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A microfísica do poder e o papel da instituição em um dispositivo

1. DISPOSITIVO: O CARÁTER MULTILINEAR DO CONCEITO

1.2. Dimensão do Poder: os afectos e as afecções

1.2.2. A microfísica do poder e o papel da instituição em um dispositivo

A determinação do poder, essencialmente prática, não se reduz a uma determinação cognoscível do saber e a prática do poder também permanece irredutível a toda prática do saber. Pelo fato de as relações entre o saber e o poder se tratarem de ligações móveis e não localizáveis, Foucault destaca do poder o caráter de uma microfísica, marcando a diferença de natureza entre essas duas dimensões. Não por acaso, Deleuze menciona que a expressão é como uma “estruturação amplificante que faz passar para o nível macrofísico as propriedades ativas da descontinuidade primitivamente microfísica.” (DELEUZE, MP, v.1, p.72) Essa diferença entre as dimensões não impede que haja correspondências entre o arquivo e o diagrama, ao contrário, ela permite uma série de capturas recíprocas ou uma imanência mútua entre o saber e o poder.

Ao tratar da microfísica, Foucault convoca o corpo como um elemento que se pode colocar, mover e se articular com os outros em meio a um estrato, ou seja, o corpo atua como um fragmento de um espaço móvel, também fragmentado e especificado. (FOUCAULT, 2008. p.139) O corpo vem acompanhado das suas forças, da utilidade e docilidade delas, da sua repartição e submissão. Em Vigiar e Punir o corpo aparece preso a um sistema de sujeição, contudo, tal corpo detém uma tecnologia política própria, cujo saber não está relacionado à ciência de seu funcionamento e aquilo que seria o controle de suas forças extrapola a simples capacidade de vencê-las. (FOUCAULT, 2008. p.26)

As instituições e os aparelhos de Estado recorrem a todo momento a esta “tecnologia política” do corpo, como uma maneira de utilizá-la, valorizá-la e impor algumas das suas maneiras de agir. Mas esta tal maneira peculiar do corpo situa-se em um nível completamente diferente, mediante seus mecanismos e efeitos. Por esse motivo, o corpo atua conforme uma microfísica do poder, na medida em que o exercício das forças não seja concebido como propriedade, mas como estratégia, e que seus efeitos não sejam atribuídos a uma apropriação dos corpos, mas como disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos, que revelam uma rede de relações sempre tensas e sempre em movimento. (FOUCAULT, 2008. p.26)

Segundo Deleuze, a microfísica do poder relaciona-se aos mecanismos miniaturizados, aos focos moleculares que se exercem no detalhe, constituindo as disciplinas de maneira equivalente nos dispositivos, como na escola, na fábrica, na prisão, nos hospitais, etc. Estes dispositivos são como que as singularidades, ou atualidades de um diagrama abstrato, sendo este coexistente a todo o campo social, ou como parte de um “fluxo qualquer definido por uma multiplicidade de indivíduos a ser controlada”. (DELEUZE, MP, v.3. p.88)

Podemos notar que existe um complexo saber-poder que engendra uma articulação própria, a partir de suas diferenças. Esta articulação faz com que as linhas de força conduzam a batalha entre o saber e o poder e atuem como “flechas que não cessam de entrecruzar as coisas e as palavras”. (DELEUZE, DRF. p.317-318, tradução nossa) As linhas de força vão de um ponto singular a outro passando por todos os lugares de um dispositivo envolvendo-o por completo em uma espécie de integração.

A operação em torno das linhas de força se configura a partir da produção de uma linha de força geral, que atualiza formas definidas como o Estado, a Religião, a Arte, dentre outras instituições. Esta atualização faz convergir as singularidades, ao alinhá-las nesse exercício de estratificação dos afectos, sem que de imediato resulte em uma integração. Este processo abrange uma multiplicidade de integrações locais e parciais que se desenvolvem sobre pontos singulares afins. Desta forma, as instituições ficam destituídas de qualquer essência ou interioridade, e enquanto parte de um mecanismo do poder são práticas que fixam as relações que se formam em torno do mesmo. Portanto, constituem uma função reprodutora e não produtora. (DELEUZE, F. p.83)

A instituição é apenas um limiar atualizado, decalcado pelo diagrama de um dispositivo. Ela cumpre o papel de verticalizar os elementos deste espaço atual, conforme os regimes de signos com os quais ela se utiliza. No caso das Artes, artistas e objetos são postos como partes hierarquizadas de um sistema artístico em um dado período de tempo. Daí decorre o fato de um mictório qualquer não ser uma obra de arte ao passo que o famoso mictório de Duchamp32 é reconhecido atualmente como

uma das mais importantes obras de arte do século XX.

Diferente das instituições que se afiguram como se fossem porta-vozes de um poder vigente, a própria dimensão do poder virtual comporta forças que agem mediante o desejo, através dos agenciamentos. Em função disso, aquilo em que o desejo se realiza, ou melhor, se atualiza corresponde a um fragmento do desejo, que em função do seu regime específico, não o traduz e sequer o representa. Ainda assim, sem esta forma de atualização que nomeia, evidencia e qualifica, o desejo jamais se realizaria e um dispositivo não atuaria sobre um determinado conjunto.

O que entendemos por instituição é, na verdade um conjunto de práticas, em uma determinada formação histórica, sob determinadas relações de poder convenientes ao estrato específico. Diante dessa constatação, é preciso averiguar que relações de poder cada formação histórica integra e que relações ela mantém com outras instituições existentes sobre tal estrato e como essas repartições mudam de

32 A fonte, obra dadaísta criada por Duchamp em 1917, foi produzida com o intuito de ser um objeto crítico frente a um sistema vigente das artes. Na ocasião em que foi exposto, o trabalho foi atacado por um dos espectadores e atualmente o urinol de porcelana possui um valor de mercado que ultrapassa os 3 milhões de euros.

um estrato a outro. Pode haver inclusive formações múltiplas e incessantes, como a forma-Estado da contemporaneidade, que se trata de uma “estatização contínua” e bastante variável, conforme nos destaca Deleuze. (DELEUZE, F. p.83)

A instituição é, portanto, biforme e bifacial. Ela fala e faz ver, é linguagem e é luz; “(...) a atualização só integra criando, também, um sistema de diferenciação formal”. (DELEUZE, F. p.83) Logo, em cada formação é engendrada uma forma de receptividade que constitui o visível e uma forma de espontaneidade que constitui o enunciável, sendo estas formas não coincidentes no que diz respeito aos dois aspectos da força, ou duas espécies de afectos. Entretanto, é na receptividade do poder de ser afectado e na espontaneidade do poder de afectar, que o visível e o enunciável encontram suas condições internas.