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Dispositivo Imagem: um plano do desejo

3. DISPOSITIVO IMAGEM: UMA NOVA FOTOGRAFIA

3.3. A construção de um dispositivo: o retrato fotográfico

3.3.1. Dispositivo Imagem: um plano do desejo

Um dispositivo pode funcionar como um rizoma116, ou melhor, a imagem, como

dispositivo, pode atuar como uma espécie de rede, ou plano dotado de entradas múltiplas, cujas leis de utilização e distribuição encontram-se, a princípio,

116 Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo.... Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades.” (DELEUZE; GUATTARI, MP, v2. p.31)

desconhecidas. Mesmo um retrato, que parece conter um único elemento de cognição, a pessoa fotografada, é dotado de pontos, entrecruzamentos, interseções que formam o mapa do rizoma, que se modifica a todo momento, permitindo ao espectador, fruidor ou qualquer outro agente do encontro com a obra, produzir múltiplas conexões e transposições.117 Mais do que significar, uma fotografia deve

funcionar.

Não obstante, podemos perceber como os dados figurativos em uma fotografia são muito mais complexos do que o que se espera. Notadamente, uma fotografia é um modo de ver, considerado muitas vezes como uma espécie de reprodução ou representação. Este tipo de análise é possível a partir do momento em que lançamo- nos sobre uma imagem através da semelhança ou convenção, da analogia ou codificação que procedem por meio de algo que se encontra intrínseco a uma imagem em seu estado estratificado. Todavia, para além destes “modos de ver” instituídos, uma fotografia é vista, ela existe em si mesma e vemos apenas aquilo que se encontra nela. Este, por sua vez, vai além dos dados figurativos já estruturados.

A fruição de uma fotografia não se liga apenas com o entorno imagético que se afigura a partir dela, como se fosse um dado presencial, por excelência. Na realidade, se nos guiarmos junto a Deleuze, em suas descrições acerca das dimensões do pensamento, veremos que a entrada em uma obra consiste, a menos de princípio, na operação de ligação entre as duas formas independentes, conteúdo e expressão, que constituem o eixo do saber em um dispositivo. Ao tratar das fotografias descritas por Kafka ao longo de suas obras, Deleuze e Guattari afirmam que a forma de conteúdo de uma imagem se une à forma de expressão, causando uma espécie de bloqueio funcional, ou neutralização do desejo experimental. (DELEUZE; GUATTARI. K. p.20)

Por conseguinte, a permanência do olhar sobre a dimensão do saber, atua como uma lembrança decalcada, tornando a própria fotografia, uma imagem- lembrança, fixa e estrutural, enquadrando os desejos aos limites dos estratos. A fotografia como manifestação artística deve, ao contrário, aguçar o desejo ao invés de limitá-lo. Deve atuar para além dos territórios estruturais, ditados pelas formas de

117 As entradas múltiplas fazem parte de uma proposta deleuziana e guattariana de experimentação. (DELEUZE, GUATTARI. K. p.19)

poder, que inevitavelmente tornam a imagem uma forma de conteúdo e expressão específicos.

Figura 9: ANDUJAR, Cláudia. Yanomami. Amazônia, 1971-1977. Fonte: ANDUJAR, Cláudia.

Yanomami: A Casa, a Floresta, o Invisível. São Paulo: DBA, 1988.

Poderíamos dizer que a fotografia acima, por exemplo, relata um momento vivido e que ao encontro do olhar daqueles que presenciam tal imagem, ela reflete a própria lembrança de um instante congelado pelo retrato, a lembrança de uma infância ou de um tipo de infância. Todavia, uma imagem não atua desta maneira, sobretudo a partir do momento em que admitimos que o plano imagético é dotado de uma multiplicidade tal, que se efetua conforme os inúmeros agenciamentos que passam entre ela e que a expandem para além dos dados figurativos e estruturais.

Por esse motivo, ainda com as análises deleuzianas e guattarianas a respeito das descrições fotográficas em Kafka, podemos dizer que a imagem acima age como um bloco de infância. (DELEUZE; GUATTARI. K. p.20) Isto quer dizer que uma fotografia ou retrato detém uma potência sobre o desejo, fazendo-o deslocar no tempo e no espaço como uma espécie de fuga do território, amplificando assim as conexões e intensidades que por ele passarem.

De outro modo, a imagem imprime um ritmo próprio que nos leva a uma infinidade de sensações, que permanecem enredadas em uma espécie de devir-

criança, que se opõe à lembrança visual. Tal lembrança se apresenta como uma forma de atualidade compreendida mediante os estratos ou limiares segundo as quais a imagem fotografada encontra-se inserida. Já o devir-criança é a própria fuga dessa imagem decalcada, sob um único modo de conteúdo, a visibilidade do corpo da criança que passa a se relacionar com o domínio da expressão, fazendo emergir para além da figura, um suposto som que expande a imagem.

A fotografia de Andujar nos dá a ver algo que vai além do relato histórico-social do povo Yanomami, para nos conectar com as forças que escapam a estas estruturas, aproximando-nos do impulso vital, que permite ao homem criar com a matéria um instrumento de liberdade.118 Aos fruidores de uma obra, é dada a capacidade de fazer

coexistir todos os níveis e graus de contração e distensão que compõem o todo coextensivo, permitindo aos observadores da obra, a encarnação em espécies diversas, em durações que lhes são inferiores ou superiores a si.

É neste sentido que uma fotografia age como um bloco de devires, como um campo de forças que atuam sempre em relação umas com a outras. Os devires escolhidos por Andujar privilegiam a infância, a mulher e o indígena. Estes, funcionam como desterritorializações absolutas que se inscrevem em meio às paisagens, nem sempre reconhecíveis, investidas pela fotógrafa.

Os índios de Andujar não parecem buscar o lugar arquetípico dos mitos, mas correspondem a zonas de intensidades livres, cujas visibilidades se libertam das formas identitárias, do mesmo modo em que os enunciados se despem dos significantes que os formalizam enquanto agentes de uma tal enunciação. Isto, porque o devir-índio que se forma produz o movimento de traçar a linha de fuga, transpondo um novo limiar no qual conteúdo e expressão de desfazem para dar lugar a uma matéria não formada de fluxos desterritorializados, de signos assignificantes.

O devir nunca é imitação ou reprodução, mas como elucidam Deleuze e Guattari, é captura, posse, mais-valia. (DELEUZE; GUATTARI K. p.35) O índio capturado pelas lentes da fotógrafa encontra-se desterritorializado pela força da artista, de modo que a força indígena acelera e intensifica a desterritorialização da

força desterritorializante da artista.119 Em outras palavras, a pessoa fotografada ganha

um corpo que não é mais o do olho do fotógrafo, de maneira que este novo corpo fotografado passa a atuar, não só sobre o olhar do fotógrafo que produziu a imagem, mas também nos observadores em geral.