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Do dispositivo técnico ao dispositivo teórico

3. DISPOSITIVO IMAGEM: UMA NOVA FOTOGRAFIA

3.1. Fotografia e modernidade: um novo paradigma artístico

3.1.1. Do dispositivo técnico ao dispositivo teórico

Se no início do século passado falava-se da incorporação do artista criador ao meio social e da autenticidade da fotografia frente a uma estética ditadora, ainda hoje podemos trazer à tona tais procedimentos produtivos. Benjamin previa que a câmera fotográfica se tornaria cada vez menor e propunha que desta característica, o dispositivo técnico ou concreto tornaria mais apto a fixar imagens efêmeras e secretas, provocando efeitos de choque e paralisia, segundo o universo associativo e sensitivo do espectador. (BENJAMIN, 1986. p.107)

Todavia, segundo o filósofo contemporâneo Jacques Rancière (2012), existe uma espécie de “jogo das imagens”, na qual o dispositivo técnico e as propriedades estéticas82 se entrecruzam, de forma que o primeiro nos faz assistir uma performance

de memória e de presença de um espírito, ou seja, de algo que nos é estranho ou que nos distancia daquele objeto. Já as propriedades estéticas encontram-se no suporte da imagem, sendo este o papel fotográfico ou outra superfície qualquer. De outro modo, a fotografia em si, nos faz ver imagens que não remetem a nada para além delas mesmas, sendo a própria fotografia um tipo de linguagem performativa.83

Um enunciado ou expressão performativa, segundo Deleuze, “não é nada além das circunstâncias que o tornam o que é”. Isto significa que existe uma alteridade própria das imagens que as lança para um fora. Em outras palavras, a composição do plano imagético se faz junto a outros elementos que extrapolam os limites técnicos do sistema fotográfico, destacando as variáveis de expressão ou de enunciação que são

82 De acordo com Rancière o termo estética não se refere a uma teoria da arte em geral, ou uma teoria

da arte que remete a seus efeitos sobre a sensibilidade. Estética está relacionado a um “regime específico de identificação e pensamento das artes: um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia da efetividade do pensamento”. (RANCIÈRE, 2005. p.12)

83 Rancière trata, a princípio, (RANCIÈRE, 2012. p.10-11) das imagens televisivas e cinematográficas, ao apurar que tanto no dispositivo técnico (câmera de vídeo), quanto no dispositivo estético (o filme em si), existe uma performance própria que é intrínseca a cada modo de operação. Posteriormente o autor desenvolve suas hipóteses junto à fotografia.

para a própria linguagem fotográfica, razão suficiente para que a mesma não se feche sobre si. (DELEUZE; GUATTARI, MP, v.2. p..21)

Diferente do pensamento benjaminiano, Rancière afirma que as imagens produzidas não são resultado ou manifestação das propriedades de um determinado meio técnico. Elas são, na verdade, operações que atuam a partir das relações que se estabelecem entre um todo e as múltiplas partes que abrangem uma visibilidade e uma potência de significação e de afeto que lhes é associada, além das expectativas e daquilo que emerge para preenchê-las. (RANCIÈRE, 2012. p.11-12)

Segundo Rancière, esta operação se inicia junto ao plano imagético e se trata, sobretudo, de um regime de imagens, ou seja, de um regime de relações entre elementos e funções. Este procedimento se faz vinculando e desvinculando o visível e a sua significação, a palavra e o seu efeito, rompendo e produzindo, ao mesmo tempo, as expectativas que foram e serão engendradas. Podemos perceber que o regime de imagens desenvolvido por Rancière está relacionado ao embate áudio- visual, de maneira parcialmente análoga à dimensão do saber em um dispositivo, conforme propõe Deleuze.

De outro modo, as imagens produzidas pela arte são engendradas mediante operações entre o dizível e o visível que, de maneira consciente, fazem relacionar o antes e o depois, a causa e o efeito. Nesta direção, a fotografia artística passa a ser percebida como “a própria emanação dos corpos, como uma pele deslocada de sua superfície” ou seja, ela passa a se distanciar do propósito da semelhança para driblar as táticas do discurso que insistem em capturá-la. (RANCIÈRE, 2012. p.18),

Para Rancière, não resta dúvidas de que a celebração contemporânea reivindica para a imagem uma espécie de transcendência imanente, na qual uma essência gloriosa da imagem possa ser garantida segundo a sua produção material. Esta proposição, conforme critica o autor, surge como uma evocação nostálgica, trazendo à tona o desejo pela identidade, pela marca, pela primazia do visível em relação às figuras do discurso.

Um dos principais expoentes dessa potência imagética foi Roland Barthes, que em seu livro A câmera clara (1984) traçou uma espécie de manual acerca das relações semióticas e o modo de ser sensível da fotografia sobre os afetos. Ainda que o

semiólogo estivesse em busca de um distanciamento da fotografia como arte, este livro foi tomado por muitos artistas, como o compêndio do pensamento da arte fotográfica.

Em resumo, Barthes contrapõe o punctum, ou seja, aquilo que nos afeta de imediato quando diante de uma fotografia, ao studium que são as informações indiciais que tornam a imagem fotográfica um material a ser decifrado e explicado. Tanto a forma visível, quanto a enunciável apoiam sobre um mesmo princípio, que visa uma equivalência de sentidos, na qual a imagem atua como uma palavra que se cala. Deste modo, a fotografia se apresenta mediante sua presença sensível bruta, concomitante ao discurso que faz engendrar uma história.

Barthes conclui que a fotografia é como uma evidência, um medium falso no nível da representação e verdadeiro a nível do tempo. (BARTHES, 1984. p.169) Mesmo que esta, se apresente como uma versão decalcada e por demais fixa a respeito das imagens, ela nos ajuda a compreender o fenômeno da arte fotográfica como um dispositivo, que passou do meio essencialmente técnico ao meio teórico, começando pela crítica de André Bazin, até chegar na semiologia barthesiana dos anos de 1960, passando também por Rosalind Krauss e Philippe Dubois.