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A respeito de uma (possível) fotografia menor

3. DISPOSITIVO IMAGEM: UMA NOVA FOTOGRAFIA

3.3. A construção de um dispositivo: o retrato fotográfico

3.3.2. A respeito de uma (possível) fotografia menor

Até o presente momento, com a fotografia de Andujar tratamos sempre de conteúdos e suas respectivas formas: um corpo jovem, um corpo feminino, um corpo infantil, um indígena. Buscamos também, as possíveis expressões conjugadas às formas vigentes, desde as expressas por meio das marcas numéricas presentes nas imagens, como códigos de identificação, presente na obra Marcados, até aquelas exprimidas mediante manifestações sonoras, advindas da própria imagem e suas infinitas sensações.

Todavia, para expandir o meio fotográfico, em vista de algo que esteja além e aquém da imagem, se faz necessário considerar a expressão, a forma e a deformação em si próprias. Para Deleuze, o procedimento de saída do território decalcado em um plano imagético encontra-se nos processos de expressão que se faz mediado por uma espécie de impasse que se dá em função dos regimes que legitimam os modos de expressão “maiores” de uma imagem.120 Tais regimes condicionam a linguagem da

fotografia em função da coerência entre a “escrita” fotográfica e o plano fotografado. Na obra de Andujar podemos dizer que a fotografia dos índios, produzida na Amazônia, engendra uma espécie de impasse, uma vez que o modo de fotografar permanece mediado pelo olhar da artista branca que ali se inscreve, impossibilitando um modo de expressão propriamente indígena. Ainda assim, podemos dizer que a

119 Nos baseamos novamente nas descrições de Deleuze a respeito da obra de Kafka, contudo aqui, voltamos para as definições do devir. (DELEUZE; GUATTARI, K. p.35)

120 Deleuze e Guattari encontram em Kafka a manifestação de uma literatura menor, que mais do que definir modos de expressão abstratos e universais, procede por meio da relação entre as literaturas ditas menores, ou seja, aquelas construídas mediante a desterritorialização da língua construída por uma minoria e a língua dita maior, oficial, “legítima”, que é o alemão.

impossibilidade de se fotografar como um indígena implica a própria desterritorialização do artista branco, que se articula junto a uma língua ou estilo desterritorializados.

A impossibilidade de se fotografar de outra maneira, senão como uma artista branca autorizada a retratar os povos da comunidade Yanomami, produz sobre os índios um sentimento de distância em relação à territorialidade própria, primitiva ou original. Nesse sentido, existe uma impossibilidade de se fotografar de um modo geral, pois a fotografia sempre estará mediada pelo encontro do olhar do outro, sobre um espectro que não é o dele mesmo. O olhar da artista passa, neste sentido, a atuar como uma língua desterritorializada, conveniente a estranhos usos menores e portanto ela própria se torna uma fotografia menor.

Assim podemos definir como uma primeira característica desta suposta fotografia menor, a potência afectiva de um forte coeficiente de desterritorialização.121

De outro modo, queremos dizer que um artista é afectado pelo plano fotografado, da mesma maneira em que os elementos da imagem fotografada passam a ser afectados. Isto ocorre em função da disparidade entre aquele que vê e aquele que é visto, sendo que um e outro alternam suas posições, deslocando, em cada contexto, a territorialidade própria a cada um.

Junto desta potência de desterritorialização, encontra-se a questão política como a segunda característica desta nossa proposta de uma fotografia menor. O plano imagético passa a associar toda e qualquer questão individual à política social tornando cada imagem fotografada, um fecundo plano sobre a qual uma outra história passa a compor o ambiente revelado. O curioso, na obra de Andujar, é que a própria questão do território e a demarcação do mesmo, conduz a esta roupagem política que passa a vestir as imagens que, a princípio, seriam reveladas pelo seu aspecto meramente documental, no sentido de fixar os dados de uma comunidade.

No caso do ato fotográfico de Claudia Andujar, conforme nos diz Senra,

a documentação não está relacionada do mesmo modo com o ato de fotografar. Ela é uma exigência da ação (...) mas de uma ação que é, por sua vez, eticamente inseparável do ato fotográfico. Além disso, o encontro de

121 Fazemos aqui um paralelo com as três características de uma literatura menor, que são, segundo Deleuze e Guattari: “a desterritorialização da língua, a ligação do individual com o imediato político, o agenciamento coletivo de enunciação.” (DELEUZE; GUATTARI, K. p.38-41)

Claudia com os Yanomami não foi programado, nem se submeteu ao controle que caracteriza essas práticas mais recentes. (SENRA, 2009. P.142)

Quando Andujar faz figurar um certo conflito entre o indígena e o homem branco, trata-se de um programa político, ainda que as individualidades sejam retratadas uma a uma pelo seu aspecto aparentemente singular. O retrato da criança que brinca, do homem que sorri, da mulher que amamenta não visa a uma questão individual, mas ao contrário, trata-se da conexão destas imagens a outros retratos que podem ser econômicos, comerciais, burocráticos, jurídicos, que lhes determina os valores, as visibilidades e enunciações.

Daí decorre uma terceira característica desta proposta por uma fotografia menor, na qual tudo passa a exprimir um valor coletivo. De outro modo, quando fotografa um sujeito individual, Andujar faz ver um agenciamento coletivo de enunciação, no sentido em que o indivíduo ou a imagem designa um agenciamento maquínico que arrasta outras máquinas como as de guerra, as revolucionárias, as de amor, etc.122A máquina abstrata, ou o diagrama fotográfico reveza com outros tipos

de máquinas que se encontram por vir.

Isto significa que a “máquina fotográfica”, que é a fotografia em si e não o dispositivo técnico, se encontra determinada a preencher as condições de uma enunciação coletiva que se expressa por meio da fotografia. Todavia, o enunciado não aponta para o sujeito da enunciação, seja o indivíduo retratado na imagem, ou o artista que produz a fotografia. Ambos os agentes da enunciação se deslocam de um pretenso exercício individual para fundirem-se à multiplicidade coletiva.