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Em todo o processo de transformação das diretrizes educacionais para as populações do campo, até mesmo uma questão terminológica compõe os debates. É o caso do emprego das expressões “educação no e do campo” ou “educação rural”. Trata-se de uma discussão que revela os objetivos e projetos políticos envolvidos na consolidação da oferta de escolas à juventude, o que inclui até a ocupação de vagas na universidade.

A educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições de existência social e com as realizações da sociedade humana (MEC/CNE, 2002, p. 1).

Segundo Caldart, a expressão “educação no e do campo” refere-se a uma opção política, que determina o espaço educativo para além das paredes das escolas. Para ela, educação no campo é aquela em que “o povo tem direito a ser educado onde vive”. Já na educação do campo o povo “tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais” (CALDART, 2004, p. 26).

Para construir essa concepção de educação voltada para as necessidades das condições de existência no campo, o surgimento do MST é um capítulo importante.

Seu marco é a primeira ocupação de terra no Rio Grande do Sul, em 1979, que foi a referência para a organização do Movimento. Logo em seguida, o MST consolida em 1981 o primeiro acampamento com as famílias que vão construindo uma organização, uma forma de viver em coletividade, se encontrando em movimento. Nessa fase, as pessoas vão reaprendendo a conviver com o medo de não saber o que acontecerá no dia seguinte, mas se alimentam de esperança para vencer o perigo, a fome e conquista da terra (CALDART E SCHWAAB, 2005).

A dinâmica dos acampamentos é uma rotina de sobrevivência material, sendo resolvido aos poucos pela divisão de tarefas e da organicidade das lideranças. Com os adultos encaminhados por suas responsabilidades, surgiu um problema de como orientar mais de duzentas crianças que ali estavam dispersas, sem compreensão sobre o que estava acontecendo. A primeira solução foi organizar um grupo de mães para cuidar das crianças, interagindo com brincadeiras e conversando com elas, tentando explicar as mudanças que ocorriam em suas vidas e de como elas poderiam participar das atividades do acampamento. Entre as mulheres acampadas, havia uma professora que começava a coordenar as atividades com as crianças. Nesse momento ainda não se pensava em escola, mas de cuidar e proteger as crianças dos perigos, discutindo com elas sobre o sentido da luta que estavam participando.

Segundo Caldart e Schwaab (2005), somavam-se 180 crianças em idade escolar, sendo 112 ingressos em alfabetização, quando começou a primeira articulação entre os acampados por uma escola estadual de 1ª a 4ª series, no acampamento. A Secretaria de Educação daquele estado autorizou a construção da escola, em 1982, sendo de fato legalizada em 1984, quando o acampamento se desdobrou em quatro assentamentos. As professoras que assumiram a coordenação da escola estavam cursando Pedagogia e tinham experiência em Educação Popular, proveniente de encontros de multiplicadores pelo Método Paulo Freire. Isso impulsionou essas professoras a pensarem numa “escola diferente” para as crianças Sem Terra. “Uma escola que deveria valorizar a história de luta destas famílias, ensinando a ler e escrever através de vivências que também desenvolvessem o amor à terra e ao trabalho” (ibidem, p. 13).

Em outra experiência de luta por escola, no maior acampamento já realizado pelo MST, contabilizava-se mais de mil crianças. Foi organizada uma

equipe de educação que, percebendo a demora nas negociações pela terra, decidiram discutir a necessidade da escola. As opiniões ficaram divididas, pois naquele momento algumas lideranças defendiam que as escolas dificultariam a mobilidade do Movimento caso a ocupação não tivesse sucesso e pela educação não fazer diferença no desdobrar de uma luta social como a dos Sem Terra.

Outra dificuldade vinha da parte do governo, que argumentava pela ilegalidade do acampamento como área de conflito. Com intermédio da professora Julieta Balestro, conseguiram marcar uma audiência com o secretário de educação de Porto Alegre, em que o prefeito também participou. Tais autoridades demonstraram preocupação com a realidade das crianças e prometeram a construção da escola em 1986. Passados quatro meses sem que nada tivesse sido encaminhado, a equipe de educação resolveu levantar um grande barracão e começar as aulas.

É debaixo de lona preta, pois, que começa a funcionar a primeira escola oficial de um acampamento do MST no estado. As aulas aconteciam todas no mesmo barracão, num sistema de três turnos. Eram 23 professores para 600 alunos, de 1ª à 4ª séries. No final do ano, as aulas passaram para o prédio novo (CALDART e SCHWAAB, 2005, p. 14).

Uma questão determinante para a compreensão desse novo processo educativo estava na articulação entre escola e assentamento, com o trabalho desenvolvido pelas professoras acampadas. Como essas professoras tinham titulação deficiente e não podiam participar de concurso, não tiveram contratos renovados nas escolas municipais. Foram encaminhadas para o assentamento novas professoras, mas que não tinham nenhum contato com aquela realidade e a dinâmica da escola. Novos conteúdos eram então ressaltados, em detrimento daqueles necessários à formação camponesa, o que se concretizou num processo de “invasão cultural”9. A imposição de um currículo tradicional desvirtuava das práticas educativas que as crianças participavam com as professoras do movimento.

Então elas começam a questionar: “Profe, por que a gente não canta

mais o nosso hino? Por que existe gente sem terra, hein? Profe, nós vamos ficar

9

Freire denomina invasão cultural como uma das teorias da ação antidialógica, que sugere as novas professoras como portadoras de seu espaço histórico-cultural, que lhe dá sua visão de

mundo, é o espaço de onde elas partem para penetrar em outro espaço histórico-cultural, superpondo aos indivíduos destes sistemas de valores (1975, p.41).

ainda muito tempo nesses barracos?” (CALDART e SCHWAAB, 2005, p. 16).

Com essas falas confirmamos a emergência de repensar os currículos das escolas do campo, para não cairmos no erro de justificar a evasão escolar e a repetência pela falta de capacidade dos alunos. Por outro lado, isso estimulou o grupo de educação do movimento a lutar pela titulação de seus professores para garantir que as escolas não ficassem isoladas da luta geral do MST.

Diante da expansão das lutas por educação do campo, foi criado o setor de educação em 1988, para encaminhar coletivamente nos estados as demandas referentes à construção de novas escolas, contratação de professores, busca de alternativas para a formação e titulação dos mestres. Isso ajudou a reestruturar o MST em setores de atividades.

Mas sem dúvida, o grande desafio do setor é a progressiva definição da proposta geral de educação para as escolas de assentamentos, no que tem contribuído a articulação nacional da equipe e o intercâmbio com assessores que trazem para dentro do movimento as discussões mais avançadas sobre educação popular, fora e dentro da escola formal (CALDART e SCHWAAB, 2005, p. 17).

A questão da educação nesse período ainda não era bem compreendida como dimensão fundamental da luta. Ela estava ganhando novas dimensões e espaços internos de discussão, na medida em que as lideranças tomam consciência do processo social despertado pelo movimento. “Mas, ao mesmo tempo, existe outra divergência: porque lutar por educação não é necessariamente lutar por escolas formais. Existem outras formas de educação que parecem bem mais eficientes e concretas” (ibidem, p. 17).

Essas experiências educativas construídas com a luta pela Reforma Agrária e por articulações com organizações correlatas, estabeleceram a idéia e o conceito de Educação do Campo, interagindo com os aspectos da vida cotidiana dos camponeses. A construção da idéia surgiu do Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (ENERA), promovido pelo MST e parcerias com a UnB, o Fundo das Nações Unidas (Unicef), a Organização das Nações Unidas (Unesco) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (FERNADES, 2004).

Na organização do conceito, para a construção do paradigma de Educação do Campo como destaca Fernandes e Molina (2004), era necessário realizar estudos e pesquisas sobre as diferentes realidades do campo, seus

avanços e recuos no jeito de fazer a espacialização e territorialização da luta pela terra. Pois, como bem lembra Arroyo (2004, p 92):

A realidade da Educação do Campo e de seus condicionantes históricos é desconhecida. Assumi-la na agenda pública exigirá como primeira tarefa estimular seu conhecimento. Pôr em ação as agências públicas capazes de pesquisar, analisar, diagnosticar com especial atenção essa realidade.

Como levantamento dessa realidade do campo, foi realizada uma Pesquisa Nacional da Educação na Reforma Agrária, com várias parcerias do Ministério da Educação e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e do INCRA/PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Na construção de uma política pública para a educação do campo, a pesquisa levantou informações referentes às demandas educacionais e para diagnosticar a situação do ensino ofertado em escolas de assentamentos ou nas proximidades. Esse levantamento visa subsidiar esta política de desenvolvimento do campo e de melhorias nas condições educacionais, em especial de assentamentos.

Quanto ao perfil dos alunos, a pesquisa (MEC/INEP, 2005) revela que entre os alunos matriculados nas escolas do campo, encontra-se uma diversidade de alunos que não residem em assentamentos, que são pertencentes aos remanescentes de quilombolas e de comunidades indígenas, somando 53,6% dos alunos matriculados. Com isso, percebemos que a quantidade de alunos de assentamentos da Reforma Agrária tem aumentado e está trazendo um novo perfil de estudantes, dado este relevante para que haja mudanças na educação.

Para realizar as discussões foi organizada a 1ª Conferência Nacional por Educação Básica do Campo, em 1998 em Luziânia-GO, promovido pelo MST, a CNBB (Conferência dos Bispos do Brasil), a UNB (Universidade de Brasília), a UNESCO (Organização das Nações Unidas pela Educação) e o UNICEF (Fundo da Nações Unidas para a Infância). Neste momento o campo foi apontado como espaço de vida digna e que é legítima a luta por políticas públicas específicas e por um projeto educativo próprio para seus sujeitos. Como não podia deixar de ser, foram relatadas as deficiências da educação pública destinada à população campesina, como os problemas de falta de acesso e qualidade no ensino. Do encontro surgiram propostas, socialização de experiências de resistência, além de afirmações para um projeto de educação popular (CALDART, 2004, p. 14).

Para a elaboração de propostas foi necessário inclusive investigar os problemas de acesso e qualidade no ensino que são revelados na pesquisa do MEC/INEP (2005). Observando a realidade do Nordeste na questão da deficiência na escolarização de crianças e jovens quanto à situação de não estarem estudando, não há diferenças diante da realidade brasileira. A pesquisa constatou que os estudantes de 7 a 14 anos estão fora da escola principalmente devido à distância da casa para a escola. Por esse motivo, o MST vem exigindo a implantação de escolas nos assentamentos o que resolveria o segundo maior problema que é a falta de escolas no campo.

Diante dos problemas educacionais e de debates realizados através da Articulação Nacional por uma Educação do Campo, esta educação foi criando sua espacialização. Antes da realização da 2ª Conferência em 2004, já se podiam comemorar conquistas, no âmbito da luta por políticas públicas, com a aprovação em 2002 das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo e da introdução da questão da Educação do Campo na agenda de lutas e de trabalho de movimentos sociais e sindicais de trabalhadores e trabalhadoras do campo, o que se fortifica para exigir a inserção das discussões na agenda dos governos municipais, estaduais e nacional. Portanto, os projetos já estavam se configurando como realidade.

Para tanto, as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, instituída em 2002, em parágrafo único dos artigos 1º e 2º define:

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponíveis na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social de vida coletiva no país (p. 37).

Tendo em vista que a educação nas áreas rurais sempre foi tratada com desprezo e como instrumento de silenciar os trabalhadores rurais, finalmente depois de 500 anos de exclusão uma lei é aprovada para constituir a identidade da população rural e assegurar a sua condição de cidadãos na definição dos rumos da sociedade brasileira. Muitas entidades participaram da composição da articulação nacional por uma educação do campo, o que garante uma tentativa de amplo atendimento às comunidades rurais nas escolas, sejam ou não vinculadas aos movimentos sociais.

A pesquisa apresentou, por exemplo, a aplicabilidade dessa lei nas escolas do campo, verificando que 62,9% dos recursos humanos da escola não conheciam as Diretrizes. Essa informação é preocupante, pois esse desconhecimento enfraquece a execução da lei. De forma que os esforços devem perseguir a superação das deficiências da educação e sua utilização seja uma prática para a qualidade do ensino do campo.

Paralelamente a tantas conquistas, nos assentamentos da Reforma Agrária, bem como nos assentamentos do MST, a educação vem correspondendo a um novo pensamento-linguagem, exigindo uma melhor compreensão da nova realidade. “A reforma agrária exige um permanente pensar crítico em torno da ação transformadora mesma e dos resultados que dela se obtenham” (FREIRE, 1982, p. 31).

A efetivação de assentamentos rurais advindos da Reforma Agrária, já concretiza-se como uma mudança de pensamento dos trabalhadores rurais.

Essa visão diferenciada de educação demandada pelo MST tem uma íntima relação com a concepção político-pedagógica em Paulo Freire, para quem

a politicidade do ato educativo é concomitante à educabilidade do ato político. A

educação assim delineada enfatiza a sociabilidade política, defendida por Freire (2001):

Quando estou discutindo com estudantes a significação mais profunda da educação à luz dessa compreensão realista, crítica e materialista da história, a minha preocupação não é só convencê-los da verdade do que Marx disse, mas contribuir com este convencimento para que eles engrossem amanhã a luta pelo vencer, no sentido de mudar a história. Sou também político, portanto, e sou político na especificidade da pedagogia. (p.31)

O que Freire bem expressa traduz uma concepção de educação popular, uma intencionalidade pedagógica geradora de mudanças nas estruturas sociais. E a capacidade de gerar mudanças está associada a uma práxis, onde o

convencer, utilizado por Freire, está em conhecer a realidade pela teoria e a partir

dela realizar a transformação pela prática.

2.3. A Pedagogia do Movimento nos cursos de formação política de jovens