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CAPÍTULO 3 – ACTUAÇÃO POLICIAL

3.4. Actuação Policial perante o Fenómeno Criminal

3.4.3. A Discricionariedade na Intervenção Policial

Na rotina diária da actividade policial, mesmo estando perante situações de flagrante delito de crimes públicos ou ilícitos nos quais o titular do direito de queixa tenha requerido procedimento criminal, a actuação policial não é automática no sentido da responsabilização legal do suspeito. Neste sentido e segundo António Francisco de Sousa, no domínio da actuação policial, a problemática central reside no “grau de vinculação da autoridade policial à lei e ao Direito, até que ponto gozará a autoridade policial de uma certa liberdade, mais ou menos ampla, de actuação” (SOUSA, 2001:258). Esta maior ou menor amplitude de liberdade de actuação, denomina-se discricionariedade policial175, que pode à partida não ser susceptível de conseguir consensos e até gerar resistências, do ponto de vista de que as medidas de Polícia e as atribuições e competências legais serem as constantes na lei (LEITÃO, 2000). No entanto, ignorar esta realidade seria reprovável do ponto de vista académico, visto que a discricionariedade representa o principal condicionante da acção policial, reconhecida que é a sua influência negativa nos mecanismos que garantem a aplicabilidade e eficácia da lei (CARTER & RADELET, 1999; DELATTRE, 1998).

Conforme doutrina defendida por Figueiredo Dias e Costa Andrade, a Polícia “constitui o símbolo mais visível do sistema formal controlo, o mais presente no quotidiano dos cidadãos, por via de regra, o “first-line enforcer” da lei criminal (...), sendo a Polícia não só a instância que processa o caudal mais volumoso de “deviance”, mas também a que o faz em condições de maior “discricionariedade”, isto porque as forças de segurança nem sempre conseguem aplicar a lei em todas as situações e em relação a todos os infractores - designada na terminologia anglo-saxónica por “full enforcement”176(DIAS & ANDRADE, 1992:443). Por outro lado, a letra da lei tem que necessariamente ser interpretada e aplicada a cada caso concreto, interpretação esta realizada, num curto espaço de tempo e em contextos diferenciados, que acarreta que no processo de decisão a discricionariedade seja encarada como inevitável e por vezes como necessário (CARVALHO, 2005).

175 De acordo com F. Dias e C. Andrade (1992:446), discricionariedade policial poderá ser definida como se tratando “daquele espaço de liberdade que goza a acção concreta da polícia e que ultrapassa largamente as margens dentro das quais a lei permite a intervenção de considerações de oportunidade da Polícia”. Germano Marques da Silva evoca que o termo “discricionariedade” não poderá ser entendido como sinónimo de “arbítrio”, visto considerar ser “um poder jurídico em ordem à realização de fins legalmente fixados. Não obstante necessários, esse poder de actuação não deixa de ter os seus perigos, que necessariamente também importa prevenir” (SILVA, 2005).

176 Esta política de “full enforcement” implica que sempre que seja detectada ou conhecido qualquer situação do foro criminal ou contra-ordenacional, esta terá que ser investigada e esclarecida de acordo com a lei. No entanto torna-se claro e evidente que este tipo de actuação é indesejável e quase impossível de se concretizar, pois para a aplicação de tal política as forças de segurança teriam que ter meios e capacidades que iria exceder o humanamente e tecnicamente viável (INCIARDI, 2002).

A Polícia utiliza a letra da lei, entre muitos outros tipos de recursos ao seu dispor para restaurar a ordem e impor uma justiça simbólica (COLEMAN & NORRIS, 2000), mas tal tarefa pressupõe uma interpretação extensiva da lei, interpretação esta que pode-se tornar extremamente complexa pois a letra da lei não específica todas as hipotéticas situações com as quais a Polícia se confronta diariamente (INCIARDI, 2002). Marques Ferreira refere que as medidas de Polícia presentes na legislação portuguesa não conseguiram a “precisão e a concisão exigíveis”, sendo que uma melhor enquadramento procedimental da actuação policial teria como resultado que a discricionariedade se apresentasse “reduzida a limites mínimos necessários e garantindo-se um efectivo controlo posterior”. Desta forma, as forças de segurança têm que se socorrer de “princípios fundamentais, susceptíveis de contribuírem para a integração de lacunas e interpretação de normas reguladoras das medidas de Polícia, insuficientemente determinadas no actuar direito positivo”. Germano Marques da Silva especifica que a prevenção deste fenómeno passa pela “sólida formação moral e preparação técnica, jurídica e cultural do pessoal da Polícia e adequado reconhecimento da importância da alta missão que à Polícia é confiada e do sacrifício que aos seus elementos é exigido” (SILVA, 2005:22).

Figueiredo Dias e Costa Andrade ensinam-nos que a actuação policial poderá desta forma ser condicionada por inúmeros aspectos, dentro dos quais se destacam: a gravidade da infracção; atitude do suspeito e seu poder social; interiorização e adesão às normas legais; as relações entre a Polícia e os Tribunais; atitude do denunciante, entre outros (DIAS & ANDRADE, 1992; CARTER & RADELET, 1999; SHELEY, 1979).

Relativamente à gravidade da infracção cometida, estudos empíricos demonstram claramente que a discricionariedade policial tende a aumentar com a diminuição da gravidade da infracção e à medida que se desce na hierarquia das forças de segurança, tendo como consequência directa que determinados tipos de criminalidade, especialmente crimes semi-públicos e particulares, apareçam desvalorizados nas estatísticas oficiais (DIAS & ANDRADE, 1992; ERICSON, 1982). Esta actuação discricionária está directamente ligada ao facto de as forças de segurança optarem por vezes resolver as solicitações de que são alvo de uma forma informal, isto é, “desculpabilizam” pequenos delitos e pequenas ofensas tentando por cobro a situação com o entendimento das partes, com especial incidência em ilícitos dependentes de procedimento criminal (DIAS & ANDRADE, 1992).

Por outro lado, a atitude do suspeito revela-se como fundamental, já que as forças de segurança tendem a mostrar-se mais complacentes e permissivos, quando os suspeitos demonstrem respeito, compreensão, humildade perante as forças policiais, ou que sejam oriundos de grupos

de estes serem alvo de uma actuação policial repressiva (DIAS & ANDRADE, 1992). Por exemplo, num estudo realizado por Box, este realçou que entre aqueles que cometem ofensas com maior gravidade, as mulheres mais velhas, especialmente se fossem brancas, eram tratadas com menos agressividade do que se fossem indivíduos do sexo masculino (TIERNEY, 1996). Reiner (2000:10) refere que é plausível que as forças de segurança, tal como a sociedade, tendam a olhar a mulher de uma forma tradicional, desempenhando o papel de mãe ou de prostituta e por isso “o baixo nível de processamento formal da mulher enquanto suspeita mascara uma complexa teia de discriminação. Assim, algumas mulheres escapam do controlo da justiça porque são colocadas fora do grupo do padrão referenciado com o estereótipo de possíveis criminosos”. Pelo contrário, mulheres que tenham comportamentos considerados desviantes, como é o caso da prostituição, são encaradas pelas forças policiais como prevaricadoras, estando desta forma mais susceptíveis de entrar em contacto com o sistema judicial. Recorde-se que ao contrário do sistema norte-americano, a prostituição não é considerada uma actividade ilícita pela doutrina penal portuguesa, sendo uma actividade livre e não penalizada, excepto no crime de lenocínio177.

A interiorização e adesão às normas legais dos elementos policiais são igualmente aspectos relevantes, estando directamente relacionado com a sua cultura organizacional, já que certo tipo de acto considerado como crime pela doutrina penal, poderá não estar interiorizado pela sociedade e pelas forças de segurança como sendo um ilícito merecedor dessa tipificação. Um dos possíveis exemplos consubstancia-se na cultura de tolerância para a violência conjugal, que continua a acarretar que o “peso do costume e da tradição” perante um ilícito criminal tão gravoso permaneça do ponto de vista de muitos, como legítimo. Esta aceitação, apesar de cada vez menor, tem como consequência uma situação facilitadora e perpetuadora dos comportamentos maltratantes (MATOS, 2001:104).

A actuação policial tende a dirigir-se ao encontro das expectativas dos cidadãos, da natureza das solicitações, do tipo de pressões que sofrem, pelo que grande parte das suas acções são condicionadas por estereótipos e tendem a ir ao encontro das expectativas dos grupos dominantes. Não se poderá cometer o erro de olhar as forças de segurança individualmente, pois a cultural policial desempenha um papel extremamente relevante na forma de actuação perante uma diversificada panóplia de situações do foro criminal. A actividade policial desenvolve-se em múltiplos contextos, não só fazendo face às exigências da sociedade, mas também as pressões internas da sua instituição que tendem a reflectir as pressões vindas do exterior. Este corporativismo

177 De acordo com o art.º 170.º CP “1 - Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”.

policial está associado a “processos de identificação e de formação de uma consciência colectiva”. No entanto, esta cultura reflecte-se de forma diferenciada de acordo com a hierarquia institucional, desde a cultura do “polícia de rua”, até ao mais alto grau da classe dirigente policial (DUARTE, 2006). Para explicar a maior presença de membros dos estratos mais desfavorecidos nas estatísticas oficiais da criminalidade, surge o estereótipo como mecanismo de selecção da criminalidade detectada (DIAS & ANDRADE, 1992). A estratégia de actuação policial rege-se principalmente por estereótipos, por imagens estereotipadas do criminoso, sendo estas que em grande parte determinam as prioridades de actuação policial, em que locais se devem concentrar e a que tipo de pessoas se devem dirigir.

A Criminologia tem vindo a reconhecer a inevitabilidade da discricionariedade, já que o trabalho policial está só parcialmente preocupado com a aplicação da lei a todos os ilícitos criminais e mesmo quando presenciem claras infracções à letra da lei, não existem totais garantias que exista qualquer procedimento criminal por parte das forças policiais. Acresce os ordenamentos penais de cada país, sendo que em Portugal a maior parte dos delitos detectados, especialmente contra a integridade física e patrimonial, dependerem do exercício do direito de queixa por parte do lesado/ofendido para a existência de procedimento criminal. Esta condicionante terá como principal consequência que as estatísticas oficiais da criminalidade não representem a natureza, distribuição e extensão da criminalidade conhecida pelas forças policiais.

Face aos factos enunciados, muito embora se possa considerar a discricionariedade como um procedimento irregular e discriminatório que deve a todo o custo ser eliminado, esta realidade deve ser encarada com pragmatismo. Neste sentido, a tentativa de ignorar que a discricionariedade ocorre na grande maioria dos procedimentos policiais, aliado à atitude de aplicação de normas inflexíveis que restrinjam este fenómeno, deveria ser substituída por uma melhor formação dos elementos das forças de segurança, que iria contribuir em ultima instância para decisões ponderadas e no estrito cumprimento da lei (CARVALHO, 2005).

Todavia, a actuação policial mesmo que discricionária, não consegue ser fundamento para explicar a enorme disparidade verificada nas estatísticas oficiais da criminalidade, relativamente ao envolvimento da mulher e do homem no fenómeno criminal. Dentro desta linha de pensamento, há quem partilhe da opinião que o sexo masculino de acordo com as estatísticas criminais, comete mais ilícitos simplesmente porque o tipo de crimes perpetrados são mais susceptíveis de serem mais vezes detectados ou denunciados do que os crimes praticados por indivíduos do sexo feminino, especialmente devido à localização das ocorrências criminais (SHELEY, 1979).