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1.3. Os Sem Terra e a organização de um movimento social popular

1.3.1. Motivações eclesiais

As ações da igreja católica, desenvolvidas pela atuação do Movimento de Educação de Base (MEB) e que influenciaram a organização camponesa tiveram início com as campanhas de educação para a população rural adulta, compondo as bases da educação popular. Suas atividades foram implantadas a partir de 1961- 64 em nível nacional, por uma ação educativa orientada em torno de conhecimentos de alfabetização marcada pelo espiritualismo cristão (DAMASCENO, 1990).

A necessidade da prática educativa precisava ser realizada em coerência com a realidade dos trabalhadores rurais. Diante dessa reflexão, as ações procuravam identificar-se com as classes populares, enfatizando sua atuação para a politização do camponês e propondo um trabalho que fundamentalmente entenda por Educação de Base um processo de

autoconscientização das massas, voltada para uma valorização plena do

homem e uma consciência crítica da realidade. Isso implica que a educação parta das necessidades dos meios populares de libertação, integrados à sua cultura, em busca de uma ação transformadora. Simultaneamente, seria preciso propiciar todos os elementos necessários para capacitar cada homem e cada mulher para o desenvolvimento integral de suas comunidades e de todo o povo brasileiro (MEB Nacional, 1962 apud WANDERLEY, 1984, p. 109).

Encontramos nessa proposta as raízes de uma Educação Popular, entendendo popular como sendo produzida pelas classes populares e em função dos seus interesses, possibilitando um conhecimento da sua situação concreta para a criação de mecanismos em que possam participar do desenvolvimento social, político e econômico de suas comunidades. Em outras palavras, estamos nos referindo a uma construção da pedagogia do oprimido, definida por Freire (1987, p.32) como:

Aquela que tem de ser forjada com ele [oprimido] e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará.

Mas será que a igreja estava preparada para articular essa libertação do oprimido? Não consta que o trabalhador do campo tenha sido consultado sobre seus interesses e necessidades, muito menos de pensar nos seus problemas. Em acréscimo, outro problema se impunha. Freire (1987) nos convida à reflexão: “como os oprimidos, que “hospedam” o opressor em si, poderão participar da elaboração da pedagogia de sua libertação?” Para Freire a resposta está em o oprimido se descobrir “hospedeiro” do opressor, pois só assim poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora.

Na concepção de Gramsci, essa tomada de consciência não acontece espontaneamente. No caso do povo brasileiro, as contradições são enraizadas na formação e estão culturalmente vinculadas ao nosso inconsciente pelo nosso histórico de dominação e dependência. Daí que se pode destacar das idéias do pensador italiano a necessidade fundamental da educação nesse processo, notadamente a função educativa e política dos intelectuais orgânicos das classes trabalhadoras. A ação educativa desenvolve o processo de conscientização dos oprimidos, da transformação da consciência que eles acolheram sem crítica, desenvolvendo a percepção de uma nova realidade, em que podemos identificar no depoimento de um participante do curso Prolongado, residente no Assentamento Lênin Paz, em Caucaia-Ce: “Através do curso hoje tenho uma visão de mundo e aprendi a ter um posicionamento político. O processo do curso é isso, uma grande troca de experiência, que aprendemos o valor da disciplina e a se conhecer melhor.”

O jovem começa a se perceber diferente e essa descoberta vai acontecendo a partir dos processos educativos que se constituem num instrumento de passagem do estágio da fragmentação do senso comum, para o estágio histórico-crítico, mediante uma formação política para uma nova cultura que responda às condutas de vida dos trabalhadores rurais.

A ação educativa do MEB ficou comprometida com a mudança do regime político em 64, que passou a configurar a educação popular sob novos objetivos. A nova orientação punha em destaque a alfabetização e a catequese, o trabalho comunitário a partir da ajuda mútua e a redefinição de conteúdo e metodologias de trabalho:

Concluímos que ainda não está claro para nós o próprio sentido do MEB. Vivemos um Movimento muito novo e que, mesmo assim, se renova a cada mês. Basta lembrar que só agora, em março de 1965, concluímos que nosso trabalho é, finalmente, uma ação assessora de processos de Animação Popular (MEB/ Goiás, 1965, p. 200).

Esse trabalho de “Animação Popular”6 ganha maior dimensão principalmente após 1964, com a intervenção do MEB na sindicalização rural. Reconhecia-se uma necessidade de mudanças estruturais, pois a realidade apresentava que até 1960 o sindicalismo rural brasileiro limitava-se a projetos e algumas experiências. Conforme essa carência, o Concílio Vaticano II determinava em Plano de Emergência a tarefa da Igreja em expandir o programa de educação sindical no meio rural do Nordeste. Assim, o Movimento seria responsável por assumir a nova linha programática e para tanto foi criada uma assessoria especializada em sindicalização rural. Segundo Maria Damasceno (1990, p. 99):

A preocupação fundamental reside, então, em controlar a liderança no campesinato. A ênfase no sindicalismo rural por parte da Igreja Católica visa, sobretudo evitar que a pregação comunista atinja o camponês. Nessa luta ela opõe-se severamente as Ligas Camponesas, visto que estas defendiam uma proposta de revolução camponesa. (...) No caso do Ceará, provavelmente devido ao fato dos camponeses não estarem envolvidos em movimentos sociais, as ligas sequer foram fundadas (grifo nosso).

Nos bastidores de todas essas ações as intenções da ala conservadora da igreja, para quem a questão agrária era extremamente reacionária, pulsavam em ter plenos poderes sob as classes populares. Postura esta explícita na composição da pastoral designada para o debate das questões agrárias, sendo fruto da reunião de fazendeiros, padres e professores rurais, e não da união de camponeses e trabalhadores do campo. Segundo Martins (1986, p. 88), as intenções dessa pastoral se concentravam em desmobilizar os camponeses, pois:

A preocupação era com a agitação que estava chegando ao campo, com a possibilidade da Igreja perder os camponeses, como tinha perdido os operários. A questão era desproletarizar o operário dos campos, evitar o êxodo que levava os trabalhadores para a cidade e os tornava vulneráveis à agitação e ao aliciamento dos comunistas.

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Os trabalhos de Animação Popular compreendiam um processo de estruturação das comunidades, progressivamente assumido por seus próprios membros, a partir de seus elementos de liderança. A comunidade organizava-se como conseqüência da descoberta dos seus valores, recursos e suas necessidades, em busca da superação dos seus problemas e no sentido da afirmação de seus membros como sujeitos. (MEB/ Goiás, 1965, p.205).

A hegemonia da igreja diante da classe camponesa dependia da sua permanência no campo e conseqüentemente da sua doutrinação, restringindo a educação sindical em aulas sobre sindicalismo, desvirtuando o sentido político da ação educativa e introjetando no camponês uma indiferença ao sindicato. Por isso, a politização que preconizava a mudança de estrutura “é substituída pela cristianização numa perspectiva ‘evangelizadora’, e a animação popular é reduzida à auto-ajuda, nos moldes do solidarismo cristão” (DAMASCENO, 1990, p. 110).

Nesse sentido, Mainwaring (1994, p. 214) também comenta:

Agentes pastorais basistas7 não ajudam o povo a compreender os aspectos politicamente libertadores da sua fé. (...) Portanto, contribuem pouco para a superação das atitudes elitistas da sociedade e do próprio sentimento de inferioridade do povo.

Ao mesmo tempo em que contribui na organização da comunidade, criando espaços de oração, leitura e reflexão, as orientações da igreja desprezam o papel do educador que poderia contribuir na expansão dos horizontes políticos do povo, para além das necessidades imediatas. Como procede a linha da grupalização, entendida como o processo de auto-educação, de formação e organização dos grupos, para uma reflexão e desenvolvimento de atividades comunitárias. Contribuindo na organização das comunidades, permitindo aos trabalhadores o exercício de suas capacidades de liderança, expondo seus problemas e buscando soluções coletivas. “Serão educados para os meios evangélicos de transformação da sociedade (...), e jamais, o emprego da violência e a dialética da luta de classes” (DAMASCENO, 1990, p. 120).

Do MEB, nasceram as chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), cujo foco de trabalho, que estava se formando, tinha o caráter religioso da evangelização e defendia a libertação pela transformação da sociedade. Foi através dessas comunidades que as concepções pedagógicas de Makarenko chegam ao Brasil, de forma tímida pelo trabalho de organização das famílias em coletividade. Tendo em vista estar articulado à coletividade escolar, na perspectiva da educação socialista, autogestionária, que os envolvidos

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Sherer-Warren (1987, p 19) utiliza a expressão “basismo” como uma postura no interior de um movimento social que procura reduzir ao mínimo a necessidade de lideranças intelectuais, políticas ou outras para o movimento. (...) neste caso, procura-se uma participação, tanto quanto possível equivalente, de todos os membros do grupo, em todos os níveis de decisão e no estabelecimento dos princípios norteadores do movimento.

procuravam construir a prática de uma educação que promovesse a organização dos trabalhadores rurais para que participem plenamente dos processos decisórios (LUEDMANN, 2002).

A ação educativa das CEBs era orientada pela Teologia da Libertação, que revelava através de seus agentes uma postura política no discurso religioso que foi se consagrando como fenômeno social por conseguirem ultrapassar o autoritarismo militar, levando a ampliação das comunidades e a reunião de milhões de pessoas para discutir seus problemas a luz do evangelho. Essa foi a primeira experiência de pastorais sociais com uma visão libertadora, assumindo um grande trabalho de conscientização dos camponeses na intenção de incentivar a sua organização em cooperativas e sindicatos da classe trabalhadora. Acreditava-se que a reforma agrária deveria ser resultado da mobilização e luta dos próprios trabalhadores rurais.

Os teólogos da libertação, com a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975, voltam a construir o trabalho de conscientização dos camponeses, preocupados com a crescente violência no campo e as dificuldades do acesso à terra. Tendo no lema ”a terra é para quem nela trabalha” uma de suas principais propostas sobre a questão agrária, a CPT foi ganhando dimensões em nível nacional. Com tal postura, esse setor da igreja nega a visão capitalista de que a terra está a serviço do capital e (re)contextualiza a função social da terra, impulsionando as bases do MST (STÉDILE, 2004).

Para um dos principais dirigentes a nível nacional do MST, Gilmar Mauro (apud GOHN, 2000, p. 116), o movimento teria incorporado três aprendizagens com a igreja. “A primeira: trabalhar com a simbologia, a mística de trazer o futuro para o presente. A segunda: o vínculo com as bases, o povo propriamente dito. E a terceira: o espírito missionário” Essas características são perceptíveis principalmente no cotidiano dos cursos, que é onde se busca cultivar valores da militância para a vida comunitária. Outra dirigente do setor de formação destaca, em entrevista para esta pesquisa, que muitas coisas eles aprendem com a igreja, como: “o jeito de ser, de celebrar, o jeito de catequizar a mística, a gente traz pra vida política, são saberes que não estão desligados e que ajudam muito, né?E temos acompanhado que no Ceará as relações com a igreja libertadora tem contribuído para a atuação do MST na cidade, pois a igreja

tem feito doações de espaço para alojamento que também são utilizados nos cursos e eventos do movimento”.