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Em busca de compreender as formas de ação coletiva do MST, recorro a teorias marxistas por estas serem as que melhor contribuem nos estudos dos movimentos sociais. Elas se destacam por apresentar categorias filosóficas de compreensão da realidade, tais como: movimento, contradição, conflito de

classe, conscientização e a práxis, categorias determinantes de uma dialética

de opressão e de libertação, para atuar na produção de uma sociedade modificada pela dimensão educativa dos movimentos sociais (JEZINE, 2006).

A aplicação do conceito de movimentos sociais na América Latina e no Brasil já é por si um desafio, devido às diversidades de ações que indicam um caráter de movimento. Assim, podemos encontrar, segundo Touraine, os registros históricos de diversos movimentos sociais classificados como: messiânicos, camponeses, de defesa comunitária, de defesa da identidade, as lutas urbanas, novos movimentos sociais, movimentos históricos, entre outros. De forma que constroem uma identidade ao conceituar movimentos sociais a partir de uma análise no campo da ação política, como assinala Glória Gohn (1997, p. 251-2):

Movimentos Sociais são ações sócio-políticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articulados em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade civil. As ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciadas pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um processo social e político cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses comuns. Esta identidade é amalgamada pela força do princípio da solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo em espaços coletivos não institucionalizados. Os movimentos geram uma série de inovações nas esferas pública (estatal e não estatal) e privada; participam direta ou indiretamente da luta política de um país, e contribuem para o desenvolvimento e a transformação da sociedade civil e política. Estas contribuições são observadas quando se realizam análises de períodos de média ou longa duração histórica, nos quais se observam os ciclos de protestos delineados. Os movimentos participam, portanto da mudança social histórica de um país e o caráter das transformações geradas poderá ser tanto progressista como conservador ou reacionário, dependendo das forças sócio-políticas que estão articuladas, em suas densas redes: e dos projetos políticos que constroem com suas ações. Eles têm como base de suporte entidades e organizações da sociedade civil e política, com agendas de atuação construídas ao redor de demandas socioeconômicas ou político- culturais que abrangem problemáticas conflituosas da sociedade onde atuam.

De maneira geral, uma conceituação de movimentos sociais deve atender a vários contextos sócio-históricos. Em nossa realidade de pesquisa, consideramos que as raízes do MST encontram-se em um movimento social popular de organização de massa, idealizado pelos próprios trabalhadores rurais. Utilizamos aqui o termo “de massa” porque as próprias lideranças entendem que o movimento ainda não formou conscientemente todos os seus membros, mas ele busca mobilizar uma grande quantidade de pessoas para que possa realizar com elas uma formação contínua e prolongada.

Para tanto, Ribeiro (2004), a partir da discussão da práxis do MST caracteriza o movimento como sindical, popular e político.

Como movimento sindical, ele representa a luta pela conquista da terra, por infra-estrutura e assistência técnica. “Essa característica se fundamenta no entendimento de que as transformações objetivas e subjetivas da sociedade se dão sob bases concretas, sob mudanças efetivas nas condições materiais de produção” (ibidem, p. 24).

É também um movimento popular, por se “entender que a reforma agrária melhora as condições de vida dos/as trabalhadores/as do campo e da cidade” (ibidem, p. 24) Toda a família participa da luta, a mulher e o homem,

jovens e crianças. Também podem fazer parte dela todos/as que defendem e apóiam a luta pelos impasses da questão agrária, fortalecendo ainda o MST como uma organização social.

Já como movimento político, compreende que as lutas pela terra e reforma agrária só podem avançar como parte essencial da luta de classes, na qual se percebe o pressuposto da divisão de classe e a luta entre elas como princípio de desenvolvimento histórico. Acredita-se, então, na unificação da classe trabalhadora e na conquista da hegemonia popular, como revelado no grito de guerra: “quando campo e cidade se unir, a burguesia não vai resistir”.

Ainda segundo Ribeiro (2004), muitas são as pesquisas sobre movimentos sociais que se concentram em descrever suas características e ainda não realizam uma análise que reflita coerentemente a sua dinâmica interna. Isso reforça a necessidade de estudar os movimentos sociais à luz de teorias que lhes observem dentro do movimento geral da sociedade. E não vemos uma abordagem mais adequada a isso do que o marxismo, que vê a luta de classes como o grande motor da história da humanidade. Melhor dizendo, pelas palavras de Engels, em prefácio ao Manifesto Comunista:

toda a história (desde a dissolução da posse comunitária primordial das terras) tem sido uma história de lutas de classes, lutas entre classes exploradas e exploradoras, dominadas e dominantes, em diferentes etapas do desenvolvimento social; que esta luta, porém atingiu agora uma etapa em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) já não se pode libertar da classe exploradora e opressora (a burguesia) sem ao mesmo tempo libertar para sempre toda a sociedade da exploração, da opressão e das lutas de classes - este pensamento basilar pertence única e exclusivamente a Marx (1987, p. 13).

Segundo Gonh (1997), enquanto teoria dos movimentos sociais, o marxismo é entendido como um paradigma europeu. Outra abordagem paradigmática da Europa é conhecida como teoria dos Novos Movimentos Sociais, que se consagraram nos anos 80 e tentam explicações mais conjunturais da ação social, localizada em âmbito político ou concentrada nos microprocessos da vida cotidiana, fazendo recortes na realidade para observar a política dos novos atores sociais. Como se vê, os novos movimentos sociais são vistos sob um olhar culturalista-acionalista e, em conseqüência, não procuram aprofundar as relações históricas e dialéticas das condições da opressão.

Tal perspectiva não se adequa ao estudo sobre o Movimento Sem Terra, porque, como anteriormente elucidamos, o camponês que luta pelo direito

à terra já adquiriu a consciência de que, com a terra, vem uma série conjuntural de demandas que o sistema capitalista de dominação burguesa não é capaz de satisfazer. Além disso, o indivíduo em tomada de consciência é aquele que sabe da sua situação dentro da luta de classes, ou seja, busca compreender em profundidade a sua conjuntura. A esse respeito, Marx e Engels (1987, p. 52) são taxativos:

Será necessária uma inteligência profunda para compreender que ao mudarem as relações de vida dos homens, as suas relações sociais, a sua existência social, mudam também as suas representações, as suas concepções e os seus conceitos, numa palavra, a sua consciência?

A trajetória histórica de formação do MST teve características bem particulares com relação a outros movimentos sociais. Inclusive incorpora contribuições da teoria dos Novos Movimentos Sociais quanto aos temas específicos centrados nas questões culturais, de etnias, de gênero, de identidades raciais ou culturais, que foram acrescidos às lutas. Isto destaca o MST “como um dos herdeiros de um processo histórico de resistência e luta do campesinato brasileiro” (BATISTA, 2006, p. 107).

A própria formação do movimento indica suas particularidades, já que se distingue em três momentos na história. Inicialmente houve a articulação e organização da luta pela terra na concepção de sua unidade nacional. Foi na segunda fase de sua história, que o MST definiu sua estrutura como movimento de massa. E é mais atualmente que tem ocorrido a percepção conjuntural da Reforma Agrária dentro de um projeto de desenvolvimento para o Brasil (CALDART, 2004).

Essas ações manifestaram estratégias diferenciadas em cada região, mas precisam ser compreendidas articuladamente, pois cada momento se faz importante na formação da identidade Sem Terra. É importante observar o caráter da luta social como parte constitutiva da estrutura da luta de classes da sociedade. O movimento evidencia, desde a década de 80, que a luta pela Reforma Agrária é uma luta de resistência ao modo de produção capitalista. Neste sentido o MST se configura como um movimento social tradicional e, portanto, de classe.

No caso do Movimento Sem Terra, o conceito de luta de classe é central, seu projeto de sociedade aparece de forma bem clara, e a identidade que está sendo construída no e por meio do Movimento é uma identidade de classe, do sujeito vinculado à classe social e a um movimento de transformação das estruturas sociais (RIBEIRO, 2004, p. 33).

Como um movimento da classe camponesa, o MST se mantém nas bases teóricas do pensamento marxista. A vinculação da prática produtiva (transformação da natureza mediante o trabalho humano) com a prática revolucionária (transformação da sociedade mediante a ação dos homens) destaca-se pela categoria da práxis social, que Vasquez nos apresenta a partir de Marx. Essa categoria tornou-se central no estudo dos movimentos sociais da classe operária e camponesa e da própria burguesia, na medida em que só a partir dela tem sentido a atividade do homem, sua história, assim como seu conhecimento. Para tanto, “É preciso que o proletariado adquira consciência de sua situação, de suas necessidades radicais e da necessidade e condições de sua libertação” (VASQUEZ, 1977, p. 129).

Para Marx, a efetivação dessa práxis está na conexão da prática com a atividade teórica, ou seja, “a teoria, que por si só não transforma o mundo real, torna-se prática quando penetra na consciência dos homens” (apud VASQUEZ, 1977, p. 127). Então, para uma materialização histórica da teoria revolucionária, é preciso que nos movimentos sociais haja organização e direção. Tal necessidade torna-se premente e evidencia um setor específico para articular a formação de novos quadros. Esse setor de formação, por sua vez precisa compreender os processos de re-elaboração e amadurecimento da consciência camponesa. Pizetta (2004, p. 7), uma das lideranças orgânicas desse setor, acrescenta:

A necessidade de formar melhor a consciência, de elevá-la desde sujeitos alienados para desalienados, críticos e atuantes. Sujeitos conscientes em construção permanente, objetiva e subjetivamente. Ou seja, a formação deve trazer elementos teóricos que qualifiquem a capacidade de análise e de intervenção na realidade.

Nas trilhas do alcance desses objetivos, o MST possui o setor de formação direcionado para trabalhar com a formação política de seus companheiros. A primeira manifestação desse processo ocorre nas reuniões do trabalho de base, com as mobilizações para organizar as primeiras ocupações, trabalho que aglutina tanto pessoas do campo quanto da cidade. Os princípios

para essa organização consistem na evidência da luta por interesses comuns, na difusão da ideologia de libertação e na formação de lideranças para as quais se outorgam responsabilidades. Desde aí já é possível ao militante a percepção da práxis, pois ela vitaliza o movimento, articulando conhecimento com atividades práticas, que vão se intensificar nos cursos, na vida cotidiana dos assentamentos e acampamentos, e que pode ser sintetizada em uma palavra: luta.

É nesse contexto que a realização do curso de formação Prolongado manifesta-se como a materialização em atos de uma práxis revolucionária para uma elevação cultural dos jovens. Isso é possibilitado por uma opção política da coordenação do setor de formação do Movimento, que assume uma “organização que requer um organismo que aglutine e dirija esses esforços de acordo com a teoria revolucionária” (VASQUEZ, p. 173). Da mesma forma:

A teoria de organização da revolução deve ser baseada por sua vez num conhecimento da realidade social que se quer transformar, ao mesmo tempo em que é uma fundamentação da necessidade da transformação revolucionária e da missão histórica que nela cabe ao proletariado (ibidem, p.172).

Segundo Scherer-Warren (1987, p. 26), “a práxis produtiva será a práxis básica do mundo social”, em que à medida que o homem produz, transforma a si mesmo e a natureza através do trabalho produtivo. Em acréscimo, Caldart (2004, p. 32) afirma:

nos mesmos processos em que produzimos nossa existência, nos produzimos como seres humanos; que as práticas sociais e entre elas especialmente as relações de trabalho, conformam (formam ou deformam), os sujeitos. É por isso que afirmamos que não há como verdadeiramente educar os sujeitos do campo sem transformar as circunstâncias sociais desumanizantes, e sem prepará-los para serem os sujeitos dessas transformações.

Nas circunstâncias das lutas se processa a educação dos sujeitos que agem pela subsistência do e no campo. Eles se transformam na luta e com a luta, produzem mudanças históricas que os tornam capazes de re-fazer-se e de consolidar os novos parâmetros da vida em sociedade. Constituindo novas formas de pensar e fazer, são ainda capazes de possibilitar a superação da situação opressora e organizar a massa, o que ocorre em dois momentos:

O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia

deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação (FREIRE, 1987, p. 41).

Sob essa ótica da Pedagogia Libertadora, o MST incorpora a luta dos trabalhadores rurais, pois não existe movimento sem uma coletividade organizada em defesa da sua libertação. A coletividade do MST tem uma particularidade muito forte, que é o fato da família participar de todo o conjunto das ações do movimento, num processo de interação das gerações. Cada geração está envolvida na participação das atividades, tanto nos acampamentos quanto nos assentamentos, e isso inclui as representações estaduais e nacionais. Todos estão comprometidos com a luta pela Reforma Agrária como propulsora da elevação de consciência das pessoas pela construção de novos saberes, diante da mudança de percepção e compreensão da realidade brasileira que afeta as condições materiais de existência dos assentados e acampados.