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5. O CICLO DE APRENDIZAGEM EXPANSIVA: UMA ANÁLISE MACRO EM

5.6 REFLEXÕES E AVALIAÇÕES DO PROCESSO: avaliando todo o projeto

5.6.1 A emergência de um novo sistema de atividade

colaborativa online.

A gradual incorporação do ambiente virtual à prática da sala de aula fez emergir um sistema de atividade paralelo que, embora tivesse uma estreita conexão com o sistema aulas de inglês na escola (doravante, sistema 1), “oficialmente”48 não podia fazer parte desse sistema, além de não contar com a participação de todos os alunos (já que a adesão ao projeto era voluntária). Esse sistema tinha sua própria dinâmica, pois a natureza do instrumento mediador (uma rede social online) fez surgir novas práticas de aprender e ensinar, assim como novos modos de interação. Passo agora à descrição desse novo sistema de atividade

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(doravante denominado de sistema 2), representado pela figura 36 abaixo, cuja análise terá como ponto de partida a perspectiva dos alunos.

Figura 36: O sistema de atividade 2: Ensinar e aprender inglês colaborativamente em um AVA

A percepção da existência desse novo sistema de atividade aconteceu pela emergência de um objeto totalmente novo: ensinar e aprender inglês de forma colaborativa em um AVA. Fazem parte como sujeitos desse sistema de atividade, assim como eu, os alunos que se engajaram no projeto49. Os instrumentos empregados para a mediação no sistema 2 se diferenciavam daqueles empregados no sistema 1 (livros, quadro, explicação da professora etc.). Nesse novo sistema, o instrumento mediador da aprendizagem consistia das interações dos alunos com os recursos do AVA e com os seus membros.

Outra diferença observada entre o sistema de atividade da escola e esse novo sistema tem relação com a divisão do trabalho dentro da comunidade: os papeis de professor e aluno, muito claramente definidos na escola, se misturavam no ambiente virtual. Por exemplo, no AVA os alunos puderam experimentar papeis que na escola eram mais frequentemente

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Foram excluídos os alunos que não se cadastraram e aqueles que se cadastraram, mas não tiveram nenhuma participação registrada nas suas páginas no AVA .

atribuídos ao professor, como a responsabilidade pelo conteúdo pedagógico, além de outros papeis centrais nessa nova modalidade de aprendizagem, como a atuação como coadministradores do ambiente virtual. Como consequência disso, as interações dentro da rede ocorriam de modo bem menos hierárquico, assemelhando-se às interações em uma comunidade de prática, onde a posição dos sujeitos dentro de uma determinada comunidade depende do nível de expertise dos seus membros, os quais podem se deslocar de uma posição mais periférica até as posições mais centrais dentro daquela prática (Wenger, 1998). Nesse sentido, a posição central pertencia a mim, não pela imposição de uma hierarquia externa, mas pela competência linguística e pelo fato de eu ter sido a mentora da comunidade virtual. Porém, essa posição era compartilhada com os alunos-membros mais proficientes na língua. No entanto, a competência linguística não era o único fator de centralidade na comunidade. O nível de engajamento de cada membro também contribuiu para definir sua posição dentro da comunidade. Temos como exemplo disso o caso de alunos que, mesmo não demonstrando muita experiência na língua inglesa, ocupavam uma posição de destaque no ambiente devido à sua ativa participação. Esses foram os alunos convidados a ocupar a posição de coadministradores do ambiente.

Uma das poucas regras que estabeleci para a participação dos alunos no AVA era de que as interações e as contribuições fossem feitas na língua-alvo, já que o objetivo ali era criar oportunidades de vivenciar o idioma em situações mais próximas do autêntico. Foi explicado aos alunos que cada um participaria e contribuiria dentro da sua competência linguística e que o foco não era a correção e sim a comunicação, o que parece ter sido compreendido pelos alunos, como demonstram os diversos níveis de competência encontrados nos fóruns (figura 37).

Figura 37: Exemplos de participação dos alunos no fórum sobre amizades

Havia também uma regra implícita sobre o comportamento ético dos alunos no ambiente virtual. Tal regra, embora nunca tenha sido estabelecida claramente, foi seguida por todos os membros e não houve nenhuma ocorrência de mau uso do ambiente durante o projeto. A orientação que os alunos recebiam era a de que deveriam tentar colaborar sempre com os outros membros e com o “acervo” do ambiente.

Para Leontiev (1978), as atividades se realizam através de ações ou sequência de ações orientadas por metas conscientes. O sistema de atividade que ora se formava era composto de ações protagonizadas pelos sujeitos que compartilhavam o objeto da atividade. Os dados gerados no período de experimentação e implementação revelaram um padrão semelhante entre as ações mais frequentes de todos os alunos-membros do AVA, como evidenciam os recursos mais acessados nesse período, mostrados no quadro abaixo.

FASE DE EXPERIMENTAÇÃO (2009-2010)

FASE DE IMPLEMENTAÇÃO (2011-2012)

1. Video-clips

2. Exercícios de revisão de gramática e vocabulário (online e para baixar)

3. Folhas de atividades de interpretação de textos (para baixar)

1. Vídeos 2. Quizzes

3. Atividades de gramática (online e para baixar)

Quadro 5: Recursos mais frequentemente acessados pelos alunos nas fases de experimentação e implementação

Após analisar esse quadro percebi que todas essas ações eram influenciadas pelo paradigma da aquisição (Sfard, 1998), muito presente no ambiente escolar. Entre elas estavam as ações que classifiquei de “atividades tradicionais de estudo”, mas também as ações de “entretenimento e aprendizagem” (seção 5.5.1). O que caracteriza essas atividades como ligadas ao paradigma da aquisição é o fato de que, além de serem realizadas de modo individual, elas implicam em uma forma de consumo e recepção, seja de informação, conhecimento ou de produtos culturais, evidenciado pelos verbos “baixar” e “assistir”. Além daquelas ações mais frequentes, identifiquei outras ações bem comuns no AVA que se encaixavam dentro desse paradigma:

 Baixar gabaritos de prova e lista de conteúdos

Acessar os recursos externos relacionados ao aprendizado de inglês (podcasts, audiobooks, vídeos, dicionários, jogos etc.)

 Acessar a agenda e ler mensagens sobre as aulas

Tirar dúvidas com a professora através do chat ou e-mail

Todas essas ações podem ter tido como metas tanto a melhora no rendimento na disciplina da escola quanto um real desejo de aprender inglês, já que ambas poderiam levar o aluno a “consumir” o conteúdo do AVA. De qualquer forma, elas demonstram que os alunos viam o ambiente como um recurso pedagógico importante para o aprendizado da língua inglesa de um modo geral e para as aulas na escola, em particular. Elas também denotam uma agência mais individual do aluno, o tipo de agência mais comumente encontrada dentro do sistema 1.

No entanto, a natureza do ambiente virtual (uma rede social online) propiciava uma segunda modalidade de ações, mais orientadas para o paradigma da aprendizagem participativa e que demandavam um tipo de agência mais colaborativa e relacional. Essas ações, embora menos frequentes entre a maioria dos alunos, eram bastante comuns em um grupo pequeno de alunos. Entre elas podemos citar:

 postar vídeos e recursos pedagógicos como jogos, atividades etc.  dar sugestões de outros recursos (websites, aplicativos, livros etc.)  comentar e curtir as postagens dos colegas

 participar dos fóruns  criar novos fóruns

 postar suas produções escolares (redações e projetos)  conversar em inglês através do chat

Pode-se perceber a presença desse outro paradigma na maioria dos verbos conjugados que denotam colaboração (postar, dar sugestões, participar) ou interação (comentar, curtir, conversar). Diferentemente do primeiro grupo de ações, muitas das ações desse segundo grupo não encontravam paralelo com aquelas às quais o aluno estava acostumado na escola, pois não guardavam relação direta com a melhora do rendimento da disciplina e nem com a ideia de consumo passivo do conhecimento. Diferentemente das ações do primeiro grupo, essas ações estavam mais relacionadas ao aprendizado da língua do que ao rendimento da disciplina na escola. Vale ressaltar que, ao engajar-se nessas ações de participação e colaboração, os alunos estavam também ocupando um lugar de produtor, e não apenas de consumidor de conhecimentos, uma caraterística fundamental da cultura participativa disseminada pela Web 2.0 (cf. capítulo 3, seção 3.3).

É importante que se enfatize que os alunos que se engajavam nessa segunda modalidade de ações eram geralmente os responsáveis pelas postagens dos vídeos que eram assistidos (“consumidos”) pelos outros membros, como mostra a página pessoal de uma aluna (figura 38), que no período de 2011-2013 tinha postado 187 vídeos.

Figura 38: Página pessoal com os vídeos de uma aluna

Eles também eram os que iniciavam as participações nos fóruns e, de certa forma, atraíam os colegas para participar. Desse modo, suas interações funcionavam como uma espécie de “input linguístico” para os outros alunos que tentavam participar, como atesta uma aluna, quando perguntei se ela lia o que os colegas escreviam nos fóruns.

“eu leio pra poder ter uma base assim, do que eu vou escrever né, porque alguns colocam coisas simples outros colocam coisas um pouco mais elaboradas outros colocam algumas piadinhas. Então eu leio assim pra ver até o que que o pessoal tá escrevendo, pra ver como que eu vou formular a minha resposta porque as vezes eu sou meio tímida pra formular essas respostas assim.” (aluna 21, ANEXO 19)

Além das ações associadas diretamente ao aprendizado (seja dentro de um modelo mais tradicional, quanto de um modelo mais participativo), foram identificadas outras ações voltadas especificamente para a socialização no ambiente, como fazer amigos e postar fotos.

Tais ações, embora muito apreciadas pelos alunos, não eram vistas por eles como ações de aprendizagem e, por isso, não foram incluídas nas duas listas anteriores. No entanto, elas foram fundamentais para a criação e manutenção da comunidade de aprendizagem que se formava no ambiente.

A análise dos dados coletados durante os períodos de experimentação e implementação apontaram, portanto, para 3 tipos de uso do ambiente:

1. acessar o AVA para consumir conhecimento: baixar folhas de atividades; ver vídeos; acessar recursos externos, etc.

2. acessar o AVA para interagir e compartilhar conhecimento: postar vídeos e recursos pedagógicos; participar dos fóruns; dar sugestões, etc.

3. acessar o AVA para “socializar” com os colegas: fazer rede de amigos; postar e ver fotos; “curtir” as postagens dos colegas, etc.

Como dito anteriormente, à medida que eu e alguns alunos nos engajávamos no projeto passamos a atuar em dois sistemas de atividade paralelos: as aulas de inglês na escola e uma nova modalidade de aprender e ensinar que não poderia ser classificada como “aula”. Apesar do meu desejo em incorporar essa experiência à minha prática na escola, isso não foi possível por várias razões. A mais importante delas era que, como um projeto não- institucional que envolvia uso de tecnologia não disponibilizada pela estrutura escolar, ele só poderia existir como um apêndice dessa prática. Outra razão foi a resistência de alguns alunos que não se mostraram interessados em participar e também a resistência de alguns pais que limitavam o uso da internet para os filhos. Essa resistência dos pais, no entanto, foi sendo atenuada durante as reuniões trimestrais da escola com os responsáveis, quando eu lhes apresentava o projeto. Outra razão que limitou o meu desejo de incorporar o projeto às aulas foi a própria estrutura curricular na qual a disciplina de língua inglesa está inserida, com pouco tempo de aula para o cumprimento de um programa extenso.

Por essas razões, a atuação simultânea nos sistemas 1 e 2 só foi possível para mim e para os alunos engajados no projeto, que tínhamos dois objetos relacionados ao ensino e aprendizado de inglês, como pode ser visualizado na figura 39.

OBJETO 1: aprender e ensinar inglês na escola e OBJETO 2: aprender e ensinar inglês em um AVA

Figura 39: A interface dos dois sistemas de atividade

Nesse caso, os sujeitos atuavam em dois sistemas de atividade semelhantes, já que foram gerados pelo mesmo motivo, ou seja, aprender e ensinar inglês. Porém, o tipo de mediação e o contexto diferenciados dos dois sistemas produziram diferentes objetos.

De acordo com Engeström e Sannino (2010, p.6), em uma rede em que dois sistemas são interligados, os dois objetos interconectados agem juntos para produzir um resultado, geralmente um novo objeto. No entanto, essa “convivência” entre esses dois objetos nem sempre acontece de maneira harmônica devido às contradições existentes entre os elementos dos dois sistemas. Um exemplo dessas contradições pôde ser observado nos conflitos gerados entre as normas culturais da atividade aulas na escola (fruto do modelo de transmissão e aquisição) e a cultura participativa do ambiente virtual.

Os mesmos autores (ibidem) afirmam que esses conflitos podem ser transformados por meio de um processo de aprendizagem expansiva, podendo gerar um novo objeto e um novo conceito. Esse novo objeto poderia ser um modelo de ensino-aprendizagem híbrido em que recursos do mundo virtual se juntam aos recursos presenciais.