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Da imagem-movimento às imagens do pós-guerra

2. DISPOSITIVO E IMAGEM: O DISPOSITIVO COMO RELAÇÃO E A

2.3. Imagem-movimento e Imagem-tempo

2.3.2. Da imagem-movimento às imagens do pós-guerra

A imagem-movimento liga-se fundamentalmente a uma representação indireta do tempo, conduzida por um esquema sensório-motor66. Mais precisamente, a partir

do momento em que a imagem-movimento faz alusão ao seu intervalo sensorial, ela passa a constituir uma imagem-ação. Tal imagem compreende o movimento recebido por meio da percepção atual, seguido da impressão que se dá no intervalo mediado pela afecção e o consequente movimento executado, ou seja, a ação propriamente dita ou a reação produzida por meio desse esquema.

Com efeito, podemos notar uma espécie de elo sensorial e motor, cujo encadeamento se atualiza ou se afigura conforme a unidade do movimento e do seu intervalo, que resulta na especificação da imagem-movimento ou da imagem-ação por excelência. Em termos de conjunto fechado, seria como pensar a criação de um dispositivo codificado em função das reações sensíveis e motoras empreendidas no espectador, que deverá reagir fisiologicamente diante de tal dispositivo. A realização deste movimento é tomada como resultado da obra de arte, ou mesmo como a obra em si67, decorrente de um esquema sensório-motor que se traduz como uma espécie

de narração produzida em função deste esboço de codificações.68

Mesmo a fotografia pode atuar como um dispositivo codificado, especialmente quando é inserida na ordem semiótica do índice, ou seja, quando é capturada como vestígio direto de um referente69. Nesta perspectiva, a imagem é descrita como “rastro

sub ou pré-simbólico”, como dado indicial permeado pela percepção que se empenha

66 O esquema sensório-motor foi apresentado conceitualmente nesta pesquisa na secção 2.2.1. 67 Podemos pensar artes interativas dos anos de 1960-70, nas instalações, vídeo instalações, etc. 68 Esta é uma noção recorrente nas artes e na crítica de arte. Desde a Idade Média a crítica já se empreendia na tentativa de elaborar um sistema de perspectivas baseada na conscientização de uma distância fixa entre o olho e o objeto, como forma de construção das imagens compreensíveis e coerentes das coisas. Nas artes contemporâneas veremos que tanto para a imagem, quanto para o espectador estas amarras do olhar serão rechaçadas, para dar lugar a outros mobilizadores do movimento, como a linguística, o conceito, a interação, entre outras. Neste trabalho tentaremos nos concentrar na fotografia.

69 Segundo Rosalind Krauss, em The Originality of the Avant-Guarde, op. cit., p.196-219., a arte pluralista da década de 1970, mais precisamente a fotografia, expandiu as marcas e descrições de uma história da arte oficial para com a semiótica produzir uma marca como uma pegada de significação, sempre conduzida a partir do referente. Para Krauss, a fotografia marca uma “presença muda de um acontecimento não codificado.” (p.212)

no recorte ou subtração daquilo que seria o signo convencional (o real). Para o crítico de arte Hal Foster, esta conexão do índice com a fotografia, especialmente na arte dos anos de 1970, resultou no ordenamento das mais variadas formas de arte sob o único princípio do registro, ancorado pela “pura presença física”. (FOSTER, 2014, p.89-90)

Desta prospecção limitada de uma lógica estrutural da arte indicial, decorre a produção arbitrária de significados, que nas artes colaborou para uma crise na representação, conduzindo as formações atuais do signo a uma completa fragmentação, tornando o aspecto indicial, uma mera reação aleatória da experiência. Diante de tal colapso semiótico das artes imagéticas, podemos analogamente relacioná-lo a uma crise do esquema sensório-motor, por meio de um tipo de arte que não mais se prolonga em ação ou reação segundo as exigências de uma imagem- movimento.

Para Deleuze, esta crise ou ruptura promove a “subida das situações a que já não se pode reagir, dos meios com os quais já não há senão relações aleatórias e dos espaços quaisquer vazios ou desconectados que substituem relações qualificadas.” (DELEUZE, IT. p.347) É como no caso do ready-made duchampiano, retomado pelo artista contemporâneo Daniel Buren70 como uma forma de questionar a ideologia

dadaísta da experiência imediata, promovida por Duchamp, para ao invés disso, ampliar a exploração desses antigos paradigmas, relacionando-os aos parâmetros da produção e recepção artística.

A ideia de Buren, segundo Foster, retoma o paradigma do ready-made a partir de um objeto que se pretende transgressor em sua própria realização. Como proposição o objeto passa a explorar a dimensão enunciativa da obra de arte por meio de um procedimento que “lida com o serialismo de objetos e imagens no capitalismo avançado, (...) em um distintivo da presença física, (...) em uma forma de mímica crítica dos diversos discursos, (...) e por fim, numa investigação das diferenças sexuais, étnicas e sociais de hoje (...)”. (FOSTER, 2014. p.42-43)

70 Daniel Buren (1938-) é um artista contemporâneo francês que colaborou com uma série de questões relativas à relação entre a arte e as instituições na contemporaneidade. Alguns críticos o destacam como um artista que tomou para si o projeto duchampiano de crítica aos processos institucionais que envolvem a produção artística, iniciada no período anterior às guerras e exaltada no pós guerra de 1960 adiante.

Esta arte vinculada ao pós-guerra rompe com as situações factuais da recepção, para lidar com questões da análise institucional, rechaçando as relações estritamente formalistas da arte do pré-guerra. Segundo Buren, a arte não só se empenha em contradizer as regras do antigo jogo artístico, como também se esforça em aboli-las por completo. No lugar do atuante, que interage sensorialmente com o objeto, mediante os efeitos que este é capaz de engendrar, temos o vidente que substitui o atuante por meio da descrição.

A descrição pode se apresentar de duas maneiras. A descrição orgânica visa a independência do objeto em função da preexistência de uma suposta realidade. Já a descrição cristalina não só é válida para o objeto como também o substitui, o cria e o apaga ao mesmo tempo, de forma incessante. Este último tipo de descrição não cessa em dar lugar a outras descrições que o contradizem, deslocam ou modificam as precedentes. (DELEUZE, IT. p.165)

Para Deleuze, o tipo de imagens que aparece depois da guerra relaciona-se à novidade artística engendrada no interior de cada manifestação de arte, tangenciada pelo próprio “questionamento da ação, necessidade de ver e de ouvir, proliferação dos espaços vazios, desconectados, desafetados”, que são razões extrínsecas ao tipo de arte produzida. (DELEUZE, IT. p.348) Do mesmo modo que Deleuze afirma que o cinema renascente do pós guerra recria suas condições com o novo realismo, podemos dizer que a arte contemporânea também recria sua vanguarda através de um exame dos enquadramentos ou formatos que guiam a neo-vanguarda para direções imprevisíveis.71