por exemp lo, é u ma categoria presente na visão de mundo de ativistas, acadêmicos e gestores,
CAPÍTULO 3 – POLÍTICAS PÚBLICAS
3.1 A NOÇÃO DE TRANSVERSALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Introduzo neste tópico o capítulo nomeado como “Políticas Públicas”. Nele buscarei refletir sobre a agenda anti-homofobia com base na gerência do uso dos recursos públicos destinados a essas políticas, bem como nos princípios governamentais que guiam essa agenda. O uso desses recursos é uma das principais formas de entendermos materialmente o compromisso do governo Lula com o combate à homofobia na escola. A escola, enquanto instituição, passou a ser nomeada como lugar de produção e reprodução de práticas homofóbicas no final dos anos 1990/início dos anos 2000 no Brasil. Quando um problema social (como a homofobia) se torna central nas reflexões teóricas e nas pautas políticas, passa a ser, dependendo da visão de “papel de Estado” que possui o governo, alvo de políticas públicas, visando a gerenciá-lo e dominá-lo. É a forma de gerenciamento e dominação de campos teórico-políticos e as ações/omissões do governo sobre o problema (princípios de políticas públicas) que nos possibilita perceber qual visão possui um governo sobre seu papel perante a sociedade e também perante determinados problemas/temáticas. Este conjunto é o que entendo como “papel de Estado”.
Como vimos no capítulo anterior, a agenda anti-homofobia foi possibilitada por três fatores que se articularam na garantia de suas condições de existência: (i) a criação do programa federal “Brasil sem Homofobia” que pode ser entendido como uma forma de lei/conjunto de regras; (ii) a produção maciça de indicadores de violência homofóbica; e (iii) a criação de uma agência governamental específica (a SECAD), responsável pelo conjunto de políticas de diversidade no MEC, no qual se inclui a agenda anti-homofobia. Há, portanto, uma lógica inerente e comum aos processos de criação de políticas sociais que envolve a produção de indicadores, o lançamento de programas/ações e a definição de unidades governamentais responsáveis pela execução orçamentária (e, logo, pela política pública em questão). Como a Lei sugeriu a transformação do quadro homofóbico da sociedade, apresentando um determinado conjunto de “ações”, e a Matemática/Estatística indicou a veracidade/existência concreta do problema “homofobia”, esquadrinhando-o o máximo possível (o que o senso comum chama de “critérios científicos”), entraram em ação no governo “Grupos Gestores”
responsáveis pelas políticas que iniciaram um processo de “invenção” de ações/atividades que buscaram alterar o “quadro” do problema diagnosticado, com dotação orçamentária própria e participação da sociedade civil (fundamentalmente ONGs e IES). Com base nisso, proponho uma equação que busca entender as condições de possibilidade dessa política social:
FIGURA 5: Equação de políticas sociais.
A equação acima sintetiza o que entendo como sendo as condições de existência de uma política social: um programa que definiu as “metas” de governança no combate à homofobia em conjunção com a produção de conhecimentos sobre homofobia e a responsabilização de uma unidade do governo federal na implementação das ações. Essa é a síntese, nesta tese, da dinâmica de execução da agenda anti-homofobia na educação.
O Estado de Lula pode ser entendido, sob a ótica da agenda anti- homofobia no MEC, como aquele que faz uma leitura “ativista/militante” (e, portanto, não formalista) do Orçamento da União, posta a cabo pela “transversalidade” dos “eixos de opressão” (raça, gênero e orientação sexual) nas políticas públicas do seu “núcleo social”. Segundo Lourdes Bandeira,
por transversalidade de gênero nas políticas públicas entende-se a idéia de elaborar uma matriz que permita orientar uma nova visão de competências (políticas, institucionais e administrativas) e uma responsabilização dos agentes públicos em relação à superação das assimetrias de gênero, nas e entre as distintas esferas do governo. Esta transversalidade garantiria uma ação integrada e sustentável entre as diversas instâncias governamentais e, conseqüentemente, o aumento da eficácia das
políticas públicas, assegurando uma
governabilidade mais democrática e inclusiva em relação às mulheres (2005, p. 5).
O conceito de “transversalidade”, portanto, remete ao movimento feminista que reivindicou, em conferências internacionais (México – 1975 e Beijing – 1995), que o “recorte” de gênero perpassasse todas as políticas dos Estados-nacionais e não apenas fossem implementadas “políticas específicas” (BANDEIRA, 2005).
A principal base teórica da “transversalidade de gênero” nas políticas públicas está no “feminismo de cor” norte-americano, cuja obra fundadora, This Bridge Called My Back: writings by radical feminists of color, organizado por Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa (1983), apontava os conflitos do feminismo assentados tanto (1) no privilegiamento de uma ou outra “forma de opressão” como (2) na incapacidade do “feminismo hegemônico” em perceber as nuanças da “opressão”. Segundo o feminismo de cor, seria necessário perceber que (1) as “expressões da opressão” estão “transversalizadas” e que (2) há uma “família queer”, conceito do campo do feminismo de cor para definir o conjunto de “oprimidos” como partilhando “experiências” similares (MORAGA;; ANZALDÚA, 1983). A “transversalidade”, portanto, tem sido o principal paradigma dos anos 2000 que organiza as políticas do Estado, fazendo uso do que Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa (1983) nomearam como “mestizage”, ou seja, a admissão de nossas similaridades e o confronto de nossas diferenças.
Há nas agendas anti-homofobia a convivência entre as políticas de identidade e as políticas transversais. As políticas de identidade, focadas na segmentaridade do tecido social em diferentes “populações” marcadas por pertencimento identitário, tem sido a principal estratégia dos movimentos LGBTTT, especialmente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) — chamada por Sílvia Ramos e Sérgio Carrara (2006) de mainstream. Essa estratégia de implementação (e “priorização” por parte dos movimentos LGBTTT) de políticas “específicas” foi denominada por Regina Facchini (2009) como “focalização da focalização”. Já nas correntes que têm dirigido teoricamente as políticas educacionais anti-homofobia, especialmente oriundas do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (CLAM/UERJ), há uma defesa da perspectiva “transversal” como apresentada acima, mesmo que não nomeada como tal, de combate à segmentaridade e fixidez identitárias, fazendo um chamamento à necessidade de problematização das expressões da opressão como um problema complexo.
No campo acadêmico brasileiro, particularmente das Ciências Humanas e Sociais, também tem crescido a perspectiva “transversal” como analítica dos problemas sociais contemporâneos. Fazendo uso da categoria “imbricadas” para tratar o problema do gênero e da sexualidade (e menos evidente da raça), Maria Teresa Citeli (2005) já sinalizara a complexidade dos estudos sobre sexualidade e direitos sexuais no Brasil. Se, em um primeiro momento, há a categoria “imbricadas” para justapor experiências de opressão com base no gênero e na sexualidade em publicação em livro do CLAM/UERJ;63 em 2010; em um segundo momento, o CLAM/UERJ lança em seu sítio eletrônico64 entrevista com o ativista Cláudio Nascimento intitulada “Uma agenda comum”. A entrevista mostra como “uma agenda comum” tem sido debatida especialmente por este grupo acadêmico na tentativa de coalizão entre ativistas LGBTTT com outros movimentos sociais. A principal categoria que organiza a “transversalidade” dos “eixos de opressão” no Orçamento Público e na voz de gestores, ativistas e analistas políticos é “recorte”. Luiz Mello et al. (2010) apontam que uma série de “ações” da agenda anti-homofobia no governo federal pode ser atribuída à “sensibilidade” de alguns gestores em relação ao combate à homofobia, que, a partir da “boa vontade” e “dedicação” individuais, põem em marcha políticas públicas dessa agenda ou, ao menos, incluem o “recorte da orientação sexual” em políticas existentes.
A categoria “recorte”, no campo de políticas públicas, parece funcionar no sentido de possibilitar, tanto para ativistas dos movimentos sociais como para gestores de políticas públicas do “núcleo social”, o seu uso tradicional, que prevê a implementação de políticas levando-se em conta a transversalidade da homofobia com os eixos de opressão prioritários em diálogo com a agenda (raça e gênero), bem como a supramencionada leitura “ativista/militante” das ações do governo federal. No uso da categoria “recorte” como remetendo à transversalidade dos eixos de opressão, no Relatório consolidado das Conferências Estaduais GLBT, se afirmou, como uma das “ações”:
criar indicadores para o monitoramento de políticas públicas voltadas à população negra, de matriz africana, quilombola e indígena, fazendo o
63 CITELI, Maria Teresa. A pesquisa sobre sexualidade e direitos sexuais no Brasil (1990-
2002): revisão crítica. Rio de Janeiro : Cepesc, 2005.
64 Disponível em: <http://www.derechos -
sexuales.org/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemp late=%5FES&fro m%5Fin f o%5Findex=61&info id=6656&sid=43>.
recorte de orientação sexual e identidade de gênero, e geracional [grifo meu] (2008, p. 42).
No uso da categoria “recorte” como remetendo à leitura “ativista/militante” do Orçamento da União, em relatório encomendado pela Secretaria Especial de Políticas das Mulheres, sobre o PPA de 2004-2007:
o grande desafio colocado pelo PPA atual, ao contrário, diz respeito à capilarização da inclusividade das minorias sociais em todas as esferas de atuação estatal. Para isso, propôs a garantia do recorte transversal de gênero, raça/etnia, geracional, pessoa portadora de necessidade especial e orientação sexual na formulação e implementação de políticas públicas. Esse pressuposto representa um avanço gigantesco se comparado às políticas sociais anteriores, posto que incorpora a sensibilidade às demandas de grupos socialmente discriminados em todos os projetos sociais de que possam ser beneficiários [grifo meu] (BANDEIRA, 2005).
Dessa forma, tanto o texto produzido pela sociedade civil nas conferências estaduais LGBTTT como o relatório fruto de consultoria da SPMulheres apontam a categoria “recorte” como operatória na transversalização dos “eixos de opressão” em “políticas específicas”, o que formaliza, em 2007, a atuação individual de gestores sensíveis às agendas sociais nas políticas do “núcleo social” do governo Lula.
As agências governamentais do “núcleo social” do governo Lula funcionam, também, como instituições de advocacy65 sobre o
Orçamento da União possibilitando, por intermédio de seus gestores com aderência às pautas dos “novos movimentos sociais”, a inclusão de diferentes “recortes” nas políticas já consolidadas e a construção de novos programas e ações no Orçamento Público. Essa construção é o que desloca uma “ação ativista/militante de gestores do governo” para o lugar de “política pública oficial”.
3.2 IMPACTO DO “PAPEL DE ESTADO” NA AGENDA ANTI-