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A Ordem Social e a Seguridade Social: o subsistema da saúde

CAPÍTULO 1 – OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIREITO FUNDAMENTAL À

1.3. A Ordem Social e a Seguridade Social: o subsistema da saúde

A Carta Magna de 1988 trouxe em seu Título VIII a Ordem Social, cujos dita- mes seguem o primado do trabalho e tem como objetivos o bem-estar e a justiça sociais, conforme artigo 193.

A Ordem Social, nos termos da Constituição, contempla (i) seguridade social (Capítulo II), (ii) educação, cultura e desporto (Capítulo III), (iii) ciência e tecnologia (Capítulo IV), (iv) comunicação social (Capítulo V), (v) meio ambiente (Capítulo VI), (vi) família, criança, adolescente e idoso (Capítulo VII), e (vii) índios (Capítulo VIII).

Adentrando no Capítulo II, de acordo com o artigo 194 da Constituição Fede- ral, o termo “seguridade social” diz respeito ao “conjunto integrado de ações de inici- ativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos rela- tivos à saúde, à previdência e à assistência social”.

A Constituição também traz as formas de financiamento da seguridade social, que se dará por toda a sociedade, de forma direta e indireta, sendo o financiamento do Poder Público efetuado mediante recursos oriundos do orçamento de cada esfera dos entes federados e da esfera privada por meio de contribuições sociais, contem- plando, por oportuno, os empregadores (sobre a folha de salários, a receita ou fatu- ramento e o lucro), os trabalhadores e segurados da previdência social, as receitas de concursos de prognósticos e os importadores de bens e serviços do exterior, nos termos do artigo 195 da Constituição Federal.

De acordo com o artigo 194, podemos dividir o sistema da seguridade social, em três subsistemas: da saúde, da previdência social e da assistência social.

Ensina Jediael Galvão Miranda:

“A seguridade social é sistema que tem tríplice atuação, abrangendo

as áreas de previdência social, assistência social e saúde.

A previdência social (art. 201 da CF), sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, concebida de acordo com critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, tem por finalidade cobrir eventos como doenças, invalidez, morte, idade avançada, proteção à maternidade, reclusão e desemprego.

A assistência social (art. 203 da CF) é mecanismo de integração e justiça sociais, destinada à prestação de serviços e concessão de

benefícios aos desvalidos, àqueles considerados hipossuficientes, independentemente de contribuição à seguridade social.

A saúde (art. 196 da CF), direito de todos, é concebida como política pública de promoção e execução de medidas de benefícios que vi- sem à redução do risco de doenças e de outros agravos, garantindo- se o acesso a tratamento que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos, garantindo-se o acesso a tratamento para a recu-

peração da higidez física e mental do indivíduo”65.

Tomando-se por base a referida disposição constitucional, podemos afirmar que a previdência social, obrigatória, visa a preservar, financeiramente, a dignidade do indivíduo acometido de alguma situação excepcional que o inviabiliza, ou reduz, sua capacidade de trabalho, ainda que por um período determinado de tempo.

A previdência social traz como situações merecedoras desse auxílio pecuniá- rio, nos termos do artigo 201 da Constituição Federal, (i) “cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada”, (ii) “proteção à maternidade, especial- mente à gestante”, (iii) “ proteção do trabalhador em situação de desemprego invo- luntário”, (iv) “salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda” e (v) “pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes”, em valor mensal mínimo de um salário mínimo.

A assistência social, diferentemente da previdência social, é prestada aos seus destinatários sem qualquer contraprestação do beneficiário. Ou seja, contrari- amente à previdência social, que depende de filiação obrigatória e contribuições pa- ra a geração dos benefícios, a assistência social independe de qualquer filiação, adesão ou contribuições do beneficiário, tornando-se um imperioso sistema de equa- lização social.

De acordo com o artigo 203 da Constituição Federal, são objetivos da assis- tência social: (i) “a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice”, (ii) “o amparo às crianças e adolescentes carentes”, (iii) “a promoção da integração ao mercado de trabalho”, (iv) “a habilitação das pessoas portadoras de deficiência e promoção de sua integração à vida comunitária” e (v) “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la pro-

vida por sua família”.

O subsistema da saúde traz o desmembramento do direito social à saúde, previsto no artigo 6º, versando o artigo 196 que o direito à saúde é direito de todos e dever do Estado, com acesso obrigatoriamente universal e integral.

De acordo com a classificação de José Afonso da Silva, as normas constituci- onais dividem-se em três categorias (normas constitucionais de eficácia plena; nor- mas constitucionais de eficácia contida e normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida66) e nessa conformidade podemos analisar as previsões constitucionais que dispõem sobre a saúde.

As primeiras são as que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem todos os seus efeitos, com força normativa suficiente, incidindo direta e imediata- mente sobre a matéria. As segundas também são normas que incidem imediatamen- te e produzem efeitos, mas acarretam em meios ou instrumentos que permitem man- ter sua eficácia contida até determinados limites. As terceiras não produzem de ime- diato, com sua entrada em vigor, todos os efeitos almejados, porque a Constituição não estabeleceu aplicabilidade suficiente, delegando essa tarefa ao legislador ordi- nário67.

Assim, na nomenclatura do citado autor, a classificação abrange (i) normas de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral; (ii) normas de eficácia con- tida e aplicabilidade direta, imediata mas não integral; e (iii) normas de eficácia limi- tada e aplicabilidade indireta, mediata e reduzida.

O autor ainda divide as normas de eficácia limitada em dois grupos: (i) decla- ratórias de princípio programático (constituem programas de ação); (ii) declaratórias de princípios institutivos ou organizativos (se inserem na parte organizativa da Cons- tituição). Na classificação de normas de eficácia limitada, declaratórias de princípio programático, se enquadram, ao nosso ver, as disposições constitucionais da saúde, dentro da Seguridade Social.

66 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. - São Paulo:

Malheiros, 2012, p. 82.

No entanto, como visto, cumpre verificar primeiramente que a Constituição Federal dispõe como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de outras formas de discriminação, de acordo com o artigo 3º.

Portanto, podemos concluir que o artigo 3º da Constituição Federal é uma norma constitucional de eficácia limitada ou reduzida, cujo conteúdo é programático, ou seja, constitui um programa de ação do Estado após a entrada em vigor da Cons- tituição.

Assim, inclusive, é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, em julgado recente, no qual afirma o entendimento de que “o Poder Público, em face dessa re- lação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamen- tária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental”68.

O artigo 196, que versa sobre o direito à saúde e tem relação imediata com o artigo 6º da Constituição, também poderia ser tido como uma norma programática, tendo em vista que garante o atendimento integral e universal às pessoas no Brasil.

Nos dizeres de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Britto, “se há princí- pios programáticos na Constituição brasileira, nenhum deles bate aqueles expostos no art. 196”69.

Entretanto, ainda que seja uma norma programática, contém um direito subje- tivo, na medida em que permite que a pessoa ingresse com ação junto ao Poder Ju- diciário para exigir do Estado a adoção ou a abstenção de medidas concretas em favor da sua saúde. Por outro lado, também assume contornos de direito social, por

68 Vide ANEXO A - ARE 639337 AgR / SP – São Paulo, Relator Min. Celso de Mello, Julga-

mento em 23/08/2011.

69BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do

refletir pretensões coletivas perante o Estado, como a construção de hospitais, atua- lização de medicamentos, etc.

O direito à saúde, enquanto responsabilidade social, constitui um dever de agir do Estado, ou seja, uma obrigação positiva a ser desempenhada, conjuntamen- te, pelo indivíduo ou família, pela comunidade e pelo Estado para a proteção e a promoção da saúde, de forma como um programa social a ser seguido, nos termos da Constituição.

Com relação à aplicabilidade das normas constitucionais relativas à saúde, Giselle Nori Barros afirma que elas são de aplicabilidade imediata e, tais como os demais direitos sociais, um direito prestacional do Estado.

“Os direitos fundamentais que englobam os direitos sociais têm, en-

tre eles, o direito à saúde como direito prestacional e de aplicabilida- de imediata. Este tipo de aplicabilidade decorre da necessidade de evitar a denominada letra morta, ou seja, sem eficácia. Foi assim que o Brasil adotou o axioma de que a Constituição é obra do poder constituinte originário, expressão da soberania de um povo, achando- se acima dos poderes constitucionais, como é o caso do Poder Le- gislativo, não podendo ficar sob a dependência absoluta de uma in- termediação legislativa para produzir efeitos. Tal circunstância está expressa no §1.º do art, 5.º da Constituição Federal.

Para assegurar a existência e a eficácia social desses direitos, sejam eles direitos fundamentais individuais, sociais, coletivos e difusos, a Constituição Federal estabelece certas garantias, mediante instru- mentos que conferem aos titulares desses direitos meios de aplicabi- lidade, inviolabilidade e o seu efetivo exercício. Na hipótese de ga- rantias constitucionais individuais têm-se: o princípio da legalidade; o princípio da proteção judiciária; a estabilidade dos direitos subjetivos adquiridos, perfeitos e julgados; o direito à segurança; os remédios constitucionais; as garantias dos direitos coletivos; a garantia dos di- reitos sociais; a garantia dos direitos políticos.

Assegurar a satisfação das condições de uma vida digna implica re- conhecer o princípio da dignidade da pessoa humana como valor ab-

soluto do ser humano.70”

Por outro lado, tal como entendem Pinto Ferreira71 e Manoel Gonçalves Fer-

70 BARROS, ob. cit., pp. 21/22.

71 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira Vol. 1. – São Paulo: Editora Sa-

reira Filho72 que o direito à saúde seria um direito constitucional inócuo, pois não

cabe a determinada pessoa uma ação para exigir do Estado o cumprimento de tal direito. Para referidos autores, o direito à saúde não se enquadra em norma progra- mática, pois seria um fim impossível de ser alcançado, entendimento este que, inclu- sive, já foi adotado pela Corte Constitucional brasileira, em julgado não muito distan- te73.

No entanto, ousando discordar dos referidos autores, entendemos que o direi- to à saúde constitui norma programática, sendo dever de o Estado executar progra- mas de governo no intuito de propiciar a todos o acesso e garantia de saúde, uma vez que não há norma constitucional sem eficácia ou inócua74.

Desse modo, “independentemente do caráter programático ou não das nor- mas expressas nos artigos 196 e 197 da Carta Magna, não há como o Estado se recusar a oferecer tratamento médico adequado à pessoa doente e necessitada, de modo a garantir-lhe condições mínimas de sobrevivência”75, cumprindo, portanto, com um dos fundamentos da República, qual seja, a dignidade da pessoa humana.

72 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988

Vol. 1. – São Paulo: Editora Saraiva, 1990, p. 89.

73 Vide ANEXO B. RE 393175 AgR/RS – Rio Grande do Sul, Relator Min. Celso de Mello,

julgado em 12/12/2006.

74 Vide Celso Bastos, com base em Jorge Miranda, citando um dos princípios da interpreta-

ção constitucional: “Na Constituição não devem existir normas tidas por não jurídicas. Todas têm de produzir algum efeito”. (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 63).

75 VIEIRA, Walderês Martins. A atuação do Estado na implantação do direito à saúde. Dis-

sertação (mestrado) em Filosofia do Direito e do Estado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2006, p. 78.