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A imagem emancipada, um outro dispositivo

2. DISPOSITIVO E IMAGEM: O DISPOSITIVO COMO RELAÇÃO E A

2.3. Imagem-movimento e Imagem-tempo

2.3.4. A imagem emancipada, um outro dispositivo

Assim como o cinema, a fotografia não apresenta apenas imagens, mas envolve-as em um mundo, numa espécie de engendramento de circuitos que coloca em um mesmo plano, imagens atuais e imagens lembrança. Neste sentido o objeto real reflete-se como objeto virtual, sendo que este se lança para o mundo como real. Esta dinâmica marca uma coalescência entre o atual e o virtual, de modo que a imagem refletida, chamada por Deleuze de imagem em espelho76, torna-se animada,

independente e atual.

Ainda que seja uma imagem aparentemente estática, a fotografia torna-se animada por meio da revelação de uma vida não orgânica, cuja duração não atua conforme as injunções de um tempo cronológico, mas a partir das alterações que passam a mediar sua existência autônoma. O retrato de um índio, por exemplo, faz coexistir a imagem real do indígena e a imagem virtual do homem branco (que vê e fotografa). Com efeito, trata-se de uma imagem em espelho, disposta em uma profundidade, que gera um fundo no qual algo pode fugir, se libertar.

Nesta direção, a pesquisadora Stella Senra destaca que a questão da pose, juntamente ao contato físico, se configuram como o eixo ou ponto de partida no qual a artista Cláudia Andujar se apoia no momento de elaboração do seu trabalho. De acordo com Senra “Cláudia procura captar os diferentes níveis de aproximação com o branco, do mais antigo ao mais recente, tornando visível uma espécie de “dinâmica” dos corpos e dos olhares que o contato inaugura.” (SENRA; In: ANDUJAR, 2009. p.136)

75 Utilizo aqui parte dos exemplos que Deleuze cita, a respeito da consciência-câmara, atribuída a um cinema-verdade, que significa a verdade do cinema.

76 A imagem em espelho é comparada à fotografia e ao bilhete postal que atuam como decalque, reflexo ou cópia de uma ação real.

Esse procedimento denota um duplo movimento de libertação e captura, pois ao mesmo tempo em que a imagem virtual se atualiza, a imagem atual pode se tornar reflexo, passando a ser uma imagem virtual, refletida, tal qual uma imagem fotográfica. Para além do atual e do virtual constituídos, algo pode escapar da imagem pelo desenvolvimento de uma experimentação, cuja possibilidade de criação de um novo real, encontra-se na fuga de um plano de representações injuntivas, de um pretenso jogo de realização, codificação, significação.

Quando associada ao documento77, uma fotografia agrega para si uma lógica

representativa, cuja função prática baseia-se em seu dispositivo técnico reprodutor, como uma espécie de ilustração e multiplicação do mundo. Mesmo como documento, a fotografia pode contribuir com a expansão da área do visível e também para o aumento dos espaços de troca, tornando-se mais que uma mediadora das relações física, direta e sensível com o mundo, para se tornar uma geradora de mundo. Segundo André Rouillé (2009), quando a relação com o mundo é delegada a um terceiro (o fotógrafo), percebemos que a relação visual com as imagens é substituída pela realidade fazendo do próprio mundo, uma imagem. (RUILLÉ, 2009. p.101)

Entre um mundo real e um mundo refletido, imaginário e virtual situa-se uma indeterminação recíproca, na qual a indiscernibilidade do atual e do virtual se afirmam como “imagens múltiplas”, duplas por natureza. Nesse sentido, o arquivo fotográfico, desde a imagem-documento até a imagem-expressão, desenvolvidas teoricamente por Rouillé, atuarão como ordenamentos simbólicos, estejam eles a cargo de uma pretensa representação do real, ou de uma também pretensa expressão livre.78

Para Rouillé (2009), enquanto a fotografia-documento se “organiza ao redor do pivô da representação”, a fotografia-expressão mais intervém nas coisas do que as representa ou relaciona-se com elas. Com efeito, uma fotografia não pode representar algo, sem agir sobre ele, ao mesmo tempo em que este algo, passa a se desenvolver

77 Vale ressaltar que a função documental da fotografia relaciona-se aos fenômenos da sociedade industrial, de meados do século XIX. A aceleração do crescimento das metrópoles e o amplo desenvolvimento da economia que passaram a intervir nos conceitos de espaço e de tempo. Segundo André Ruillé (2009), o papel de documento da fotografia relaciona-se ao seu “poder de equivaler legitimamente às coisas que ela representava.” (p.31)

78 Rouillé destaca como exemplo da passagem da imagem-documento, para a imagem-expressão as fotografias de moda, que extrapolam os dados informativos de um produto, como descrição fiel das roupas, para a invenção de outras formas de expressão que re-significam os produtos, lançando-os para valores sociais, ideológicos, consumistas, etc. (p.165-166)

por meio da imagem. (DELEUZE; GUATTARI, MP, v.2. p.27) Talvez por isso Rouillé identifique um declínio da imagem-documento, por ser uma imagem, cuja pretensão insiste em permanecer na ficção da “transparência das imagens”, na primazia do referente em relação às formas. (ROUILLÉ, 2009. p.167)

Ainda que nem sempre a imagem-expressão possa ser inscrita no contexto das artes, uma vez que ela pode apenas reafirmar a força das formas e da escrita fotográfica pela identificação, (como no caso das imagens publicitárias da moda), esta imagem nos ajuda a problematizar o saber de uma fotografia. Em outras palavras, a imagem-expressão atua operando, ordenando e organizando formas atuais de enunciação, que passam a codificar ou atualizar uma imagem para além do seu decalque fixo, do seu arquivo imutável.

Deste modo, a imagem fotográfica se desloca do seu esquema técnico e reprodutor, para alcançar o lugar do processo de atualização das formas perceptivas, tal qual um diagrama. Não se trata mais do desvelamento imagético, mas da expressão de um sentido que se dá com a invenção incessante das formas de conteúdo e de expressão. Como vimos no primeiro capítulo desta pesquisa, tanto o conteúdo quanto a expressão detêm suas formas próprias, engendradas a partir de um diagrama que atua mediante as forças que estrategicamente atuam em um dado dispositivo.

Assim, não podemos jamais atribuir a uma forma de expressão a simples função de representar ou de descrever um conteúdo correspondente. (DELEUZE; GUATTARI. MP, v.2 p.26) A independência destas duas formas que constituem a matéria atual de expressão e de conteúdo, é confirmada pelo fato de que as expressões irão se inserir nos conteúdos, intervir nos mesmos, não para representá- los, mas para agir sobre suas velocidades e posições no tempo e no espaço. Tal dinâmica define uma cadeia de transformações instantâneas que irão, de modo ininterrupto, se inserir na trama das modificações contínuas.