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Uma rede de conhecimentos e técnicas

LISTA DE GRÁFICOS

3) ensaio clínico: é o desenho de estudo voltado para o teste de intervenções terapêuticas e preventivas, que serão testadas em ao menos dois grupos

3.4 Ciência e tecnologia

3.4.1 Uma rede de conhecimentos e técnicas

Em uma das primeiras publicações científicas resultantes do estudo de Framingham explicita-se o "estado da arte" sobre os conhecimentos existentes sobre as doenças cardiovasculares nas primeiras décadas do período pós-Guerra. De acordo com os pesquisadores, apesar delas serem consideradas duas das principais formas de mortalidade relacionada com as doenças do coração, "quase nada se sabe sobre a epidemiologia das doenças cardiovasculares hipertensivas ou arterioescleróticas", (Dawber et al, 1951: 280). Ainda segundo os pesquisadores, testes diagnósticos "específicos e inequívocos" (Dawber et al, idem) eram ainda raros em comparação com as técnicas existentes para a detecção de doenças infecto-contagiosas. Essas são afirmações verdadeiras: o conhecimento sobre as doenças do coração era ainda incompleto durante os primeiros anos do estudo de Framingham. Todavia, incompletude não significa inexistência: noções científicas e conhecimentos certificados já formavam, sim, um conjunto previamente existente de elementos que procuravam compreender e descrever, principalmente em um nível fisiológico e anatômico, algumas das causas das doenças cardiovasculares. Em outras palavras: ainda que deficiente, havia uma base teórica e prática a partir do qual os pesquisadores do FHS iniciaram suas pesquisas, que permitia ao menos distinguir indivíduos sãos e doentes.

As variáveis observadas durante os exames dos pacientes e condução do estudo permitem deduzir algumas das ideias que guiavam as pesquisas em Framingham. Por exemplo, os eventuais casos de doença identificados em participantes do estudo eram classificados de acordo com critérios da New York Heart Association e incluíam infarto do miocárdio, oclusão (ou obstrução)

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coronariana, angina e fibroateroma (Dawber et al, 1957). A existência de um sistema classificatório prévio, nesse caso, indica uma base conceitual e uma infraestrutura informacional prévias. Como apontam Bowker e Star (1999: 319), “classificações são tecnologias poderosas”, que usualmente refletem escolhas sociais e técnicas, assim como compromissos políticos.63 No caso em questão, além do sistema classificatório denotar um corpo de conhecimento articulado sobre as doenças do coração, indica também um compromisso profissional e cognitivo, relacionado à legitimidade de certos discursos e atores sociais.

Em um sentido semelhante, para cada condição reportada, havia uma hipótese subjacente, que posteriormente era empregada para substanciar a ligação causal entre a doença e as variáveis de interesse do estudo. Dito de outra forma (e ainda que essa noção seja um tanto óbvia) as variáveis coletadas no estudo não eram escolhidas ao acaso, mas sim por sua importância para o conhecimento existente sobre as doenças em questão. As práticas dos exames clínicos e laboratoriais, e a análise dos dados da população de Framingham seguiam, em grande medida, práticas e compromissos cognitivos estabelecidos em outras esferas sociais. Explicitar esse fato e analisar suas consequências é um movimento importante para compreender as origens do FHS.

63 Em linhas gerais, a atividade de classificação pode ser concebida como “simultaneamente organizacional e informacional, mas sobretudo, como infraestrutural. Desde a atividade científica, passando por práticas profissionais cotidianas e eventualmente afetando as trajetórias pessoais dos indivíduos, os esquemas de classificação surgem em formatos e alcance diversos, mas sempre representando uma parte naturalizada e hermética da racionalidade moderna.” (Spiess, 2010: 74). Dessa maneira, além de servirem para dar ordem ao mundo, se colocam como mecanismos geradores de intersubjetividade: um sistema classificatório permite comparar entidades, acontecimentos e dados em diferentes contextos sociais. Ou seja, o uso de um sistema classificatório permite que atores sociais distintos se refiram de maneira uniforme sobre certos fenômenos.

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Figura 16: Resultados laboratoriais Fonte: FHS Archives

Haviam diversas hipóteses sobre as doenças do coração à disposição dos pesquisadores do FHS. Sua tarefa era operacionalizá-las. Assim, de acordo com

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Daniel Levy e Susan Brink (2005: 61), os pesquisadores do estudo utilizavam os cidadãos de Framingham, seus problemas cardíacos e as variáveis coletadas "para começar a traçar as pistas de trás para frente". Os resultados dos exames clínicos e laboratoriais dos indivíduos doentes eram analisados comparativamente, tendo como base variáveis sistematizadas e em busca de padrões que ajudassem a identificar as causas das doenças e, eventualmente, para fazer previsões sobre esses processos de morbidade. Por exemplo, os exames iniciais dos participantes incluíam medições como:

capacidade física, altura e peso; um eletrocardiograma; um raio-X padrão do peito; medidas de hemoglobina, glucose, ácido úrico, colesterol e fosfolipídios; e um teste serológico para sífilis. (...) Outros procedimentos, como um fotofluorograma de 70mm, eletroquimografia, balistocardigrafia, e análise ultracentrifugal de lipoproteínas séricas foram conduzidos em um ou outro dos exames sucessivos (Dawber et al, 1957: 5).

Além disso, durante o exame clínico, outras variáveis como a pressão sanguínea no momento do exame, obesidade, hábitos de consumo de tabaco e bebida, e estado geral do paciente eram também verificados e codificados. Tratava-se de um processo de medição e compilação de dados, que então eram interpretados como atributos individuais mas comparados de forma agregada e de acordo com hipóteses prévias, para construir discursos generalizantes. Desde a elaboração do estudo, inúmeras variáveis eram determinadas e incluídas nos procedimentos de coleta e análise de dados tendo em vista sua associação conceitual prévia aos processos de adoecimento. Em outras palavras, não se tratavam de elaborações autônomas dos pesquisadores de Framingham, ou de descobertas "ao acaso", mas de discursos ou recursos conceituais e técnicos que eram por eles apropriados. Para cada uma dessas variáveis sistematicamente analisadas e para cada procedimento incluído nos exames clínicos havia um objetivo. Nenhuma variável era escolhida ao acaso, mas sim de acordo com sua associação prévia, na literatura e conhecimento médico, com os mecanismos e processos de doença (tais quais percebidos na época). Nesse sentido, nos seus

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primeiros anos, o estudo de Framingham estava longe de representar uma ruptura, ou mudança de paradigma em relação aos conhecimentos sobre processos de causalidade das doenças. De fato, os pesquisadores partiram de conhecimentos mais ou menos consolidados, agrupando-os de forma coerente e constituindo assim uma "rede" de práticas e ideias que constituíram as formas de produção de dados e conclusões do estudo. As variáveis observadas e as correlações construídas dependiam, diretamente, de conhecimentos já existentes. Essa percepção pode ser confirmada nas análises elaboradas a respeito da relação entre adoecimento e, digamos, a pressão arterial, peso, consumo de tabaco ou níveis de colesterol no sangue.64 Com frequência, portanto, a produção dos pesquisadores remeteu a descobertas, referências, estatísticas e técnicas provenientes de um contexto mais amplo, que servia de ponto de partida para o desenho do estudo de Framingham.

De particular interesse é o caso da investigação sobre o papel do colesterol. Conforme exposto anteriormente (capítulo 1), a correlação entre o colesterol, as placas cardiocoronarianas e, por fim, as doenças cardiovasculares remonta ao século XIX. O reconhecimento dessa relação está no cerne da emergência de uma nova categoria diagnóstica, a aterosclerose -- uma classificação mais específica do que a arterioesclerose, pois se refere especialmente à obstrução por ateromas ou placas relacionadas ao colesterol. Ainda que a comprovação da hipótese se desse baseada quase que exclusivamente por meio de autópsias (Enos et al, 1953) ou de testes com animais, como no caso do experimento russo com coelhos e experiências similares conduzidas nos EUA (Olszweski, 2008; Levy e Brink, 2005), a ideia já era reconhecida e aceita, em alguma medida, entre médicos e pesquisadores americanos, entre eles os pesquisadores do FHS.

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Em um artigo de 1959, os pesquisadores do FHS resumem os procedimentos analíticos da seguinte forma: após os exames, "os dados estariam então disponíveis para testar um conjunto de

hipóteses específicas a respeito das condições de predisposição do desenvolvimento de doenças

cardiovasculares ateroescleróticas e hipertensivas" (Gordon et al., 1959: 188, grifo nosso). Essas hipóteses foram determinadas nos estágios iniciais da pesquisa e refletiam os pontos de interesse do NHI e, portanto, da comunidade científica e profissional associada a essa instituição.

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Por aparentemente ser uma ideia estabilizada, o papel do colesterol como indicador ou fator de risco, ou como elemento na causalidade das doenças cardiovasculares não era costumeiramente problematizado nos artigos publicados pelos pesquisadores do FHS. Assim, por exemplo, no artigo de 1957, supramencionado, o papel do colesterol na causalidade das doenças do coração é aceito sem grandes ressalvas: "vários estudos têm mostrado a associação entre a elevação do colesterol sérico e a crescente incidência das doenças arterioescleróticas" (Dawber et al., 1957). Em outra publicação, de 1966, os pesquisadores do FHS afirmam que "é um fato conhecido que a distribuição dos valores de colesterol entre as vítimas de doenças coronarianas é maior" do que o verificado em pessoas normais (Thomas et al, 1966). Em ambos exemplos, curiosamente, poucas referências são apresentadas para corroborar as afirmações sobre o colesterol, o que pode indicar seu caráter não-controverso, corriqueiro. De fato, em ambos os casos, os autores mencionam apenas um estudo sobre o tema -- o Cooperative Lipoprotein Study -- organizado pelo NHI e iniciado em 1952.65

Os antecedentes técnicos e conceituais empregados no FHS a respeito do colesterol talvez possam ser melhor descritos quando analisamos a questão da dieta e sua introdução no desenho e rotinas do estudo, durante as duas primeiras décadas de sua existência. No artigo Diet and Cardiovascular Disease in the Framingham Study (Mann et al, 1962), o papel da ingestão de colesterol, gorduras totais (de origem animal e vegetal) e proteína para o desenvolvimento das placas ateroescleróticas é investigado de forma específica, tendo como foco a dieta dos participantes de Framingham e utilizando referências do campo da nutrição e

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Esse estudo era destinado ao exame de amostras de sangue de cinco grupos populacionais distintos (entre eles, dos participantes do FHS) e à busca da comprovação das características preditivas do colesterol no caso das doenças cardiovasculares e do câncer. Seus resultados finais, no entanto, foram ambíguos: enquanto alguns analistas julgavam que a hipótese dos níveis de colesterol como preditores foi comprovada pelo estudo, outros avaliam que os resultados eram inconclusivos e que o grupo encarregado pela pesquisa lançou mão de "manipulação estatística" para chegar aos resultados desejados (Goffman et al, 1956; Goffman, 2004; University of Minnesota, 2010).

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cardiologia para informar a análise dos pesquisadores.66

Figura 17: "Hipóteses dietéticas" Fonte: Mann et al, 1962: 201

No artigo em questão, os pesquisadores de Framingham trabalhavam não com uma versão simples da hipótese dieta-doença, mas com um conjunto complexo de diversas possibilidades (Figura 17, acima). Eram considerados: 1) o balanço calórico; 2) o nível de ingestão de gordura animal; 3) o nível de ingestão de gordura vegetal; 4) o nível de ingestão de proteínas; 5) o nível de ingestão de colesterol dietético (aquele presente naturalmente nos alimentos); 6) a relação entre a ingestão de ferro e os resultados dos exames hematológicos. Com exceção da primeira e da última hipóteses investigadas, o foco dos pesquisadores era, no final das contas, as diferentes versões da hipótese lipídica, tais quais disponíveis no contexto (ou paradigma) biomédico da época. O ponto a ser

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Em particular, convém salientar a referência existente no artigo ao trabalho de Ancel Keys (Diet

and development of coronary heart disease, 1956), que naquela época estava no centro do debate

a respeito da correlação dieta-colesterol-doença. Ainda que não existam informações concretas sobre a influência de Keys para a construção e condução do estudo de Framingham, a comunidade de pesquisa envolvida com a questão da dieta, colesterol e as doenças do coração não era tão extensa na época, existindo indícios e reminiscências de que Dawber, Kannel e Keys trocassem experiências e discutissem ideias, por exemplo, em eventos científicos (Levy, 2013).

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ressaltado, portanto, é o seguinte: o desenho e a condução do FHS se baseava, em termos das hipóteses e variáveis de interesse, em conhecimentos existentes previamente em seu contexto originário. A adoção da hipótese lipídica servia, dessa maneira, para duas finalidades: por um lado, fornecia diretrizes e direcionamentos para os pesquisadores do estudo, ajudando a construir seu sentido e resultados em relação ao contexto; por outro, esse alinhamento ao conjunto de conhecimentos existentes facilitava a legitimidade do FHS e seus resultados. Ao mobilizarem esses conhecimentos, trazendo-os para "dentro" do estudo, os pesquisadores viabilizavam suas atividades em dois níveis: internamente, empregavam conhecimentos que davam sentido e significado ao seu cotidiano e atividades de pesquisa; em relação ao contexto, essa adesão garantia a aceitação dos resultados entre a comunidade de pesquisa científica e o fluxo de recursos provenientes das instituições mantenedoras do estudo.

Tão importante quanto as bases conceituais do problema do colesterol eram os procedimentos para exame dos pacientes e visualização diagnóstica. Em vários artigos, por exemplo, os pesquisadores do FHS mencionam os métodos laboratoriais de Abell, Levy, Brodie e Kendall (Dawber et al, 1957; 1961; Abell et al, 1952) para a medição de colesterol sérico: isso significa que havia uma técnica -- considerada como confiável e de relativo fácil acesso -- à disposição dos pesquisadores para a produção de dados para o estudo. Novamente, os pesquisadores de Framingham alinhavam elementos externos ao estudo, que garantiam ou facilitavam sua execução. Outras variáveis eram igualmente dependentes de equipamentos e técnicas específicas para a produção de dados. A pressão arterial, por exemplo, é perceptível e mensurável principalmente por meio da mediação de um artefato técnico -- o esfigmomanômetro -- inventado no final do século XIX e aperfeiçoado a ponto de ser adotado pela comunidade médica apenas em 1901 (Booth, 1977). Os demais exames de sangue (por exemplo, hematócitos, ácido úrico, etc.) dependiam também de um conjunto de técnicas específicas, produzidas por outras redes sociais, distintas do estudo de Framingham, e assim sucessivamente.

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anormalidades no coração) também dependia de equipamentos complexos como o aparelho de electrocardiograma, usado para detectar a atividade elétrica do coração,67 aparelhos de raio-X e outros equipamentos com objetivos similares, como o electroquimógrafo (cujo uso foi posteriormente descontinuado no estudo). Em conjunto, o uso dessas tecnologias buscava produzir imagens diagnósticas, que posteriormente serviam para produzir dados sobre a população estudada em Famingham. Em outras palavras, tratam-se de tecnologias destinadas à produção de um tipo específico de inscrição, que permitisse o registro e interpretação de uma realidade observada por parte dos pesquisadores do estudo.

Inscritores

O processo de produção de dados em uma pesquisa biomédica ou, nesse mesmo aspecto, a respeito da população de Framingham é um longo processo, com diversas etapas encadeadas. A informação "homens com níveis de colesterol sérico acima de 245 mg/100 ml representam 53,12% dos casos de doença" (Dawber et al, 1961) em um artigo científico é, na realidade, apenas a faceta mais superficial de uma série de simplificações: em primeiro lugar, foi necessária a medição individual dos níveis de colesterol; esse exame produziu então um valor ou dado numérico, que foi devidamente registrado; diversas medições distintas foram então agrupadas, simplificadas, e submetidas à interpretação; os pesquisadores escolheram formas de apresentação que melhor correspondessem às conclusões que fizeram a respeito dos dados agrupados; essas interpretações

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Ainda que o uso do electrocardiograma para finalidades diagnósticas preventivas já tivesse sido proposto desde a primeira década do século 20 e que a invenção tenha rendido o prêmio Nobel de 1924 para Willem Einthoven, sua adoção pela comunidade médica foi lenta, em parte pelo custo e dificuldade de acesso ao equipamento, em parte pela resistência dos médicos. Uma das primeiras versões do equipamento, datada de 1902, ocupava duas salas, pesava aproximados 360 kg, demandava o trabalho de cinco técnicos para sua operação e requeria um treinamento específico para a leitura e interpretação dos resultados. A chegada dessa técnica no estado de Massachussets (e, assim, seu apelo para profissionais ligados ao estudo de Framingham, como Rutstein e Dawber) é normalmente atribuída a Paul Dudley White, quem em 1914 instalou um equipamento de eletrocardiograma no Massachusetts General Hospital (Levy e Brink, 2005).

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foram simplificadas por meio de gráficos ou tabelas; por fim, o processo é resumido em uma nova forma de inscrição, o artigo científico. Previamente ao artigo cientifico, portanto, ocorrem uma série de inscrições, simplificações e novas inscrições, que ocupam grande parte da atividade cotidiana da pesquisa científica. Muitas dessas atividades são realizadas com a ajuda de maquinas ou equipamentos específicos.

Aparelhos de registro, medição, cálculo e de produção escrita são chamados de inscritores. Sua importância para o processo de construção dos fatos científicos foi explorada por Bruno Latour e Steve Woolgar ("A Vida de Laboratório", 1997) e, posteriormente revisitada em "Ciência em Ação" (2000). O conceito remete aos artefatos que produzem "traços, pontos, histogramas, números de registro, espectros, gráficos, etc." (Latour e Woolgar, 1997: 37), que mesmo que nem sempre percebidos, são fundamentais à pesquisa laboratorial. Sua finalidade é a produção de registros, figuras e outras formas de simplificação que irão auxiliar na produção de artigos científicos (o produto final dos laboratórios e pesquisas científicas).

No caso da pesquisa de Framingham, exames de sangue (para medição de níveis de colesterol, hemoglobinas, açúcar, ácido úrico, etc.), a medição da pressão sanguínea e o histórico individual dos pacientes, são mecanismos de inscrição. Em conjunto, eram codificados nas fichas individuais dos exames, que compunham um novo mecanismo de inscrição. Essas fichas, tornavam-se dados em cartões perfurados, que eram submetidos à análise estatística e computacional. As análises estatísticas, por sua vez, produziram uma nova forma de inscrição (os dados agregados) que eram então empregados para escrever os artigos dos pesquisadores do FHS. Em resumo: cada artigo produzido pelo estudo é o resultado de uma cadeia de inscrições (a produção de dados), que foram simplificadas (análise) para então serem apresentados em forma escrita, em um artigo.

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Os aparelhos e equipamentos inscritores (começando com os exames laboratoriais, passando pelas tecnologias de diagnóstico e os exames clínicos codificados) foram muito importantes para a elaboração e condução do estudo, pois suas inscrições representaram o ponto de partida -- ou a "matéria-prima" -- da produção de dados em Framingham. Dito de outra forma, os aparelhos "traduziam" a realidade, gerando inscrições que se convertiam no material com o qual os pesquisadores trabalhavam. Diferentemente dos primeiros laboratórios científicos, onde os equipamentos experimentais eram construídos pelos próprios cientistas -- como no caso do experimento de Thomas Boyle, relatado por Shapin e Schaffer (1985) -- os equipamentos empregados no FHS eram majoritariamente produzidos em outros espaços sociais. Sua natureza estabilizada e o consenso em torno de seu funcionamento, no entanto, permitiam que eles fossem empregados de forma relativamente não-problematizada. Nesse sentido, arranjos técnicos produzidos em outros contextos sociais eram então alinhados ao conjunto de elementos heterogênos que compunham o estudo de Framingham, de forma a atingir seus objetivos específicos. Em condições normais, portanto, eram empregados pelos pesquisadores do FHS de forma pragmática: desde que seu funcionamento e os dados produzidos estivessem dentro dos padrões normalmente aceitos para seu funcionamento, eles produziam as inscrições necessárias para a produção de dados.

Finalmente, é possível destacar também o uso pioneiro de computadores no estudo de Framingham. A mecanização da tabulação e análise dos dados, realizada inicialmente na sede da NIH em Bethesda certamente demarcou a importância histórica do estudo e seu caráter inovador, mas a exemplo dos inscritores empregados nos exames clínicos e laboratoriais, os computadores e técnicas relacionadas eram provenientes de espaços sociotécnicos completamente distintos daquele de Framingham.68 Com o final da Guerra,

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Os computadores são máquinas e equipamentos capazes de realizar o processamento automatizado de dados (Ralstom e Riley, 1993). O conceito remonta aos trabalhos de John Napier, Blaise Pascal e Gottfried Leibnitz na área de matemática, que envolviam a realização de cálculos

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gradativamente os computadores e sua capacidade de processamento foram empregados em áreas distintas do esforço militar. Esses artefatos tecnológicos se colocavam como um auxílio importante para os pesquisadores, dadas as características únicas do FHS, dentre elas, o grande tamanho da população estudada, as numerosas e repetidas observações e análises requeridas e a necessidade de arquivamento e rápida recuperação desses dados (Dawber et al., 1963). Sem as tecnologias de computação oferecidas pelo governo norte- americano (representadas pelos computadores do NIH em Bethesda), os avanços do estudo teriam sido muito mais lentos, ou teriam características bastante distintas. De qualquer forma, os primitivos computadores disponíveis nas décadas iniciais do estudo eram peças importantes das atividades do FHS -- ainda que fossem tecnologias "de fora" do mundo da medicina, seu uso oportuno foi central