diferentes da família nuclear heterossexual monogâmica Nesse sentido, ao heterossexismo é
2.1 A ELEIÇÃO DE LULA E O COMBATE À HOMOFOBIA
Em outubro de 2002, reuni-me com uma “pequena multidão” na esquina das avenidas Afonso Pena e Getúlio Vargas, em Belo Horizonte, capital mineira. Lá celebrávamos a “eleição de Lula” que, naquele momento de juventude, me transmitia uma sensação de “revolução socialista”. À época, tive acesso, por intermédio do acervo pessoal de uma amiga, a uma frase de Lula que me marcou. Publicada na edição 1106 da revista Veja, de 22 de novembro de 1989 (FIG. 1), o trecho que li da reportagem dizia: “em 1917, na União Soviética, os trabalhadores chegaram ao poder através de uma revolução armada, [afirma o candidato do PT]. Em 1989, os trabalhadores chegarão ao poder, no Brasil, através de uma revolução pelo voto” [grifo meu]. A “revolução pelo voto” proclamada por Lula ainda em 1989 marcou a minha posição política na militância LGBTTT ao me fazer refletir sobre a possibilidade de transformação social a partir de um “novo” governo.
FIGURA 1: Capa da revista Veja, de 22 de novembro de 1989, em que Lula afirmou que iria fazer a “revolução pelo voto”.
Muitas águas correram desde a fatídica eleição de 1989 até que Lula fosse diplomado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como vencedor das eleições de 2002, ocasião em que disse, “se havia alguém no Brasil que duvidasse que um torneiro mecânico, saído de uma fábrica, chegasse à Presidência da República, 2002 provou exatamente o contrário. [...] E eu, que durante tantas vezes fui acusado de não ter um diploma superior, ganho o meu primeiro diploma, o diploma de presidente da república” (LEPIANI, 2011).
Lula permaneceu no poder por duas gestões. Uma primeira entre 2003 e 2006 e uma segunda entre 2007 e 2010. Lula foi sucedido por um governo “de continuidade”, chefiado pela sua então ministra de Minas e Energia e posteriormente chefe da Casa Civil Dilma Rousseff, eleita em 2010.24
Por ter sido um governo recente, poucas são as análises teóricas sobre este período presidencial. Uma das autoras que se debruçou sobre o “primeiro governo Lula”, particularmente sobre as políticas de transferência de renda, foi Maria Hermínia Tavares de Almeida (2004), que apontou para uma polarização do governo Lula em dois grandes eixos políticos, o “núcleo duro” (que chamo também de “núcleo econômico”) e o “núcleo social”. O “primeiro e segundo governos Lula”, particularmente no que tange à política educacional, foram analisados por Eunice Durham (2010), para quem o primeiro ano do governo Lula pode ser visto como um “tumulto”, devido à transição entre o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula e as consequentes trocas ministeriais.
Neste tópico, reflito exclusivamente sobre as políticas do chamado “núcleo social”, buscando entender a eleição de Lula como uma novidade no que tange ao Estado brasileiro e, também, como o governo tem sido interpretado com base na categoria “avanço”. Ao longo do capítulo refletirei sobre como alguns aspectos das agendas da política social do governo Lula foram sendo produzidos como condições de possibilidade de uma agenda anti-homofobia na educação durante as duas gestões.
A dicotomia entre “núcleo econômico” e “núcleo social” foi um dos eixos que estruturou o programa apresentado à população brasileira durante as eleições de 2002 intitulado “Carta ao Povo Brasileiro” (ANEXO B), quando Lula, autor do documento, afirma ser prioridade de seu governo na gerência da nação brasileira atuar para o “desenvolvimento econômico” (eixo que passou a orientar o “núcleo
econômico”) e para a “justiça social” (eixo que passou a orientar o “núcleo social”). Os “progressos” “econômico e social”, neste programa, fizeram com que Lula prometesse um governo segundo um binarismo entre “temas” de diferentes ordens (mas em diálogo). Essa promessa resultou em uma divisão rígida das agências governamentais que se materializou em diferentes redes de relações, reciprocidade e aliança.
O “núcleo econômico” foi gerenciado principalmente por elites políticas já consolidadas nos poderes Executivo e Legislativo. Exemplo disso foi a direção do Banco Central ter sido dada a um parlamentar do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Henrique Meirelles.25 O “núcleo social” foi gerenciado por elites políticas da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais. Os exemplos (em diferentes tempos do governo) são Nilcéia Freire, pesquisadora e ex-reitora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que assumiu a recém-criada Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPMulheres), e Matilde Ribeiro, assistente social e militante feminista e negra, que assumiu a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Foi o “núcleo social” que aglutinou as políticas de “equidade” (ALMEIDA, 2004), entre elas a agenda anti-homofobia.
O governo Lula pode ser entendido como “novidade”, ou seja, como um “tipo” de governo diferente dos anteriores. Pela análise que faz Maria Hermínia Tavares de Almeida (2004) das políticas sociais do governo Lula em comparação com governos anteriores, vemos que o governo Lula possibilitou grandes mudanças no cenário político brasileiro. Essas mudanças ocorreram tanto porque a eleição do Partido dos Trabalhadores (PT) representou politicamente a primeira grande troca de elites dirigentes no país desde o final da ditadura militar; como pelo fato de que, desde sua criação em 1980, o PT sempre havia estado na oposição e, ao entrar no governo, representou uma grande mudança nos quadros de dirigentes de agências governamentais. Assim, para a autora, esta seria uma das “novidades” do governo Lula, pois se trata da entrada de um “novo” grupo social no governo federal. Esse “novo” grupo é composto majoritariamente de quadros políticos com histórico e/ou pertencimento à esquerda, aos “novos movimentos sociais”, aos
25 Outros exemp los de participação de elites políticas no “núcleo econômico” da primeira
composição dos ministérios de Lula, ainda durante o período de transição em 2002, são Anderson Adauto do Partido Liberal (PL) co mo Ministro dos Transport es; Roberto Amaral, então coordenador da campanha presidencial de Anthony Garotinho como Ministro de Ciência e Tecnologia; e Roberto Rodrigues, antigo defensor dos transgênicos e do agrobusiness como Ministro da Agricultura (Fonte: <http://noticias.terra.com.br/transicao/interna/0,6414,OI73982- EI1006,00.html>).
“movimentos operários”, aos “movimentos libertários” (especialmente de luta contra a ditadura militar) e aos “movimentos de Igreja” (especialmente as pastorais e a corrente católica teologia da libertação). Além disso, o novo governo tem uma constante evocação, retórica, de uma vontade de “transformação social” no Brasil.
No que diz respeito às agendas sociais, e particularmente à agenda anti-homofobia, o governo Lula não assumiu o poder em 2003 com um programa “claro”, sendo que essa agenda foi se produzindo ao longo do processo. Destaque-se que não constavam propostas concretas de uma agenda social na “Carta ao Povo Brasileiro” de Lula. A campanha política do PT para as eleições presidenciais de 2002 esteve centrada no combate à pobreza e à fome, na recomposição da previdência pública e no Programa Primeiro Emprego (ALMEIDA, 2004). Não havia na campanha uma clara explicitação de outras políticas sociais. Em 2003, primeiro ano de governo, foram privilegiadas as políticas voltadas para os mais pobres, mas o Programa Primeiro Emprego não alcançou sucesso em sua implementação (ALMEIDA, 2004). Em sua análise, Maria Hermínia Tavares de Almeida (2004) afirma também que o governo Lula atuou no sentido de invisibilizar as políticas sociais de governos anteriores, conferindo um discurso de originalidade às políticas de transferência de renda que já vinham sendo implementadas na gestão presidencial anterior, de FHC. Corroborando essa ideia de continuidade das agendas sociais do governo FHC, mas com especificidades importantes, no contexto das políticas afirmativas para negras e negros no campo da Educação, está Márcia Lima, que afirma:
considera-se que esse cenário de mudanças é fruto de um longo processo político que antecede ao atual governo [Lula]; não é, portanto, agenda de um governo e sim uma agenda construída e demandada ao Estado brasileiro ao longo de pelo menos duas décadas. Entretanto, há importantes inflexões políticas e discursivas na forma como essas políticas foram construídas e estão sendo implantadas como características de atuação do governo Lula, em especial no que diz respeito à relação com os movimentos sociais (2010, p. 78).
As políticas voltadas aos mais pobres representavam, no início do governo Lula, o “núcleo duro da política social” (ALMEIDA, 2004) e somente a partir do segundo ano do governo Lula foram se construindo
e consolidando outras agendas sociais (DURHAM, 2010) nas quais a questão da homofobia, mas também do racismo e do sexismo, surgirá.
No que diz respeito à Educação, pouco densa foi a proposta do PT na “Carta ao Povo Brasileiro”. Ao longo das décadas de 1990 e início de 2000, particularmente nos anos do governo FHC, o Brasil ampliou o acesso à educação (ALMEIDA, 2004; DURHAM, 2010). A pauta política dos primeiros anos do governo Lula predizia a necessidade de garantia de qualidade da educação, uma vez que o binômio “acesso e qualidade” é tido como estruturante das agendas educacionais brasileiras.26
Eunice Durham (2010), ao analisar comparativamente as políticas educacionais dos governos FHC e Lula (até 2008), conclui que a garantia de qualidade na educação percorreu todo o período de abertura política do país como sendo um problema central. Segundo a autora, o “problema da qualidade” vinha sendo lançado na arena educacional desde os anos 1980 e até o período do governo FHC havia uma ausência de “indicadores” de qualidade de ensino, o que fez com que o problema permanecesse em posição escorregadia, no sentido de impossibilidade de comparação e ausência de dados plausíveis. Para Durham, “a questão da qualidade de ensino, o maior problema do sistema educacional brasileiro hoje, foi a área na qual o governo Fernando Henrique encontrou suas maiores dificuldades” (2010, p. 162). É, portanto, após o “tumulto” do primeiro ano de governo, que começa a se desenhar e a se estruturar uma política educacional mais concreta do governo Lula, sempre em diálogo com as políticas e demandas sociais de governos e períodos anteriores.
Tendo suas ações restringidas em 2003 pelo orçamento aprovado no governo anterior,27 o governo Lula começa a se inventar como um novo governo federal a partir de 2004, seu segundo ano, no qual já tem um orçamento votado de acordo com suas prioridades políticas. A centralidade do ano de 2004 como o início do governo Lula da forma como o concebemos está em diálogo com a possibilidade de exercício financeiro, como veremos no Capítulo 3, “Políticas Públicas” (dedicado exclusivamente a esta questão), mas também com uma maior apropriação, aprendizado e tranquilidade dessa nova “elite política” (falando do “núcleo social”) na gerência do Estado brasileiro, que veremos a partir de agora.
26 Essa temática será melhor trabalhada adiante.
27 Vide o Capítulo 3, “Políticas Públicas”, para entender a dinâmica dos recursos públicos e do
2.1.1 O governo Lula e o combate à homofobia
O governo Lula é interpretado tanto pela literatura (COLLING, 2007; VIANNA; DINIZ, 2008; DANILIAUSKAS, 2010; LIONÇO; DINIZ, 2009; MOEHLECKE, 2009; ROSSI, 2010; entre outros) como pelos movimentos LGBTTT e feministas28 como um “avanço” no que tange às agendas anti-homofobia e de direitos sexuais e reprodutivos. O principal argumento para esse julgamento tem sido a contribuição desse governo na “transversalidade” das pautas anti-homofobia e de direitos sexuais e reprodutivos em várias agências de governo (BANDEIRA, 2005) e não em áreas de governança “tradicionalmente” ligadas às temáticas (como, por exemplo, às áreas de saúde, segurança pública e direitos humanos).
Esse “avanço” do governo Lula no combate à homofobia tem sido proclamado no Brasil e no mundo. Em carta enviada ao presidente Lula em 16 de junho de 2010 (ANEXO B) em razão do decreto que instituiu o dia 17 de maio como Dia Nacional de Combate à Homofobia, Louis George-Tin, pesquisador e ativista francês, organizador do Dicionário de Homofobia (TIN, 2009), obra de referência para o campo de Estudos Gays e Lésbicos e também para a militância LGBTTT, afirmou:
como presidente do IDAHO Committe [sic], a NGO [sic] que coordena mundialmente as atividades do Dia Internacional, tenho a satisfação e a honra de agradecer a Vossa Excelência. É um passo adiante não somente para gays e lésbicos [sic] no Brasil, como também para os direitos humanos de modo geral no mundo inteiro.
Esta carta ilustra como são lineares as interpretações sobre o governo Lula no sentido de que se “caminha”,29 possivelmente, em
direção à supressão total da homofobia no Brasil e no mundo.
A formulação que interpreta o governo Lula como “avanço” parece indicar certo movimento dos campos das Ciências Humanas e Sociais que analisam as políticas e movimentos sociais durante o
28 Segundo afirmou a ativista lésbica Cris Simões no site da ABGLT: “outra conquista [do
governo Lula] é a equidade de gênero” (Disponível em: <http://www.abglt.org.br/port/basecoluna.php?cod=65>).
29 Essa lógica de “caminhada”, expressa pela categoria “passo adiante”, tem perpassado boa
parte das análises sobre as políticas sociais e o combate à homo fobia durante o período do governo Lula.
governo Lula (FACCHINI; FRANÇA, 2009) apesar de analistas de outras agendas apontarem o governo Lula como intensificador de perspectivas essencialistas, como é o caso da consolidação da racialização e institucionalização da diferença nas políticas de cotas proclamadas por Yvonne Maggie (2008). Analisar o papel do “avanço” ou do “retrocesso” no campo é um dos pontos que têm rendimento teórico e pertinência política, uma vez que se mostra presente em diversas análises acadêmicas e lógicas nativas que “explicam” o período estudado. É fato que nunca houve, na história do Brasil, uma agenda anti-homofobia transversal executada em tantas áreas de governança.30 Entretanto, e apesar disso, qualificar o governo Lula como “avanço” pode, nas análises deste momento histórico, obscurecer outros elementos, e. g., o papel dos movimentos sociais como “agentes ativos” de elaboração e implementação de políticas públicas.
Durante o primeiro governo Lula (2003-2006), houve grande participação das ONGs na agenda anti-homofobia na educação. Já no segundo governo Lula (2007-2010), diminuíram-se as parcerias com ONGs e intensificaram-se as parcerias com universidades. O combate à homofobia se estruturou no Ministério da Educação, desta forma, pela parceria entre o governo Lula e setores da sociedade civil expertos no assunto das homossexualidades e combate à homofobia.
A eleição de Lula em 2002, tomando os elementos acima, provocou uma mudança significativa nas agendas sociais executadas pelo Estado brasileiro. Peter Fry et al. apontam que “com a eleição de Luis Inácio Lula da Silva houve a ampliação das políticas destinadas à ‘população negra’” (2007, p. 504), o que mostra que, para além da agenda anti-homofobia, outras pautas da “política social” foram também alargadas no Brasil. A “eleição de Lula” foi, portanto, uma das condições de possibilidade desse alargamento da política social brasileira e da implementação de uma agenda anti-homofobia na educação, em diálogo com a sociedade civil e exigindo uma efetiva “participação popular”.
30 A categoria governamental que dá sentido a ações implementadas em várias agências
governamentais a um só tempo, co mo é o caso das políticas anti-homofobia, é “enfrentamento”. Quando lia a categoria “enfrentamento” nos documentos oficiais, fui percebendo que dizia respeito a políticas que abordavam pautas a serem tratadas em mais de um ministério e/ou secretaria, de preferência em vários (FERNANDES; FERNANDES, 2007). Um exemp lo é a agenda anti-homofobia, que se expressa no Ministério da Educação, mas também nos Ministérios da Justiça, da Cultura, do Trabalho, nas Secretarias de Direitos Hu manos e Políticas para as Mulheres e em mu itas outras agências.
2.2 LANÇAMENTO DO PROGRAMA FEDERAL BRASIL SEM