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2. DISPOSITIVO E IMAGEM: O DISPOSITIVO COMO RELAÇÃO E A

2.1. Atual e virtual

2.1.4 O sujeito, o tempo e a memória

Já no final de seu livro sobre a obra de Foucault, Deleuze enuncia que a questão do sujeito ou da subjetividade, que engendra nossas formas de pensamento e percepção das verdades em torno das coisas, não pode ser pensado separado do tempo. Pois, verificamos como a dimensão da subjetividade se ocupa em povoar o intervalo de uma ação com lembranças de um passado, ao mesmo tempo em que contrai as qualidades que são produzidas pelo próprio sujeito, no presente. Deleuze afirma que o tempo é a própria subjetivação e a memória seria o tempo tornado em afecto de si para si. (DELEUZE, F, p. 115)

Para Deleuze a memória é a duração, a consciência, a liberdade. Isto porque segundo as concepções bergsonianas é a memória que dá conta da apreensão das várias temporalidades que conduzem nossas experimentações. A memória atravessa nossas percepções imediatas, ao mesmo tempo em que acumula uma multiplicidade de momentos. É nesse sentido que a subjetivação adquire certa liberdade, pois mesmo diante de um dispositivo que mobiliza a experiência, é possível imprimir uma duração própria àquilo que é disposto em nosso entorno, ao mesmo tempo em que tal inflexão, mediada pela duração, passa a constituir nossa memória produzindo novos agenciamentos.

As produções de subjetividades que são atribuídas aos dispositivos que povoam nosso entorno, são verificáveis muitas vezes a partir dos diversos movimentos de atualização. Porém, conforme vimos, tais movimentos são da ordem da percepção pura, do espaço e não qualificam a multiplicidade que compõe uma duração, ou seja, um processo de subjetivação. Por isso, ao movimento não pode ser atribuída uma duração, mas apenas variações de grau que se dão em um recorte preciso e imediato, passível de se tornar visível em função dos regimes nos quais está disposto.

Diferente do movimento translativo, que faz parte da linha da atualidade, ancorada pelo cérebro, a lembrança faz parte da linha de subjetivação e só pode se conservar no intervalo da duração, uma vez que existe uma espécie de afecção que

turva a percepção, ligando-a à subjetividade. Neste sentido é possível inferir que existe uma diferença de natureza latente entre a linha de objetividade e a linha de subjetividade em um mesmo composto, concomitante à diferença de natureza existente entre matéria e memória, percepção-pura e lembrança-pura. (DELEUZE, B. p.42)

Novamente ressaltarmos que mesmo sendo linhas, instâncias, experiências de naturezas diferentes, não há contradição entre elas, mas uma reciprocidade54, de

forma que uma não anula a outra em meio a uma duração. Neste sentido, Deleuze afirma que a duração bergsoniana encontra uma melhor definição quando amparada pela coexistência, mais do que pela sucessão. E ainda destaca que mesmo que a duração seja uma sucessão real, esta somente é possível porque se trata de uma coexistência virtual de todos os graus de contração e distensão que viabilizam a percepção da duração, atualizada de maneira organizada. (DELEUZE, B. p.47)

Deleuze destaca ainda que uma das maneiras pelas quais Bergson apresenta a duração, se dá no seu próprio exercício de “conservação e acumulação do passado no presente”. (DELEUZE, B. p.39) Justamente em função desta dupla tarefa da duração, a memória é apresentada pelos seus dois aspectos que se realizam de formas diferentes, mediante uma duração temporal que a torna ora memória- lembrança, ora memória-duração. (DELEUZE, B. p.39)

Se a memória duração é o próprio virtual, a lembrança já opera sobre o virtual, tornando-o atual. Mas ainda assim ela não possui uma existência psicológica, ela é virtual. Antes que a lembrança seja associada ou atualizada como tal, é preciso deparamos com o virtual, com a instância que se difere das formas e expressões psicologizantes. É por isso que a lembrança não possui ainda uma existência psicológica. O mesmo se dá com os visíveis e enunciáveis em um dispositivo, pois antes de serem atualizados como conteúdo e expressão de alguma coisa, é preciso nos instalarmos sobre os vários elementos de sentido para depois, em uma região específica desses elementos, extrairmos a sua atualização.

Deleuze utiliza a figura do fotógrafo que passa horas inserido no meio a ser capturado ajustando seu aparelho fotográfico. As fotografias reveladas são

54 O termo reciprocidade pode ser encontrado por diversas vezes em “Diferença e Repetição” (2006),

comparáveis às formas atuais produzidas a partir de uma recepção apropriada, incorporada ao virtual que mobiliza a sua percepção. Mais uma vez verificamos como a percepção puramente atual não dá conta da complexidade de uma imagem, ao mesmo tempo em que a nossa apreensão sobre as coisas reside somente sobre as próprias coisas inseridas no presente em que as percebemos.

“A coisa e a percepção da coisa são uma só e mesma coisa, uma só e mesma imagem, mas referida a um ou a outro dos dois sistemas de referência.” (DELEUZE, IM, p.103) A coisa é tal como ela é em si, uma forma luminosa que se dá a ver, mediante um regime específico. É como o mundo que se refere a todas as outras imagens que o compõem e que sofre, por assim dizer, ações e reações. Já a percepção da coisa, é como a fotografia, pois trata-se de uma mesma imagem referida a uma outra imagem especial que a enquadra e só retira dela uma ação parcial. (DELEUZE, IM, p.103-104)

Por isso, ao falar da memória, Deleuze afirma que “nossa lembrança permanece ainda no estado virtual” e que “dispomo-nos assim, a simplesmente recebê-la, adotando a atitude apropriada” (DELEUZE, B. p.43). O que ele quer dizer é que há em cada receptor uma espécie de função-dispositivo, mediada pelos processos de subjetivação que interferem em todo presente particular, ao mesmo tempo em que se produzem conforme a variedade de dispositivos que os circundam.

De outro modo, “percebemos a coisa menos aquilo que não nos interessa em função das nossas necessidades.” (DELEUZE, IM. p.104) Necessidade ou interesse deve ser compreendido a partir das conexões que somos capazes de fazer mediante nossa face receptiva, bem como as ações que selecionamos em função do intervalo, ou seja, do desvio que surge entre a ação e a reação.55 Como imagem, a coisa

percebe-se a si mesma e percebe todas as outras coisas, bem como as ações que se exercem sobre ela e as reações que a mesma efetua.

Logo, não há a necessidade de se construir um aparato com o intuito de enquadrar um único tipo de percepção ou ação de acordo com o interesse do construtor. Tal empreendimento seria impossível pois teria de contar com uma multiplicidade de elementos como pessoas e objetos quaisquer, que agrupados,

55 As imagens que surgem a partir deste intervalo será chamada por Bergson de imagens receptivas ou sensoriais em função do tempo que atua sobre elas.

carregam cada um o seu próprio passado, as lembranças e as potências afetivas de modo que o presente é atualizado junto à inúmeros processos de subjetivação que passam a operar diversamente de modo agenciado, interessado e mutável.

Embora seja possível pensar em uma ideia de passado em geral, existe no passado uma multiplicidade de passados coexistentes. Deleuze afirma que em Bergson, o passado assume uma faceta ontológica e passa a coexistir com um presente que não cessa em passar e que é a todo o momento atravessado por esse passado que é. Ou seja, o passado adquire uma conotação ontológica que é acessada somente por sua atualização.

Conforme veremos adiante, esse passado insiste e sobrevive mesmo que não haja um sujeito que se recorde dele, enquanto imagem vista. Do mesmo modo, não são apenas as imagens vistas que se mantêm como memória, mas a temporalidade que elas constituem. Posto que o passado seja uma condição para a experimentação do próprio presente, ao interferir naquilo que se apreende, apenas verificamos o passado “ali onde ele está, em si mesmo, não em nós, mas em nosso presente”. (DELEUZE, B. p.43)

Desta forma uma imagem possível de ser percebida no presente contém no exercício perceptivo elementos de nossa lembrança que ela encarna, ou atualiza. Porém sua atualização não se faz se não se adaptar às exigências do presente, tornando-a algo do presente. É assim que as temporalidades de uma duração passam a coexistir em nossa percepção de forma que a diferença de natureza entre passado e presente, percepção-pura e memória-pura sejam substituídas por simples diferenças de grau entre “imagens-lembranças” e “percepções-imagens”. (DELEUZE, B. p.45)

Uma fotografia, nesta perspectiva, passa a ser a própria coexistência da temporalidade exprimida através das imagens-lembranças, ou seja, da encarnação