• Nenhum resultado encontrado

A primeira referência que se tem sobre o termo Educação Rural foi registrada nos anais do 1° Congresso de Agricultura do Nordeste em 1923. A discussão das questões agrícolas estava centrada no intenso debate que se processava no seio da sociedade a respeito da importância da educação para conter o movimento migratório e elevar a produtividade no campo. Surge o

modelo de educação rural do patronato, destinados aos jovens pobres das regiões rurais, com a finalidade de contribuir para o desenvolvimento agrícola da região, mas privilegiando a dominação das elites. Toda perspectiva salvacionista dos patronatos prestava-se ao

Controle que as elites pretendiam exercer sobre os trabalhadores, diante de duas ameaças: quebra da harmonia e da ordem nas cidades e baixa produtividade do campo. De fato, a tarefa educativa destas instituições unia interesses nem sempre aliados, particularmente os setores agrário e industrial, na tarefa educativa de salvar e regenerar os trabalhadores, eliminando, à luz do modelo de cidadão sintonizado com a manutenção da ordem vigente, os vícios que poluíam suas almas. Esse entendimento, como se vê, associava educação e trabalho, e encarava este como purificação e disciplina, superando a idéia original que o considerava uma atividade degradante (DIRETRIZES OPERACIONAIS DA EDUCAÇÃO NO CAMPO, In: KOLLING et all, 2002, p. 54).

O modelo de educação que intencionava salvar e estimular os trabalhadores à manutenção da ordem vigente tinha somente a intenção de atender aos interesses das elites. Baseava-se no controle que os setores agrários e industriais exerciam sobre os trabalhadores, especialmente os jovens, a quem a educação estava a serviço. Freire (1987, p. 60) reconhece essa tarefa educativa de salvar e regenerar os trabalhadores como uma educação assistencialista, em que predomina a concepção bancária de educação, pois visa à manutenção dos interesses do poder.

Na medida em que esta visão ‘bancária “anula o poder criador ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação. O seu ‘humanitarismo’, e não humanismo, está em preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a manutenção de sua falsa generosidade (...) Para isto se servem da concepção e da prática “bancárias” da educação, a que juntam toda um ação social de caráter paternalista, em que os oprimidos recebem o nome simpático de “assistidos”.

Esse caráter paternalista de desinteresse e a falta de compromisso pela educação formal e profissional dos trabalhadores do campo transcorreu à legislação brasileira. Segundo o Relatório de Edla de Araújo Soares sobre as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (2001), a inserção da educação rural no ordenamento jurídico brasileiro remete às primeiras décadas do século XX. Somente a partir de 1934 o tema da educação foi mencionado com maior visibilidade devido às idéias do Movimento Renovador,

através do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, que propõe uma educação que sirva aos interesses dos indivíduos e não aos interesses das classes sociais, em que se aponta a problemática dessa trajetória educacional:

A escola tradicional, instalada para uma concepção burguesa, vinha mantendo o indivíduo, na sua autonomia isolada e estéril, resultante da doutrina do individualismo libertário, que teve, aliás, o seu papel na formação das democracias e sem cujo assalto não teria quebrado os quadros da vida social(GUIRALDELLI JR, 1990, p. 60).

Embora nossas raízes sejam agrárias, a educação rural não chegou a ser mencionada nos textos constitucionais de 1824 e 1891, o que evidencia, de um lado, o descaso histórico de governantes com a educação e, do outro, os resquícios de matrizes culturais vinculadas a uma economia agrária apoiada no latifúndio e no trabalho escravo. Essa herança da escola tradicional pautou toda a educação brasileira, que se constitui pelas contradições de classe e pela exploração dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, o que incentivou a expulsão dessas pessoas do campo. Na observação de Alberto Torres, “a instrução pública tem sido um sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo” (apud GUIRALDELLI JR, 1990, p. 68).

Como conseqüência do Manifesto dos Pioneiros, a Constituição de 1934 expressa grandes inovações ao texto constitucional, que ocorreram a partir de estudos da situação educacional brasileira, resultando em formulações de propostas de interesses dos estudantes, quanto às relações entre instituição de ensino e sociedade.

As inovações se referem a instituir o Estado como educador, atribuindo responsabilidades às três esferas do poder público, com a garantia do direito à educação. Ficou estabelecido, também, um Plano Nacional de Educação, com a organização do ensino em sistemas. Instituíram-se os Conselhos de Educação que, em todos os níveis, recebem incumbências relacionadas à assessoria dos governos, à elaboração do plano de educação e à distribuição de fundos especiais. Por esses encaminhamentos, revelam-se as novas pretensões que estavam postas na sociedade.

A responsabilidade do atendimento escolar do campo pelo poder público foi assegurado pela Constituição de 1934 no Título dedicado à família, à educação e à cultura, conforme o seguinte dispositivo:

Art. 156. A União, os Estados e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos.

Parágrafo único. Para realização do ensino nas zonas rurais, a União reservará, no mínimo, vinte por cento das cotas destinadas à educação no respectivo orçamento anual.

Como nesse período a base da economia era agrícola e o orçamento da União era determinado pelos impostos pagos pelas elites, evidenciam-se os limites da expansão do ensino, bem como houve o reforço de um modelo que reproduzia práticas sociais de excesso do poder.

A partir da Constituição de 1937, sinaliza-se a importância da educação profissional no contexto do nascimento da indústria, modalidade de ensino destinada às classes desfavorecidas. O seu artigo 129, além de legitimar as desigualdades sociais do sistema de ensino, não menciona propostas para o ensino agrícola. Porém, no artigo 132 do mesmo texto, apresenta-se a importância do trabalho no campo e nas oficinas para a educação da juventude, considerando o financiamento público para iniciativas que retomassem a mesma perspectiva dos chamados Patronatos:

Art. 132. O Estado fundará instituições ou dará o seu auxílio e proteção às fundadas por associações civis, tendo umas e outras por fim organizar para a juventude períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, assim como promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepará-la ao cumprimento dos seus deveres para com a economia e a defesa da Nação (apud KOLLING et all, 2002, p.58).

A continuidade da educação profissional para a juventude trabalhadora do campo se efetivou com a Lei Orgânica do Ensino Agrícola, promulgada em 1946. Houve aí um destaque para a preocupação com os valores humanos e o reconhecimento da importância da cultura geral e da informação científica. O Decreto estabeleceu também a educação sexista, camuflada ou não, que assegura o direito de homens e mulheres ingressarem nos cursos agrícolas.

Art 51. O direito de ingressar nos cursos de ensino agrícola é igual para homens e mulheres.

Art. 52 No ensino agrícola feminino serão observadas as seguintes prescrições especiais:

1. É recomendável que os cursos de ensino agrícola para mulheres sejam dados em estabelecimentos de ensino de exclusiva freqüência feminina.

2. Às mulheres não se permitirá, nos estabelecimentos de ensino agrícola, trabalho, que do ponto de vista de saúde, não se lhes seja adequado.

3. Na execução de programas em todos os cursos, ter-se-á em mira a natureza da personalidade feminina e o papel da mulher na vida do lar. 4. nos dois cursos de formação do primeiro ciclo, incluir-se-á o ensino da economia rural doméstica (apud KOLLING et all, 2002, p. 60).

Observa-se que foi incorporado, na legislação específica, o papel da escola na constituição de identidades hierarquizadas a partir das relações de gênero. No campo da educação, pela influência dos Pioneiros, o decreto valoriza a descentralização sem (des)responsabilizar a União pelo atendimento escolar e gratuidade do ensino primário.

O texto também faz referência ao ensino na zona rural, diferenciando- se do proposto na constituição de 1934, com a transferência do ensino à iniciativa privada. Confere-se no inciso III, do art 168, a responsabilidade das empresas com a educação. “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais da solidariedade humana” (apud KOLLING et all, 2002, p. 61). Acrescenta-se como princípio balizador da legislação de ensino, no inciso IV, a obrigatoriedade das empresas industriais e comerciais ministrarem, em cooperação, a aprendizagem de seus trabalhadores menores, excluindo as empresas agrícolas da responsabilidade, o que denota o desinteresse do Estado pela educação rural.

Quanto à Constituição seguinte, de 1967, permanece a competência das empresas agrícolas e industriais no ensino primário gratuito de seus empregados e dos filhos destes. Ao mesmo tempo em que foi excluída somente das empresas agrícolas essa obrigatoriedade do ensino primário gratuito, estas normas permaneceram na legislação de 1969.

No texto da Carta de 1988, em pleno movimento de redemocratização do país, a educação passa a ser direito público e dever do Estado. Somente com a regulamentação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9394/96), a educação rural passa a ser reconhecida por sua diversidade sócio- cultural do campo, pelo direito à igualdade e diferença, possibilitando a proposta de construção das diretrizes operacionais para a educação rural. Estas foram orientadas por um projeto nacional, porém acrescentando-se características regionais:

Pode-se afirmar que proclama a educação como direito de todos e, dever do Estado, transformando-a em direito público subjetivo, independentemente dos cidadãos residirem nas áreas urbanas ou rurais. Deste modo, os princípios e preceitos constitucionais da educação abrangem todos os níveis e modalidades de ensino ministrados em qualquer parte do país. Assim sendo, apesar de não se referir direta e especificamente ao ensino rural no corpo da Carta, possibilitou às Constituições Estaduais e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB – o tratamento da educação rural no âmbito do direito à igualdade e do respeito às diferenças (apud KOLLING et all, 2002, p.63).

Há que se registrar, na abordagem dada pela maioria dos textos constitucionais, um tratamento periférico da educação escolar do campo. Decorrente de uma cultura estabelecida em que o trabalho agrícola era atrelado a técnicas arcaicas de produção, não exigia dos trabalhadores rurais nenhuma formação técnica, nem mesmo a alfabetização. Como se “agricultor” não fosse uma atividade profissional, mas apenas uma conseqüência da falta de opção para o trabalhador se especializar. Essa é uma perspectiva que satisfaz a interesses de grupos hegemônicos na sociedade e que contribuía para a ausência de uma proposta de educação escolar voltada aos interesses dos camponeses.

As alterações nesta tendência, conforme Gentili (1997), quando identificadas, decorrem da presença dos movimentos sociais do campo no cenário nacional. A contribuição de tais movimentos para a defesa dos direitos sociais e humanos e da luta pela transformação da educação constitui a busca da identidade social da classe trabalhadora e dos que contribuem para a sua organização.

Constatamos que as perspectivas da luta por uma Educação do Campo vêm construindo um novo paradigma da educação com o compromisso do desenvolvimento rural, pois segundo Arroyo (2004, p. 96), “uma terra sem gente dispensa qualquer política”. As experiências educativas, pressões e organizações dos movimentos sociais do campo, em que se destaca o MST, vêm afirmando a

espacialização e territorialização da luta pela terra pela reflexão de uma educação

de criação e recriação do campesinato. O que possibilita ao processo de construção do conhecimento um dos principais fatores de libertação dos oprimidos, em que “produzir seu espaço significa construir seu próprio pensamento” (FERNANDES, 2004, p. 60), desde que a escola seja pensada e organizada para o trabalho no campo, partindo da prática produtiva para o trabalho científico, aspectos não considerados pelo paradigma da educação rural.

Tendo conhecimento dessa trajetória histórica da Educação Rural nas leis brasileiras, constatamos que esse modelo educacional esteve sempre à disposição das classes dominantes para uma domesticação da consciência dos trabalhadores rurais. Como o Estado não manifestava interesse pela formação escolar dos povos do campo, os movimentos sociais do campo, apoiados por instituições, se organizaram para exigir a regulamentação de leis que assegurassem a educação como direito e a aplicação da mesma. O campo está se transformando com o aumento de assentamentos rurais, o que configura um novo perfil de necessidades e de reivindicações para as escolas rurais.

2.2. A Educação no Campo sob os princípios da Educação Popular: