diferentes da família nuclear heterossexual monogâmica Nesse sentido, ao heterossexismo é
1.5 A HOMOFOBIA COMO UMA CATEGORIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL
Os primeiros usos da categoria “homofobia” no âmbito das políticas públicas no Brasil referenciavam um tipo específico de violência letal cuja causa mortis era a “orientação sexual” da vítima (MOTT; CERQUEIRA, 2001). Quando lançada a política de combate à homofobia no âmbito do programa “Balcão de Direitos” em 2003,21 a então Subsecretaria de Direitos Humanos da Secretaria-Geral da Presidência da República afirmava:
a violência letal contra homossexuais, mais especificamente contra travestis e transgêneros é,
sem dúvida, uma das faces mais trágicas da discriminação por orientação sexual, ou homofobia, no Brasil (ANEXO A).
Desta forma, a categoria “orientação sexual” era o “conceito- chave” de políticas públicas das pautas homossexual e LGBTTT até, pelo menos, 2003. No âmbito das políticas públicas, afirmava-se a necessidade de combate à “discriminação em razão da orientação sexual”. Em 2003 palavras de ordem como “criminalização da homofobia” ou “Brasil sem homofobia” e até mesmo consígnias como “homofobia mata” não eram parte do léxico da agenda LGBTTT e seus sujeitos no Brasil. Lembremos que era época da “Resolução Brasileira na ONU”. Como informado pela correspondente belga da International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA), Brigit Hardt (2010), a resolução foi apresentada em abril de 2003 pela delegação brasileira na Comissão de Direitos Humanos na ONU e previa que os Estados-membros proibissem “a discriminação baseada em orientação sexual”. A centralidade da categoria orientação sexual emerge no Brasil no período da Constituinte e atravessa os anos 1990. Por isso, podemos afirmar que o “conceito-chave” de políticas públicas para LGBTTT até 2003 era “orientação sexual”, e não “homofobia” (CÂMARA, 2002).
A categoria orientação sexual emerge no Brasil no final dos anos 1980, fazendo frente a visões patologizantes (médicas) da homossexualidade. Segundo Cristina Câmara (2002), é no momento da Assembléia Nacional Constituinte que o grupo Triângulo Rosa, atuante nesse momento, inicia o uso da categoria, tentando incluí-la no quadro de liberdades dos cidadãos brasileiros. Poucos foram os parlamentares que atuaram junto ao grupo na Constituinte, e é necessário para a análise que ora se faz argumentar sobre a importância de setores do Partido dos Trabalhadores nesse processo. Os então deputados José Genuíno (PT/SP) e Benedita da Silva (PT/RJ) foram aqueles que “bancaram” a agenda homossexual com mais afinco na Constituinte. Cristina Câmara ressalta que o grande embate dos ativistas do grupo Triângulo Rosa era deslocar a homossexualidade dos sentidos de pecado e doença e que a categoria orientação sexual foi a estratégia escolhida. Em uma fala transcrita por Câmara (2002) e atribuída a Genuíno, o deputado afirmava o quanto o tema da orientação sexual era tratado por parlamentares com jocosidade. Já Benedita, apesar de evangélica, ressaltava o papel do parlamento na aprovação de direitos para todos. Desta forma, o termo “orientação sexual” foi uma estratégia política do final dos anos 1980
com vistas a constituir um “conceito-chave” para políticas públicas com aderência à pauta homossexual que fizesse frente ao discurso patologizante da época.
Apesar de o “conceito-chave” “orientação sexual” ter sido a principal categoria de políticas públicas da pauta LGBTTT até 2003, seu sentido tem sido questionado no âmbito brasileiro dos Estudos Gays e Lésbicos. O campo tem afirmado um “esvaziamento” de sentido da categoria “orientação sexual”, uma vez que ela tem se tornado, cada vez mais, “normalizadora”, centrando-se, portanto, nos campos biológico e psicológico. Alípio de Souza Filho (2009) alerta para os fundamentos não construtivistas propagados nos discursos sobre orientação sexual na agenda homossexual que têm produzido entendimentos da categoria como uma “substância” do indivíduo. Segundo o autor, esvaziar a categoria orientação sexual de um sentido de constructo social é encerrar sua potência na luta por novos “modos de vida” (ORTEGA, 1999), já que Souza Filho faz uso das reflexões de Michel Foucault para argumentar sobre a necessidade da inclusão da agência (ou para usar o termo do autor, “escolhas”) nas possibilidades políticas da categoria: “desde que passou a ser concebida como uma orientação sexual, a idéia de homossexualidade como uma ‘opção sexual’ passou a ser contestada. E nesse ponto ativistas GLBTT e psicólogos se deram as mãos”. O autor conclui que “há que começarmos por assumir que o que somos não se deve à natureza (ou à divina providência!), mas a uma ‘construção’ na qual estamos inteira e politicamente implicados e pelo próprio usufruto de nossas liberdades. Do contrário estaremos entregando o assunto da orientação sexual a psicólogos, pedagogos, médicos”. Com a presença de conflitos epistemológicos na definição da categoria de políticas públicas a ser defendida pelas pautas LGBTTT, houve espaço para a ampliação do sentido da categoria “homofobia”, que deixa de ser exclusiva do âmbito da Segurança Pública (violência letal) e da Saúde (intensificador de vulnerabilidades) e passa a endereçar um sistema mais amplo de produção de violências e discriminações.
A categoria “homofobia”, como um “conceito-chave” de políticas públicas de combate às violências contra LGBTTT e de promoção da cidadania homossexual, se universaliza a partir do programa “Brasil Sem Homofobia”. Como veremos, o Programa é nomeado como tal a partir de uma “agenda internacional de leituras” (vide COSTA, 2003, para uma compreensão da circulação de leituras), em que Cláudio Nascimento, um dos autores do Programa, recebe do pesquisador Daniel Borrillo uma cópia de seu livro intitulado Homofobia (BORRILLO, 2001). Dessa forma, uma categoria dispersa nos campos da Segurança
Pública e Saúde tem seu sentido ampliado pela orientação internacional, o que indica que os conceitos-chave das políticas públicas estão em disputa e não são referentes claros do problema que buscam equacionar. Como apontou Rafael de la Dehesa, sobre a articulação da comunidade gay primeiro na área da Saúde e depois na área de Segurança Pública, “esta migração, na verdade, começou antes do governo Lula e do lançamento do BSH, por meio de um movimento inicial do Ministério da Saúde para a Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, sob a gestão de Fernando Henrique Cardoso”22 (2010, p. 277).
Fabíola Rohden (2009), ao analisar o programa de formação de professores “Gênero e Diversidade na Escola” mostra que “raça” é um conceito que, ao mesmo tempo que reifica uma suposta diferença biológica entre as pessoas, também é eficaz no combate às ideologias racistas. Nesse sentido, a “homofobia”, assim como os conceitos de “raça” e “gênero” (também categorias de políticas públicas), pode ser entendida como conceito-chave para o combate às ideologias discriminatórias e excludentes de nossa sociedade.
Na Saúde, a homofobia não era uma categoria de políticas públicas, mas um conceito explanatório de vulnerabilidades. A “homofobia” como uma categoria no interior de políticas públicas anti- Aids atentava para um “tipo” específico de “discriminação” que resultava numa maior vulnerabilidade em relação ao HIV/Aids, inclusive hierarquizando as populações LGBTTT como mais ou menos vulneráveis. Como aponta William Siqueira Peres,
as exclusões e as formas de opressão experimentadas pela população homossexual, e em especial as travestis, desfavorecem qualquer possibilidade de oportunidades à população gay, dentro da configuração social em que vivemos, colocando essa população exposta a uma maior vulnerabilidade e riscos diante do HIV e da AIDS, tanto no plano individual [...] como no plano social, que estigmatiza, discrimina e violenta os direitos humanos, assim como o direito fundamental à singularidade, condição básica para que a pessoa possa sentir um mínimo de dignidade enquanto ser humano (2004, p. 25).
22 Tradução livre de: “this migration , in fact, began prior to the Lula administration and the
launching of BSH, through an initial move fro m the Ministry of Health to the Secretariat of Hu man Rights in the Justice Ministry, under Fernando Henrique Cardoso” (p. 277).
Portanto, a “homofobia” como conceito explanatório de “vulnerabilidade ao HIV”, conforme apontado nas políticas públicas da agenda anti-Aids, é diferente da “homofobia” do programa Brasil Sem Homofobia. No Brasil Sem Homofobia, “homofobia” é um “sistema” amplo, nos moldes do sexismo, cujo combate aos seus resultados só seria possível, como apontam as respostas a essa homofobia, a partir do enfrentamento (com a articulação de várias agências governamentais) e da transversalidade (dos eixos de opressão).
Com o “Brasil Sem Homofobia” e uma disputa na garantia de recursos públicos para sua implementação (como veremos adiante), torna-se central, juntamente com a continuidade da Saúde e Segurança Pública, a execução de políticas em outras áreas de governança. A universalização da categoria “homofobia” como “conceito-chave” de políticas públicas para LGBTTT no Brasil resultou na ampliação do quadro de áreas de governança para implementação de políticas públicas voltadas a LGBTTT. Entretanto, ao pressupor “enfrentamento” e “transversalidade”, o projeto universal do Brasil Sem Homofobia não resultou em uma política horizontal nas diversas agências e ministérios do governo federal (como planejado), tendo sido mais eficaz em algumas áreas do que em outras. O Brasil Sem Homofobia, portanto, teve maior eficácia na Educação e na Cultura (DE LA DEHESA, 2010). Como aponta Rafael de la Dehesa, “o Ministério da Cultura de fato liderou a implementação do BSH”23 (2010, p. 284). No Ministério da Cultura teve importância fundamental a criação da Secretaria de Identidade Cultural, em 2003, a qual passou, posteriormente, via Brasil Sem Homofobia, a financiar as paradas do orgulho (antes uma ação do Ministério da Saúde). O deslocamento de sentido da categoria “homofobia” no âmbito das políticas públicas possibilitou, portanto, a ampliação das áreas de governança responsabilizadas, mediante o planejamento público, com o combate à homofobia.
23 Tradução livre de: “the Ministry of Culture in fact took the lead in the implementation of