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Fornecimento universal e integral de tratamentos e medicamentos

CAPÍTULO 2 O DIREITO À SAÚDE: ALCANCE DOS ARTIGOS 6º E 196

2.4. Fornecimento universal e integral de tratamentos e medicamentos

Conforme visto a promoção, proteção e recuperação da saúde constituídas mediante o Sistema Único de Saúde, tal como previsto no artigo 198 da Constituição Federal, devem sê-lo de forma integral e universal, ou seja, tecnicamente aplicável para toda e qualquer pessoa em território nacional e para todo e qualquer tratamento e/ou medicamento necessário para referidas ações de saúde previstas no artigo 196. Cabe analisar a questão.

Os direitos sociais detêm força constitucional vinculativa, servindo de parâme- tro de controle judicial, indisponíveis ao legislador. Conforme salienta Gisele Nori Barros:

“Esses direitos podem ser classificados como direitos sociais relati-

vos ao trabalhador e à sua seguridade, que compreende a saúde, a previdência e a assistência social; à educação e à cultura, à moradia, à família, à criança adolescente e ao idoso e, por fim, os direitos so- ciais relativos ao meio ambiente. Apresentam força imanente , já que dispõem de vinculatividade normativo-constitucional. Servem de pa- râmetro de controle judicial e geram medidas concretas e determina- das, que não são de livre disponibilidade do legislador, por serem imposições legiferantes. Adotam-se, para tratar de direitos sociais, o

conceito e a classificação de José Afonso da Silva”170.

Vimos que a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamen- tos, prescritos no artigo 1º, III, a dignidade da pessoa humana.

Tal fundamento deve ser sempre buscado pelo Estado em qualquer circuns- tância, já que, como ensina Ingo Sarlet, a dignidade da pessoa humana, é valor que não pode ser ignorado pelo Poder Público,

“diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamen- tais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da vida humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser hu- mano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado –

passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor pró-

prio que identifica o ser humano como tal”171.

Entendemos que a dignidade da pessoa humana compreende, com efeito, to- dos os aspectos da vida humana enumerados pelo autor, bem como somados àque- la qualidade inerente dos seres humanos como tais, já que, em realidade, são esses aspectos e muitos tantos outros que lhe atribuem qualidade e valores próprios de ser humano, os quais somente serão alcançados se forem satisfeitos todos os aspectos da vida citados pelo autor.

Como visto, conforme o princípio da dignidade da pessoa humana, e em con- sonância com ele, a Constituição Federal traz, no artigo 3º, os objetivos da Repúbli- ca elencados em quatro incisos: construir uma sociedade livre, justa e solidária; ga- rantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O Poder Público tem o dever, ainda que em longo prazo, mas continuamente, de cumprir com tais objetivos, mediante políticas públicas condizentes e aplicação dos demais dispositivos constitucionais de acordo com eles.

Para nossa análise, tomaremos principalmente os objetivos acima elencados de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginali- zação e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de dis- criminação.

Mantendo-os em mente, bem como os direitos constitucionais à vida (artigo 5º) e à saúde (artigo 6º) e, ainda, os objetivos da própria Ordem Social (bem-estar e justiça sociais), como já analisado anteriormente, teremos resposta positiva à inda- gação inicial desta parte.

De efeito, tendo em vista que o Poder Público está obrigado a promover uma sociedade justa e solidária, reduzir as desigualdades sociais e atender à justiça e

171 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Cons-

tituição Federal de 1988. 5. ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007, página 40.

bem-estar sociais, sempre com o intuito de garantir a dignidade da pessoa humana, o fornecimento a todos, de medicamentos e tratamentos para toda e qualquer en- fermidade, é providência social plenamente aceita e fundamentada constitucional- mente.

No entanto, como é sabido, nenhum direito é absoluto, nem mesmo os direi- tos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Refere Celso Bastos acerca do princípio da dignidade da pessoa humana:

“Como consequência deste princípio, as normas constitucionais de-

vem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente imbrica- das. Não se poderá jamais tomar determinada norma isoladamente,

como suficiente em si mesma”172. (…)

“As Constituições, e sobretudo aquelas compromissórias, expres-

sam valores diversos e que, de um ponto de vista estritamente lógi- co, podem encerrar verdadeiras contradições. Mas, do ponto de vista jurídico, essas normas são passíveis de harmonização, desde que

utilizadas as técnicas próprias do Direito”173.

Ao interpretar sistematicamente referidos dispositivos da Constituição Fede- ral, podemos chegar à conclusão de que o fornecimento integral de tratamentos e medicamentos somente seria obrigatório para pessoas de baixa renda e não tenham como obtê-los sem prejuízo do seu sustento e/ou de sua família.

Ou seja, os termos “universal e igualitário” presentes no conceito do direito à saúde do artigo 196 da Constituição Federal devem ser interpretados de forma a garantir os objetivos da República Federativa do Brasil e os da Ordem Social, con- forme vimos acima.

Para tanto, mister se faz a ponderação entre o possível e o utópico, sem per- der de vista o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da Repú- blica.

Por atendimento universal entende-se qualquer pessoa no território nacio- nal, brasileira, estrangeira residente, estrangeira não-residente, pessoas apenas em trânsito e toda e qualquer outra pessoa que necessite atendimento à saúde e esteja

172 BASTOS, ob. cit., p. 103.

no Brasil.

Por integral refere-se todo e qualquer tratamento e/ou medicamento neces- sário para a promoção, proteção e recuperação da saúde das pessoas deve ser pro- vido pelo Poder Público.

Entendemos que tanto a universalidade quanto a integralidade devem ser in- terpretados, portanto, com vistas à redução das desigualdades objetivando a justiça e bem-estar sociais (conforme artigo 3º da Constituição de 1988).

Com isso, o acesso universal e integral, seguindo-se os ditames do princípio da igualdade, mas sem esvaziar o conteúdo da norma constitucional prevista no arti- go 196, o seria na medida da necessidade de cada indivíduo, ao menos progressi- vamente, de acordo com o avanço das políticas públicas de efetivação da norma programática que ela constitui.

Nesse caso, mantidas, efetivamente, a universalidade e integralidade do acesso a tratamentos e medicamentos, estar-se-ia reduzindo estes benefícios às pessoas que efetivamente deles necessitam e não possuem condições financeiras de provê-los.

De acordo com Karina Bozola Grou:

“em que pese todo o arcabouço jurídico descrito nos capítulos ante-

riores, não são mais tão raros os discursos que se apegam a obje- ções suscitadas especialmente quando o Poder Público é instado a fornecer medicamentos por meio de ações judiciais. Muitas dessas objeções aparecem frequentemente nas defesas judiciais dos entes administrativos. Elas decorrem do confronto natural e necessário do subsistema formado pelos princípios e regras atinentes à dignidade humana, ao direito à vida e à saúde com outros subsistemas norma- tivos, como o comando pela separação dos poderes ou normas que

cuidam do orçamento público”174.

Em vistas de preservar e garantir o direito à vida e o direito à saúde, imperio- so que sejam observados os aspectos da universalidade e integralidade no atendi- mento nos serviços de saúde.

174 GROU, Karina Bozoola. O acesso a medicamentos como direito humano fundamental.

Dissertação (mestrado) em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2008, p. 130.

Mas, considerando tais aspectos, nos parece extremamente difícil pensar na possibilidade de fornecimento integral e universal de todos e quaisquer tratamentos e medicamentos, com as formas de financiamento da seguridade social previstas na Constituição, que poderia reduzir o acesso às pessoas, principalmente aquelas que efetivamente dependem da prestação dos serviços públicos de saúde.

Esse é, portanto, o motivo e a razão da existência de normas programáticas na Constituição Federal, ou seja, objetivos a serem alcançados para garantir o ideal previsto constitucionalmente: o acesso integral e universal a tratamentos de saúde.

No entanto, enquanto não atingido esse objetivo programático previsto no dispositivo constitucional, entendemos que, em vista dos princípios e normas acima analisados, a melhor interpretação do disposto no artigo 196 da Constituição Federal deve ser a que garanta o acesso a tratamentos e medicamentos de modo a manter a proteção à saúde, atendendo às desigualdades sociais e promovendo o bem-estar e a justiça sociais, ou seja, garantindo o acesso universal e integral às pessoas que dela efetivamente necessitem.