ponto, cumpre chamar a atenção para um interessante caso envolvendo a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das relações de consumo, enfrentado pelos Tribunais norte-americanos na década de 1990. Trata-se do litígio referente aos implantes de silicone, como ficou mais tarde conhecido. Conforme relata Karen Vandekerckhove52, por muitas décadas o

silicone foi utilizado em muitos produtos farmacêuticos e médicos, havendo consenso no meio científico quanto à sua segurança para os pacientes. Ainda assim, na década de 1970 as sociedades Dow Chemical e Dow Corning (da qual a Dow Chemical detinha 50% do capital social, sendo os 50% restantes detidos pela Corning Enterprises, responsável pela tecnologia necessária à produção do silicone) realizaram testes que revelaram possíveis efeitos colaterais associados ao implante de silicone, especialmente relacionados ao sistema imunológico. Ainda assim, os implantes de silicone continuaram a ser feitos, até que em 1992 o FDA – Food ad Drug Administration (agência reguladora de alimentos e medicamentos dos EUA) proibiu a utilização do silicone para esse fim, após uma decisão judicial que condenou uma fornecedora ao pagamento de indenização no valor de US$ 7,34 milhões a uma consumidora que desenvolveu uma doença em seu sistema imunológico.

A partir daí, a Dow Corning passou a enfrentar centenas de ações de indenização propostas por consumidores de seus produtos, sendo certo que já em 1993 os Tribunais Federais norte-americanos deparavam com cerca de 1.000 ações relacionadas ao tema, das quais a maioria foi objeto de acordo. A despeito

disso, em 1995 a Dow Corning apresentou um pedido de falência, com a intenção de prevenir futuros litígios, envolvendo consumidores que não tivessem feito parte dos acordos já celebrados e adimplidos. Diante disso, os consumidores que se sentiam lesados e que ainda não haviam recebido a reparação que entendiam devida passaram a ajuizar ações contra a Dow Chemical, uma das proprietárias da Dow Corning, requerendo a desconsideração da personalidade jurídica da Dow Corning. Os Tribunais, no entanto, decidiram pela impossibilidade de desconsideração da personalidade jurídica nesses casos, uma vez que entenderam que a Dow Chemical se comportou como qualquer acionista faria em casos semelhantes, não tendo cometido qualquer abuso ou desvio da personalidade jurídica a justificar seu afastamento. Ainda assim, houve casos em que os Tribunais entenderam pela responsabilização da Dow Chemical, mas não em razão da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas sim da responsabilidade da Dow Chemical pela prática de um ato ilícito, uma vez que, segundo a legislação federal americana, uma pessoa pode ser responsabilizada por danos sofridos por um terceiro com o qual não manteve relação direta caso tais danos tenham resultado, direta ou indiretamente, de serviços prestados por essa pessoa. No caso, os Tribunais entenderam que a Dow Chemical havia prestado um serviço à Dow Corning ao realizar os testes toxicológicos do silicone e que, se tivesse desenvolvido mecanismos para reduzir a toxicidade do produto, os consumidores não teriam sido lesados pelo silicone comercializado pela Dow Corning. Dessa forma, os Tribunais entenderam que a Dow Chemical poderia ser responsabilizada pela prática de um ato ilícito, uma vez que foi sua omissão em adotar medidas adequadas frente ao resultado dos testes toxicológicos realizados que possibilitou a concretização dos danos sofridos pelos consumidores.

Como se nota, portanto, a jurisprudência norte-americana, conquanto simpática à tese da desconsideração da personalidade jurídica, não a adota de forma indiscriminada, como forma de garantir sempre a tutela dos consumidores. Ainda assim, nos casos em que se entende que o proprietário contribuiu de alguma forma para a concretização do dano, o ordenamento jurídico fornece as ferramentas necessárias para responsabilização direta desse proprietário. Até por esse motivo, há, atualmente, um grande movimento nos EUA pela abolição da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, vista como extremamente prejudicial às relações jurídicas e ao próprio mercado.

Nesse sentido, atente-se para o entendimento de Stephen Bainbridge, professor da Universidade da Califórnia, para quem a teoria apenas traz prejuízos e risco de lesão a direitos, mas nenhum benefício comprovado:

“The standards by which veil piercing is effected are vague,

leaving judges with great discretion. The result has been uncertainty and lack of predictability, increasing transaction costs for small business. At the same time, however, there is no evidence that veil piercing has been rigorously applied to effect socially beneficial policy outcomes. Judges tipically seem to be concerned more with the facts and equities of the specific case at bar than with the implications of personal shareholder liability for society at large. Veil piercing thus has costs, but no social pay- off.”53

53“Os parâmetros que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica são vagos, deixando

grande discricionariedade aos Juízes. O resultado tem sido incertezas e falta de previsibilidade. Ao mesmo tempo, todavia, não há evidências de que a desconsideração da personalidade jurídica esteja sendo aplicada rigorosamente de acordo com políticas de benefício social efetivo. Os Juízes normalmente parecem mais preocupados com os fatos e a justiça do caso concreto em análise do que com as implicações da responsabilização pessoal do proprietário para a sociedade em geral. Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica representa custos, mas não traz benefícios sociais que os compensem.” (tradução livre, BAINBRIDGE, Stephen M. Abolishing veil piercing. p. 2. EUA, 2000. Social.Science Research Network SSRN. Disponível em: <http://www.papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?-abstract_id=67990>. Acesso em: 21 jan. 2009).

Para essa parte da doutrina, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é mal formulada e vaga, pode ser utilizada para justificar a desconsideração em praticamente qualquer caso, não havendo critérios objetivos a serem seguidos pelos Juízes na análise do caso concreto. Tal circunstância, portanto, levaria a um estado de incerteza e insegurança que seria prejudicial não apenas à ordem jurídica, mas também e, principalmente, à economia. Ressalte- se, no entanto, que o Professor Bainbridge e seus seguidores não defendem que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica deva ser prestigiada a qualquer custo, mas sim que tal instituto apenas deva ser afastado para fins de responsabilização do sócio quando ficar comprovada a ocorrência de fraude ou de alguma manobra dos sócios para esvaziar o patrimônio da sociedade em detrimento de seus credores:

“Abolishing veil piercing would refocus judicial analysis in the

appropriate question – did the defendant-shareholder do anything for which he or she should be held directly liable. Did the shareholder commit fraud, which led a creditor to forego contractual protection? Did the shareholder use fraudulent transfers or insider preferences to siphon funds out of the corporation?”54

Em que pese o fato de que tais considerações poderem ser relevantes e coerentes em um sistema de common law, no qual a desconsideração não tem seus requisitos positivados no ordenamento, quer nos parecer que tais críticas não se aplicam ao sistema legal brasileiro, no qual, desde o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, os requisitos para desconsideração da

54“A abolição da desconsideração da personalidade jurídica iria devolver o foco da análise judicial

à questão apropriada – se o proprietário da sociedade ré praticou algum ato pelo qual deva ser diretamente responsabilizado. O proprietário cometeu fraude, que privou o credor de proteção contratual? O proprietário usou transferências fraudulentas ou vantagens internas para drenar fundos para fora da sociedade?” (tradução livre, BAINBRIDGE, Stephen M. op. cit., p. 2).

personalidade jurídica, ainda que representados por cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, vêm expressamente previstos no ordenamento positivo. A despeito disso, também há, no Brasil, aqueles que defendem a abolição da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, por entendê-la supérflua ante a atual filosofia do Código Civil vigente, com seu forte aspecto principiológico e seus conceitos jurídicos indeterminados, tais como a boa-fé objetiva e a função social da propriedade e dos contratos55.

Para essa parte da doutrina, a disfunção da pessoa jurídica seria uma violação à função social do contrato de constituição da própria sociedade e, como tal, já poderia ser sancionada com a aplicação do princípio da função social dos contratos somado, em casos específicos, à boa-fé objetiva. Se, de um lado, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não mais seria necessária frente ao ordenamento jurídico vigente, de outro, a sua formulação abstrata e a forma indiscriminada como vem sendo aplicada pela jurisprudência representariam riscos ao próprio modelo econômico vigente. Não mais havendo a garantia de respeito à autonomia patrimonial e proteção aos bens próprios dos sócios que compõem a sociedade, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica poderia até mesmo conduzir a um movimento de migração do empresariado para a informalidade, uma vez que a observância das normas formais de constituição e manutenção das sociedades não traria qualquer benefício prático ou jurídico.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 71-80)