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A imagem-tempo e a questão do olhar

2. DISPOSITIVO E IMAGEM: O DISPOSITIVO COMO RELAÇÃO E A

2.3. Imagem-movimento e Imagem-tempo

2.3.3. A imagem-tempo e a questão do olhar

Se admitirmos que é possível pensar em arte contemporânea, ou mesmo em fotografia a partir de uma situação puramente ótica, ou seja, de uma situação na qual a visão não mais deve se prolongar em ação, iremos com Deleuze libertar as imagens,

71 A este respeito, Hal Foster indica a obra Envoironments and Happenings de Allan Kaprow, Nova York: Abrams, 1966. (FOSTER, 2014. p.36)

mesmo as da performance e da instalação dos limites de uma imagem-movimento. Para tal, a imagem que antes se afigurava como uma representação indireta do tempo, por meio da cronologia percepção-afecção-ação, agora será a apresentação direta do tempo. De outro modo, a imagem do pós-guerra, junto ao cinema, inaugura uma disposição essencialmente ótica, criando um novo tipo de imagem, a imagem-tempo. Mas o que isso implica no cenário de fotografia contemporânea atual e que nos auxilia no pensamento de um dispositivo que se produz para além do aparato?

A imagem-tempo é uma imagem emancipada do esquema sensório-motor mediado sempre por uma percepção parcial, na qual as coisas se apresentam conforme as afecções. Trata-se da imagem inteira, liberta dos sentidos, em uma relação direta com o tempo e com o pensamento. Mais do que uma representação, ou uma coisa, Deleuze diz que a imagem possui uma existência tal, que a coloca no meio do caminho entre a coisa e a representação. Tal noção de imagem apresenta uma resposta ao dualismo de Platão, cuja tese se sustenta no fato de que a representação é sempre uma relação subordinada à mímesis da coisa.72

Podemos então dizer que a fotografia é uma matéria atual que presta testemunho da unidade ou totalidade virtual que se dissipa segundo uma variedade de linhas. Sendo este atual, uma realização indiscernível do virtual. A fotografia é, para além do objeto, do presente e da percepção, uma imagem virtual composta de subjetivação, passado e lembrança. A imagem virtual a que Deleuze se refere é o que Bergson chama de “lembrança pura”, que apesar de virtual, ela se apresenta atual ou em vias de atualização.73

Esta imagem não se confunde com a imagem-lembrança decalcada em um passado datado, mimético ou mesmo com as imagens do sonho ou do devaneio que são atualizações que se produzem subordinadas à consciência. A imagem virtual, ao contrário, existe fora da consciência, no tempo, de modo que a imagem-lembrança é apenas um modo ou grau de atualização. Entre as imagens atuais e virtuais, Deleuze

72 Esta hipótese é apresentada por Rafael Godinho, na introdução da versão portuguesa de Imagem-

Tempo-Cinema 2 (2006),

73Segundo Deleuze, Bergson define a “lembrança pura” pelo seu caráter “extrapsicológico”, no sentido de que tal lembrança não está relacionada a um passado vivido, mas a um passado em geral, no qual destacamos uma parte ou região, conforme as exigências do presente. “Pouco a pouco, ela [a lembrança] aparece como uma nebulosidade que viria condensar-se; de virtual, ela passa para o estado atual [...]”. (BERGSON, apud. DELEUZE, B. P.43)

encontra a “Imagem-cristal”, que dá forma ao tempo no sentido em que torna visível a fragmentação do presente em duas direções heterogêneas, uma rumo ao futuro e outra ao passado.

O que vemos no cristal é o próprio tempo, que consiste nesta divisão que se erige no espaço objetivo, cuja temporalidade flutua entre o atual e o virtual, inscrito na memória e marcado pela multiplicidade de eixos espaciais e temporais que constituem a totalidade de uma imagem. Sendo assim, o próprio olhar e a descrição visual tornam- se a ação motora, fazendo com que entre o real e o imaginário, o físico e o mental, em uma situação, não necessitem mais de distinção. A descrição se torna o objeto decomposto e multiplicado. (DELEUZE, IT. p.165)

Nesta perspectiva, a diferença entre subjetivo e objetivo, mais uma vez, perdem por completo a sua importância, pois ambos tornam-se valores provisórios e relativos, ancorados em uma espécie de cumplicidade, de modo que o subjetivo cria o real, ao mesmo tempo em que o objetivo já se apresenta como um modo de subjetivação. Neste plano, entra em jogo a força da descrição visual, ou enunciação que engendra o real e o visível fazendo a descrição visual penetrar tanto no observador, quanto no objeto.

Seja por meio das visibilidades ou através das enunciações, a questão paira sobre a indiscernibilidade entre o real e o imaginário, sendo esta, o motivo pela qual o dispositivo técnico, como a câmera no cinema ou na fotografia, se torna um “rico conjunto de funções”, cujo resultado se afigurará em uma nova concepção do quadro e dos enquadramentos. (DELEUZE, IT. p.38-39)

A fotografia de Cláudia Andujar, por exemplo, parece enquadrar a ação em um tecido de relações, sendo que estas não são as ações, mas atos simbólicos que só possuem uma existência mental. A câmera, que parece dançar analogicamente com a cena, desvela este enquadramento e o seu movimento percebido na “imagem trêmula”, como define Philippe Dubois, ou no tecido relacional atualizado pela imagem fotográfica, que manifesta tais relações empreendidas pela mente.

Figura 5: ANDUJAR, Cláudia.Yanomami Amazônia, 1971-1977. Fonte: ANDUJAR, Cláudia. A casa, a

floresta, o invisível. São Paulo: DBA, 1998. Acervo do autor.

Toda ação enquadrada constitui parte de uma trama móvel, amplamente transformável. Não é o olhar do fotógrafo que atua, mas a mente que faz ultrapassar a imagem-ação em direção às relações mentais, numa espécie de vidência.74O olho,

nesta direção, torna-se a visibilidade da imagem, ou seja, o olho não é o dispositivo imagético, como a câmera, mas a tela que planifica o conjunto de relações de uma imagem. A câmera, ou o dispositivo é, na verdade, o que Deleuze chama de “terceiro olho ou olho do espírito”. (DELEUZE, C. p.72)

Em suma, Deleuze diz que o dispositivo concreto torna-se uma espécie de consciência, que junto ao artista, passa não mais a se definir pelos movimentos físicos que é capaz de realizar ou capturar, mas pelas relações mentais que é capaz de engendrar. De outro modo, aquilo que seria meramente um dispositivo técnico e reprodutor, ou seja, um aparato a serviço de uma reprodução, passa a se definir para além do movimento e do esquema sensorial e motriz. A fotografia, como relação,

74 Deleuze faz esta explanação a respeito do cinema de Alfred Hitchcock, que não atesta a crise de uma imagem ação, mas exalta e eleva ao máximo a imagem-movimento à sua saturação, a partir de uma sucessão de eventos que vão ocorrendo de forma acelerada e contínua. Com isto, Deleuze afirma que Hitchcock inaugura o início de um modernismo no cinema, que irá culminar com as imagens-tempo. (DELEUZE, C. p.73)

transforma-se numa espécie de consciência interrogativa, examinadora, motivadora, provocante.75