• Nenhum resultado encontrado

A diferença como força motriz da sensibilidade

2. DISPOSITIVO E IMAGEM: O DISPOSITIVO COMO RELAÇÃO E A

2.1. Atual e virtual

2.1.1. A diferença como força motriz da sensibilidade

A noção que se tem do movimento resultante da relação entre o sujeito e a coisa, ao contrário do que parece, não se trata de uma relação entre as séries ou termos atuais (o olho e a imagem, a prisão e os presos), mas a realização de um virtual que se encontra na própria duração. Por outro lado, a determinação de alguma coisa, possível de ser vista ou enunciada é, não mais que uma escolha, dentre uma infinidade de durações possíveis, de forma que nenhum objeto funciona como um dado imediato, mas como um emaranhado de linhas inventivas que criam o representante físico, vital na dimensão do ser no qual elas encarnam.

Um ser é a expressão de uma tendência na medida em que ela é contrariada por outra tendência. (DELEUZE, B. p. 130) Ou seja, se tomarmos a nível ontológico a forma atualizada de um objeto, Ser-objeto, o mesmo não será mais que a própria enunciação de um singular sempre em relação com outras formas singulares, diagramatizadas. Deleuze afirma que somente a tendência é a unidade do conceito e de seu objeto, fato que nos coloca diante de uma nova ideia de unidade e de conceito. Pois, quando atestamos que uma tendência funciona através do seu potencial afetivo diante de outra tendência, ela passa a agregar o movimento de transmutação que pode, neste sentido, multiplicar as possibilidades de configuração atual dos objetos.

Nesta perspectiva, podemos dizer que quando nos atemos aos objetos, desde os mais cotidianos, até aqueles que interferem em nossas intensidades e

determinações, estamos apreendendo apenas as diferenças de graus e perspectivas intrínsecas a um quadro limitado de possibilidades. Todavia, a diferença é interna e extrapola o plano espaço-temporal, concomitante à unidade das coisas e dos conceitos, que nos lança às diferenças de natureza. As linhas de fatos, que são componentes do espaço atual, são apenas direções que seguem até a extremidade, ou seja, até o limite de um fragmento do real. Estas direções convergem para uma única e mesma coisa, e definem uma integração. Deste modo, a fotografia tomada nessa direção, torna-se apenas uma linha de probabilidade, que seria o mesmo que uma representação. (DELEUZE, B. p.97)

Deleuze destaca que a grande motivação da filosofia bergsoniana, está ligada a uma incapacidade geral de se notar as diferenças de natureza, onde se fixam apenas as diferenças de grau sobre as coisas. (DELEUZE, B. p.15) De certa maneira, olhamos um objeto somente a partir do seu caráter material, visível, enunciativo. Entretanto, a própria matéria e sua experimentação rechaçam as condições meramente físicas da experiência para pensar nas condições que viabilizam tal experiência, no próprio âmbito da superfície e do corpo que passa a enxergar com a pele, com os ouvidos, com as mãos, etc.

Enxergar com a pele, ouvidos e mãos faz menção à “visibilidade virtual”, que Deleuze destaca da obra O Nascimento da clínica (1963), de Foucault. Isto significa que “as visibilidades não se definem somente pela visão, mas são complexos de ações e de paixões, de ações e de reações, de complexos multissensoriais que vêm à luz.” (DELEUZE, F.p.68) Deleuze quer dizer que não há uma experiência perceptiva que não convoque, para além do olho, os demais sentidos, de modo que aquilo que vemos e enunciamos não é a coisa em si, mas uma multiplicidade dotada de agenciamentos e conexões de toda sorte.

A matéria ou o espaço é a atualização da duração, do virtual, das subjetivações que atravessam e são produzidas junto a um objeto ou a uma matéria qualquer. Desta forma, podemos dizer que aquilo que se afigura mediante qualidades físicas visíveis, cujo conteúdo permite fixar diferenças de graus, na realidade é a apresentação atual de uma multiplicidade que engendra a própria percepção pura. Logo, todo conteúdo e expressão possível de ser percebido somente é viável através da combinação de uma multiplicidade que conduz nossa forma de ver e falar.

Em relação à percepção pura, que instaura nossa relação com o mundo, podemos notar que ela não existe sem que a memória a atravesse, uma vez que a memória ocupa um lugar privilegiado no que concerne a uma relação psicofisiológica47, ou seja, entre um sujeito e o seu entorno. Da mesma forma, não há

uma verdade objetiva sem que esta não seja instanciada pela superfície de um objeto que atualiza um virtual composto por linhas de naturezas diferentes.

Nossas percepções, portanto estão impregnadas de lembranças, estas, porém somente se exercem através de uma atualização que toma o corpo de uma representação. É nesse ponto que a diferença entre a matéria e a memória precisa ser destacada conforme a diferença de natureza de cada uma. Pois entre a percepção e a ação existe uma afetividade própria que conduz o exercício perceptivo, através da duração.

A diferença de natureza que Deleuze exalta, tanto em suas elaborações acerca de um dispositivo e seu funcionamento, quanto nas proposições filosóficas de Bergson estabelece-se através de determinações que se distinguem unilateralmente. Isto significa que a diferença não se dá na diferença conceitual entre duas instâncias concomitantes, como a percepção e a memória. Mas na distinção de um domínio que exprime sua singularidade, ao mesmo tempo em que aquilo de que se distingue não necessariamente faz menção a este elemento singular. A percepção convoca a memória ao mesmo tempo em que difere dela, contudo, a memória não difere necessariamente da percepção, uma vez que a última é apenas a realização da primeira.

Em outras palavras, a percepção faz parte da memória, contudo ela é a operação atual da memória, uma vez que ela se lança aos objetos atuais, às visibilidades e enunciações. O exemplo do relâmpago empregado por Deleuze em

Diferença e repetição (2006) expõe essa relação unilateral de forma um tanto clara e

abrangente: “O relâmpago, por exemplo, distingue-se do céu negro, mas deve acompanhá-lo, como se ele se distinguisse daquilo que não se distingue”. (DELEUZE, DR. p. 55) Logo, a percepção se singulariza em meio à memória, ao mesmo tempo em que ela acompanha a memória como se esta fosse outra coisa que não a memória.

Aqui, a diferença diz do próprio pensamento que opera de forma a fazer com que a determinação da percepção se distinga de maneira unilateral com o indeterminado que é a memória. O fundo indeterminado da memória emerge à superfície, passando a confundir-se com o determinado, ou seja, com a própria noção de percepção, tornando ambos uma só determinação que contém uma diferença. Desta maneira, a memória não permanece no fundo da experimentação, mas passa a adquirir uma existência autônoma. Este modo de existir próprio parece dissipar a forma da determinação orquestrada pela percepção que rompe com os elementos alusivos a um fundo que supostamente permaneceria obscuro e enigmático no exercício da experiência.

Em uma experimentação estética, por exemplo, nossa percepção determina aquilo que vemos. A percepção opera subtraindo aquilo que lhe parece conveniente ou necessário. Junto a essa visibilidade selecionada que nos é dada diante de um objeto artístico, percebemos uma espécie de plano que nos dispõe a enxergar algo para além dos elementos táteis de tal objeto. Supomos que esse indeterminado que nos posiciona para além e aquém daquilo que nos dá a ver seja dotado de uma série de elementos incorporais, dentre eles a memória, que atravessa nossa fruição e se atualiza no próprio objeto de arte.

2.1.2. O funcionamento de uma imagem e o caráter diferencial da