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A efetivação do direito à saúde e o Sistema de Saúde Complementar

CAPÍTULO 4 A ATUAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NA SAÚDE

4.3. A efetivação do direito à saúde e o Sistema de Saúde Complementar

Uma vez analisada a validade das normas que regulam o setor de prestação da saúde complementar, cumpre-nos examinar como se dá sua efetividade no âmbi- to da prestação dos serviços de assistência médica pelas operadoras de planos de saúde, bem como, e antes disso, os termos como o Estado brasileiro atende aos seus deveres relativos ao direito constitucional à saúde.

Sobre a efetivação dos direitos fundamentais, assim afere Pietro Alarcón:

“A dizer verdade tem-se suscitado um interessante debate sobre se os direitos do homem são uma evidência ou um problema, pergunta que se dirige a auscultar qual a percepção que temos sobre a univer- salidade e efetividade desses direitos, ligados ao progresso moral e à

democracia política.”211

Em sendo o direito à saúde um direito fundamental social e um dever do Es- tado para a prestação universal e integral de serviços ligados à saúde pública, po- demos observar que o Estado brasileiro ainda está longe de cumprir a integralidade de sua obrigação constitucionalmente prevista, diante do já conhecido enfraqueci- mento dos serviços do Sistema Único de Saúde.

Podemos tomar conhecimento de diversos exemplos diariamente da simples leitura de jornais e noticiários de casos de pacientes que morrem em filas de hospi- tais públicos ou que precisam esperar meses até ver possibilitado seu agendamento de consulta ou de exame para suas enfermidades.

Não nos cabe aqui uma análise dramática de eventuais falhas na prestação integral e universal de serviços de saúde pelo Estado, uma vez que tal questão traria a debate a questão político-governamental e de políticas públicas específicas de ca- da governante, o que não faz parte do escopo do nosso trabalho.

Por outro lado, entendemos que a mesma questão da universalidade e inte- gralidade da prestação de saúde pelo Estado, tal como disposta na Constituição Fe- deral, merece nossa análise pontual, principalmente sob o prisma da obrigação des- ta prestação a todas as pessoas no território nacional e para todo e qualquer trata-

211 LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Ciência política, Estado e direito público: uma intro-

dução ao direito público da contemporaneidade. – São Paulo: Editora Verbatim, 2011, p. 274.

mento.

Sobre o tema, Cécile Fabre bem traz a formulação essencial de prestação dos serviços de saúde pública pelo Estado:

“In view of that scarcity undermines the universality of positive social rights implies that if, say, I need £1m worth of health care, I have a right that this be given to me, provided of course that the state has the money (the latter proviso is implied by the claim, correct in my

view, that ‘ought’ implies ‘can’), no matter what.”212

Tomando-se essa questão como base, citamos aqui um dos casos especial- mente emblemáticos acerca da integralidade e universalidade dos serviços de pres- tação de saúde pelo Estado brasileiro: o caso da Sofia Gonçalves de Lacerda, uma criança de cinco meses que, desde o nascimento, necessita de diversos tratamentos especiais para tratamento de sua doença, a Síndrome de Berdon, diagnosticada desde a gravidez de sua genitora.

Os pais da criança necessitaram ingressar com ação judicial para que o Mi- nistério da Justiça e o Sistema Único de Saúde fornecessem a transferência e cus- teio do seu tratamento do exterior, uma vez que não haveria o tratamento disponível no Brasil213. O resultado de tal julgamento pelo Tribunal Regional Federal demonstra a mais clara efetivação, por meio do Poder Judiciário, da prestação integral do direito à saúde pelo Estado.

Outra decisão que gerou repercussão no meio jurídico do âmbito de saúde diz respeito a uma decisão da Justiça Federal do Piauí por meio da qual foi determinado a um hospital regional que disponibilizasse imediatamente leito, por meio do Sistema Único de Saúde, para o tratamento de um paciente com tumor cerebral de fosse posterior e hemorragia intracraniana, autor da demanda judicial, que já havia tentado

212 “Uma vez que a escassez prejudica a universalidade dos direitos sociais positivos implica

que, se, por exemplo, eu preciso de £1 milhão [um milhão de libras] em importância para cuidados de saúde, eu tenho o direito de que este seja a mim fornecido, desde que, é claro, o Estado tenha este dinheiro (a última condição está implícita na afirmação, correta, na mi- nha opinião, de que "deveria" implica em "pode"), independentemente de qualquer coisa” (tradução livre). FABRE, Cécile. Social Rights Under the Constitution: Government and the Decent life.Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 31 (grifos da autora).

213 Conforme notícia veiculada no jornal Estado de São Paulo em 22 de junho de 2014. Dis-

ponível para consulta em http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,a-espera-de-um- milagre-para-sofia-imp-,1516159. Acesso em 01/07/2014.

tratamento diretamente pelo Sistema Único de Saúde, porém sem sucesso.

De acordo com a notícia veiculada pela Justiça Federal, a decisão afirma que:

“a proteção à saúde, com efeito, é de competência comum da União, Estados, do Distrito Federal e Municípios (CF/88, art. 23, II). Sendo o SUS composto por todos os entes federados, caracteriza-se, em fun- ção da solidariedade, a legitimidade de qualquer deles para figurar no pólo passivo da lide (STJ – AGA 858899/RS, DJ 30/08/2007 p.

219; Ministro JOSÉ DELGADO)”214.

Algumas outras decisões interessantes que nosso estudo, ao longo dos anos, concluiu diz respeito à efetiva atuação do Poder Judiciário na efetivação do direito à saúde e determinações incisivas de cumprimento da obrigação Estatal prevista na Constituição na prestação integral e universal do direito à saúde.

Alguns merecem destaque, como o julgamento cuja ementa transcrevemos abaixo, na qual o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul determinou o pagamento pelo Estado de custos de internação de paciente em clínica particular, diante da au- sência de disponibilidade de leitos pelo Sistema Único de Saúde.

Vejamos:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO. DESPESAS HOSPI- TALARES. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. DIREITO À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. Todos possuem direito à saúde e é dever do Estado, como determina o art. 196 da Constituição Federal. E art. 241 da Constituição Estadual. Descumprimento de ordem judi- cial, que determinou a disponibilização de leito de UTI pelo SUS para atendimento da paciente. Dever de indenizar as despesas decorren- tes do atendimento hospitalar da paciente em clínica não pertencente ao SUS. Nas condenações impostas à Fazenda Pública, até a vigên- cia da Lei 11.960/09, os juros moratórios são de 1% ao mês, por se tratar de verba alimentar (art. 3° DL 2.322/87). A partir de então, apli- ca-se o disposto no art. 1º-F da Lei 9.494/97. O termo inicial dos ju- ros moratórios é a data da citação válida (Súmula 204 do STJ). Ape- lação não provida.” (Apelação Cível nº. 70050054790, Décima Câ- mara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator Marce- lo Cezar Muller, Julgado em 13/12/2012)

Outro caso deveras interessante do ponto de vista da obrigação de pagamen- to pelo Estado de tratamentos quando indisponíveis os espaços públicos específicos

214 Conforme notícia veiculada no sítio eletrônico da Justiça Federal, disponível em

http://www.jf.jus.br/noticias/2014/fevereiro/jfpi-assegura-tratamento-a-paciente-atraves-do- sus-1. Acesso em 01/07/2014.

para tanto é o de uma ação do Rio Grande do Norte, no qual o juiz da Fazenda Pú- blica de Natal autorizou a internação de paciente em hospital privado local, bem co- mo determinou à direção do referido hospital que expusesse as contas do tratamen- to para que, ao final, fosse efetuado o bloqueio judicial da conta do Estado para pa- gamento do hospital215.

Esse posicionamento demonstra a importância do Poder Judiciário em casos de omissão do Estado em cumprir com sua obrigação de prestação de serviços de saúde de forma integral e universal.

Conforme bem salienta Gilmar Ferreira Mendes:

“A chamada “judicialização do direito à saúde” ganhou tamanha im-

portância teórica e prática que envolve os operadores do direito, os gestores públicos, os profissionais da área da saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Pode Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da cidadania; por outro, as deci- sões judiciais têm significado forte ponto de tensão perante os elabo- radores e executores das políticas públicas, que se veem compelidos

a garantir prestações de direitos sociais das mais diversas”216.

Passando para a questão específica do nosso trabalho, examinamos diversos casos em que, da mesma forma com que ocorre com o Poder Público, o Poder Judi- ciário também auxilia na efetiva proteção do direito à saúde por meio de decisões que emanam ao ente privado a obrigação de atenção às normas constitucionais au- torizadoras de atuação na saúde complementar.

O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, tem grande atuação nesse sen- tido, conforme julgados recentes transcritos abaixo:

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONTRATO. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA IN- DEVIDA. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. 1.- Na linha dos pre- cedentes desta Corte, a indevida negativa de cobertura de tratamen- to ou atendimento por parte de plano de saúde, caracteriza dano mo-

215 Conforme notícia veiculada no portal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. Dis-

ponível em www.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/2512-paciente-permanecera- internado-no-hc-as-custas-do-estado-do-rn. Acesso em 01/07/2014.

216 MENDES, Gilmar Ferreira. Estado de Direito e Jurisdição Constitucional. São Paulo: Sa-

ral indenizável. 2.- Agravo Regimental a que se nega provimento.” (AgRg no AREsp 511754 / SP, Relator Ministro Sidnei Beneti, j. 10/06/2014).

“PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO DOMICILIAR. RECUSA INDE- VIDA A COBERTURA. 1. O plano de saúde pode estabelecer as do- enças que terão cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado pa- ra a cura de cada uma. 2. É abusiva a cláusula contratual que exclui tratamento domiciliar quando essencial para garantir a saúde e, em algumas vezes, a vida do segurado. 3. Agravo regimental desprovi- do.” (AgRg no AREsp 368748 / SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, j. 10/06/2014).

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. EXCLUSÃO DE PROCEDIMENTO E MEDICAMENTO PRESCRITO PARA TRATAMENTO OFTALMOLÓGICO. “CLÁUSU- LA ABUSIVA. DANO MORAL. IMPROVIMENTO. 1.- A negativa de cobertura de procedimento e medicamento quando essencial para garantir a saúde do paciente gera a obrigação de indenizar o dano moral daí resultante. Sucumbente, arcará a Recorrida com as custas e honorários advocatícios fixados na Sentença. 2.- Agravo Regimen- tal improvido.” (AgRg no REsp 1431932 / SP, Relator Ministro Sidnei Beneti, j. 27/05/2014).

Tal atuação do Poder Judiciário é tão importante que o Conselho Nacional de Justiça, mediante a Recomendação nº. 43, de 20 de agosto de 2013, indicou aos Tribunais estaduais a criação de varas especializadas para julgamentos de questão de saúde.

Versa o artigo 1º da referida Recomendação nº. 43/2013:

“Art. 1º Fica recomendado aos Tribunais indicados nos incisos III e VII do art. 92 da Constituição Federal que:

I - promovam a especialização de Varas para processar e julgar ações que tenham por objeto o direito à saúde pública;

II - orientem as Varas competentes para priorizar o julgamento dos processos relativos à saúde suplementar.”

Vimos, com base em casos reais, que a efetivação do direito constitucional à saúde não é matéria de ampla concretização dependendo, em muitos casos, da atu- ação direta do Poder Judiciário para determinar que o Estado ou os entes privados, autorizados para atuar no âmbito da saúde complementar, cumpram com suas obri- gações.

“Contudo, atualmente, a saúde não tem apenas um aspecto individu- al que respeita apenas a pessoa. Não basta que sejam colocados à disposição dos indivíduos todos os meios para promoção, manuten- ção ou recuperação da saúde para que o Estado responda satisfato- riamente à obrigação de garantir a saúde do povo. (…) Tal atividade social é expressa em leis que a administração pública deve cumprir e

fazer cumprir”.217

Podemos concluir, portanto, que o Estado não apenas tem o dever de criação de normas que regulem os dispositivos constitucionais de amparo do direito à saúde e fiscalizem a atuação da iniciativa privada na esfera da saúde complementar, mas também se faz mister que o próprio Estado atue de forma condizente com suas obri- gações constitucionais de prestação de serviços de saúde pública, de forma integral e universal.

Ademais, os entes privados que atuem no âmbito da saúde complementar também devem atentar para os direitos de seus beneficiários no sentido de garantir- lhes atendimento e eficácia dos direitos previstos na Constituição Federal, sob pena de estarem infringindo sua responsabilidade de prestação de tais serviços comple- mentares à atividade pública na área sanitária.

217 DALLARI, Sueli Gandolfi. Uma nova disciplina: o direito sanitário. Revista de Saúde Pú-

CAPÍTULO 5. A LEI Nº. 9.656/1998 E ALGUNS DE SEUS PRINCIPAIS DISPOSI-