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Constrangimentos das Estatísticas Oficiais relativos à Criminalidade Feminina

CAPÍTULO 2 – FONTES DE MEDIÇÃO DA CRIMINALIDADE

2.1. Estatísticas da Criminalidade como Instrumento de Medição da Criminalidade

2.1.4. Constrangimentos das Estatísticas Oficiais relativos à Criminalidade Feminina

M.ª Rosa Crucho de Almeida defende que não se podem retirar conclusões fiáveis das estatísticas criminais quanto à real participação feminina e masculina no fenómeno criminal, tendo em conta “os inúmeros filtros que ocorrem entre o cometimento dos crimes e a sua chegada a

tribunal” (ALMEIDA cit in SANTOS ET AL, 1996:367). Existe todo um conjunto de fases processuais (denúncia do crime, formalização da queixa, registo do crime, inquérito, acusação, julgamento, acusação, entre outros) que progressivamente filtram o volume de criminalidade, diminuindo drasticamente o número de indivíduos envolvidos, não se podendo retirar ilações sem antever a influência de cada uma destas fases processuais, nas estatísticas criminais. O principal problema na análise das estatísticas oficiais reside no simples facto de quanto maior for o caminho a percorrer desde a prática de um crime até ao seu julgamento, maior será o número de meios de filtragem dos crimes verificados, tendo como consequência que os crimes detectados acabam por não ser representativos dos crimes ocorridos96 (BOWKER, 1978; SUTHERLAND, CRESSEY & LUCKENBILL, 1992). Segundo Eduardo Ferreira (1998), mesmo quando as autoridades têm conhecimento de um crime ocorrido, “nem sempre estes são investigados ou esclarecidos ou, sendo investigados, nem sempre seguem para acusação e para julgamento.”

Os dados estatísticos oficiais da criminalidade recenseada em Portugal, segundo Seabra e Santos (2005:62) “oferecem poucas potencialidades de estudo quando comparados com os existentes em alguns países da União Europeia (...) sendo desta forma impossível produzir um estudo científico sobre a criminalidade que tenha por objectivo seguir o processo de um crime desde a sua participação até ao seu fim”. Relativamente aos métodos de avaliação da criminalidade existem três situações distintas a nível na União Europeia, segundo Cândido Agra (2007:3): em primeiro lugar, os sistemas que se baseiam nos dados estatísticos oriundos das autoridades policiais; em segundo, os sistemas que privilegiam os inquéritos, tanto de vitimação como da delinquência auto-revelada; em terceiro, os sistemas que recorrem aos dois métodos anteriormente mencionadas, procurando “articular a sistematização dos dados institucionais (estatísticas da Polícia) e os métodos de inquérito”97.

De acordo com Teresa Beleza (1990), uma das características que se salientam na distribuição individual da criminalidade consiste no género maioritariamente masculino dos seus autores. Mesmo a lei penal, não fazendo quase distinções em termos de género ao tipificar cada tipo de crime, a percentagem de mulheres que estão sob alçada da justiça continua a ser largamente inferior à percentagem de homens. De acordo com o que é defendido por M. Rosa C. Almeida, “não podemos daqui retirar conclusões seguras sobre a quota-parte que coube às mulheres e aos homens na criminalidade real, considerando os inúmeros filtros que ocorrem entre o cometimento dos crimes e a sua chegada aos tribunais” (SANTOS ET AL, 1996:361). De acordo com Heidensohn, as

96Este facto é conhecido pela Lei de Sellin, segundo a qual “o valor das taxas de criminalidade para o efeito de índices é inversamente proporcional à distância, em termos de processo, a que se encontra do crime em si” (DIAS & ANDRADE, 1992:133).

mulheres aparecem nas estatísticas criminais como suspeitas em todo o tipo de formas de criminalidade, desde as mais gravosas até às mais simples. No entanto, se for analisado o tipo de crimes, facilmente se verifica que alguns tipos de crimes são basicamente dominados por suspeitos do sexo masculino, enquanto é evidente para este autor, o facto de as mulheres cometerem crimes menos gravosos em comparação com o sexo masculino (WALKLATE, 2001). Segundo Nelson Lourenço e Manuel Lisboa (1998), a maioria dos autores aceita o facto de quanto maior for a gravidade de um crime praticado, maior será a probabilidade deste ser participado, registado e julgado pelas instâncias competentes, tendo como consequência directa que crimes de menor gravidade estarão subvalorizados nas estatísticas oficiais. De acordo com Skogan, o crime oculto é essencialmente constituído por crimes menos gravosos, sendo muito mais comuns do que sugerido pelas estatísticas criminais, já que há uma maior probabilidade das ofensas mais graves chegaram ao conhecimento público e dessa forma serem participadas (SHELEY, 1979).

Nesta medida, segundo Cusson (2002:218) a acção reguladora da sociedade aparece como um factor fundamental para compreendermos o fenómeno criminal, visto que a “intensidade do controlo social varia segundo o lugar, o momento, as características da vítima e a gravidade das infracções.”. Desta forma e segundo o mesmo autor “pode deduzir-se (...) que a criminalidade seria baixa quando os diferentes tipos de controlo social funcionassem em pleno e elevada quando os mesmos funcionassem de modo deficiente ou nulo.”. Neste sentido a distribuição e as características de uma criminalidade num dado momento e lugar não será apenas resultado de factores socioeconómicos mas também resultado das fragilidades dos controlos sociais.

Costa Andrade, no mesmo ponto de vista, esclarece que terá que se atender que o grau de visibilidade e de denúncia de um crime depende igualmente dos locais onde este é praticado, sendo que certos tipos de infracções praticados em locais de domínio privado e restritos ao público têm menos probabilidades de chegar ao conhecimento das autoridades policiais, do que crimes praticados em lugares mais expostos ou espaços de domínio público como a via pública, no qual o controlo social é mais apertado (ALMEIDA, 1988). Nesta medida, existem crimes que gozam de uma grande “visibilidade pública”98, sendo estes que são mais vezes participados e detectados pelas forças policiais, tendo consequentemente um maior peso nas estatísticas criminais. O facto das estatísticas oficiais representarem os crimes que são socialmente mais visíveis, pode ser consequência da maior ou menor capacidade das autoridades em intervirem em diferentes áreas da criminalidade (FERREIRA, 1998), originando que a maioria dos crimes seja detectada unicamente devido à participação dos lesados/ofendidos ou de terceiros (ALMEIDA, 1988)

A consequência da vida da mulher decorrer normalmente em locais de domínio privado restrito ao público ou de difícil acesso às autoridades policiais (como é o caso do domicílio), acarreta que a visibilidade dos crimes ocorridos seja muito baixa tanto no papel de vítima como igualmente na qualidade de agente de um crime (LOURENÇO & LISBOA, 1998). Acrescenta ainda Mª. Rosa Crucho de Almeida que a comprovação para o facto de a mulher incorrer num “menor risco de se tornar quer agentes, quer vítimas de crimes parte da constatação de que as suas vidas tendem mais vezes a decorrer em espaços privados e em posições de maior subordinação” (SANTOS, 1996:362). Segundo Elza Pais (1998:181), cerca de 53% dos homicídios cometidos pelas mulheres são perpetrados no seio da conjugalidade, no domicílio, encontrando-se apenas nestas circunstâncias 13% dos homicídios cometidos por homens. A mulher enquanto perpetradora de actos ilícitos tem maior probabilidade de atentar contra a integridade física ou a vida de terceiros que lhe são próximos, do que propriamente o homem e de acordo com “The Uniform Crime Reports” (UCR) do F.B.I, nos Estados Unidos da América aproximadamente 70% de todos os ilícitos de ofensa à integridade física perpetrado por indivíduos do sexo feminino, ocorrem no domicílio/equiparados, instituições escolares ou locais de trabalho (DAY, 1998). Dados estatísticos recolhidos pelo Departamento de Justiça Norte-Americano, entre os anos de 1976 e 1997, demonstram que dos 60 mil crimes de homicídio cometidos por mulheres nos EUA, 60% desses crimes foram cometidos contra membros da família, enquanto somente 20% dos homicídios cometidos por homens teriam estas mesmas características99. Igualmente num estudo realizado por Stéphane Bourgoin sobre “serial killers”, conclui-se que 29% dos crimes cometidos por “serial killers” do sexo feminino ocorreram no seu domicílio ou local de trabalho, em relação a 8% dos crimes cometidos nas mesmas circunstâncias por indivíduos do sexo masculino (BOURGOIN, 1993:17).

Pepinsky e Jesilow (ALMEIDA, 1988) partilham da perspectiva que as estatísticas criminais são mais um indicador do tipo de crimes que mais frequentemente são participados e que afectam o sentimento se segurança, do que propriamente indicadores da real dimensão do fenómeno criminal feminina. Philippe Robert (ALMEIDA, 1998) é da opinião que não existe uma relação constante entre o real fenómeno criminal e a criminalidade que foi participada e registada, sendo desta forma incorrecto traçar um perfil da criminalidade com base nas estatísticas criminais conhecidas. Desta forma, todo o ilícito criminal que tenha lugar e que não chegue ao conhecimento das autoridades policiais e não seja contabilizado, irá ser designado como “cifras negras”100 e que se referem

99 Dados disponibilizados em http://www.ojp.usdoj.gov/bjs/pub/ascii/wo.txt, Departamento de Justiça Norte- Americano, acedido em 15 de Dezembro de 2006.

primeiramente àqueles crimes que embora tenham lugar, não aparecem registados nas estatísticas criminais. Isto é, as instâncias formais de controlo (Polícia, Ministério Público e Tribunais) ou não chegam a ter conhecimento da sua existência ou por algum dos motivos anteriormente apontados, não são registados (TIERNEY, 1996).

Não é fácil fazer uma estimativa da criminalidade oculta, sendo difícil delimitar exactamente a proporção dos delitos não denunciados, mas segundo o International Crime Survey de 1992, ronda os 61% na Finlândia, 54% na Austrália, 48% nos Estados Unidos da América, 41% na Inglaterra e Suécia e 32% na Bélgica. Em Portugal, de acordo com Inquérito de Vitimação de 1992 e 1994 do GEPMJ, 75% e 72 %, respectivamente, dos crimes não foram denunciados às autoridades (ESTEVES, 1999; GEPMJ, 1993; GEPMJ, 1995). Relativamente a Portugal, estes valores extremamente altos, segundo Boaventura Sousa Santos devem-se essencialmente ao facto de na sociedade portuguesa existir uma enorme resignação e passividade quanto ao fenómeno criminal, estando este facto traduzido pela baixa taxa de denúncias realizadas às autoridades em Portugal (GEPMJ, 1995:92). Nessa perspectiva, M.ª Rosa Crucho de Almeida refere um inquérito realizado pelo European Value Systems Group, em que se conclui que os portugueses eram os cidadãos europeus que confiavam menos nas instâncias formais de controlo, entre as quais se destacam as forças de segurança (ALMEIDA, 1998).

De acordo com o Relatório de Segurança Interna de 2006, foi efectuado um estudo realizado em 18 Estados-membros da União Europeia (em que se incluem os 15 antigos Estados-membros da União Europeia, e ainda a Polónia, Hungria e Estónia) por um consórcio europeu liderado pela Gallup, tendo como base inquéritos de vitimação, sentimento de insegurança e confiança nas Forças de Segurança, realizado em 2005 com base em entrevistas telefónicas101. Este estudo verificou que o grau de satisfação dos cidadãos relativamente à Polícia duplicou em Portugal, entre os anos de 2000 e 2005, passando de 31% de indivíduos satisfeitos, para o valor de 58% de pessoas satisfeitas com a resposta policial na sequência da sua participação criminal (GCSMAI, 2007:79). No entanto, salienta-se que países como a Inglaterra, Irlanda, Holanda, Espanha, Alemanha, Finlândia e Dinamarca, embora apresentem maiores taxas de vitimação do que Portugal apresentam igualmente um grau de satisfação superior do cidadão (entre 60 e 80%). Ainda relativamente ao desempenho policial em Portugal, no ano de 2000, 45% dos inquiridos são da opinião que as forças de segurança

expressando a diferença quantitativa entre a criminalidade real e a criminalidade conhecida pelas instâncias formais de controlo, isto é, aquela parte da criminalidade que é ignorada nas estatísticas oficiais (SANTOS, 1998; SÉVES, 1949). 101As entrevistas foram realizadas, na sua grande maioria, no 1º semestre de 2005, utilizando a metodologia telefónica CATI, tendo como base o contacto telefónico aleatório, dirigido a residentes maiores de 16 anos, com uma amostra média de 2000 entrevistados por país (GCSMAI, 2007:76).

estão a desempenhar cabalmente as suas funções, na sua área de residencial, tendo em 2005 esta percentagem subido para 67% do total dos inquiridos102.

Há ainda que considerar o grau de fiabilidade e de validade das estatísticas oficiais da Justiça Portuguesa, visto que apesar dos grandes avanços alcançados na década de 90, as estatísticas oficiais da criminalidade “estão longe de medir com rigor a dimensão, as tendências e o significado da criminalidade e da segurança” (AGRA, 2007:4). Esta “aparente” incapacidade das estatísticas criminais, proporcionou o desenvolvimento de um conjunto de instrumentos de análise na tentativa de colmatar as lacunas existentes nos dados estatísticos, fazendo uso de inquéritos de vitimação, inquéritos da criminalidade auto-revelada, análise da imprensa, entre outros (LOURENÇO e LISBOA, 1998). Certo será, que directamente ou indirectamente a criminalidade poderá ser medida em três perspectivas: vítima, suspeito e naquela que designamos como oficial. Esta última ficará mais completa, se for criado um sistema que integre a informação criminal de todas as fontes disponíveis, desde a notícia do crime à execução da decisão judicial (GONÇALVES, 1999).

Abordemos então os inquéritos de vitimação, para em seguida referirmos os inquéritos de delinquência auto-revelada, duas formas de colmatar algumas das lacunas apresentadas pelas estatísticas oficiais da criminalidade.