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3. O FAZER PEDAGÓGICO COMO UMA PRÁTICA SOCIAL EM

3.2 A TEORIA DA ATIVIDADE SOCIO-HISTÓRICO-CULTURAL E A

3.2.1 A Teoria da Aprendizagem Expansiva de Engeström

Como vimos no início deste capítulo (seção 3.1.1), como alternativa à dicotomia entre a metáfora da Aquisição e a metáfora da Participação, Paavola e Hakkarainen (2004) sugerem uma 3ª metáfora: a metáfora da Criação do Conhecimento e citam como um possível caminho

a Teoria da Aprendizagem Expansiva, doravante AE. Essa teoria, desenvolvida por Engeström (1987), pretende ser uma aplicação da Teoria da Atividade Socio-histórico- cultural (TASHC), na sua 3ª geração. Como tal, ela foi construída com base nos estudos das gerações anteriores da Teoria da Atividade, como os de Vygotsky, Leontiev, Il’enkov e Davydov, além da contribuição de dois outros teóricos: Bakhtin e Bateson (Engeström, 2010, p. 76).

Entre as ideias que fundamentam a AE, cuja origem se encontra nas primeiras gerações da TASHC, estão: a noção de contradição de Il'enkov7 (1977; 1982); a noção de mediação e o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal de Vygotsky (ZDP)8 (VYGOTSKY, 1978); a distinção entre ação individual e atividade coletiva e o conceito de atividade orientada a um objeto, de Leontiev (1981); o método de aprendizagem da ascensão do abstrato para o concreto de Davydov9, além da metodologia de dupla estimulação10 de Vygostsky (1997). Por fim, o conceito de multivocalidade de Bakhtin11 (1982) completa a fundamentação da AE. Engeström (2010, p. 78) afirma que aplicar o conceito de multivocalidade na Teoria da Aprendizagem Expansiva significa incluir todas as vozes que fazem parte do sistema de atividade.

Engeström (2010, p. 77-78) reconhece também que sua teoria foi inspirada na teoria de Bateson (1972) sobre níveis de aprendizagem e admite que a AE tem semelhança com o nível III de aprendizagem de Bateson, especialmente no conceito de duplo vínculo, que na AE é reconceitualizado com base no conceito de contradição.

Bateson (ibidem) distingue três níveis de aprendizagem: o primeiro nível refere-se ao aprendizado por condicionamento, como, por exemplo, aprender a dar a resposta correta em um determinado contexto; o segundo nível consiste da aquisição de regras e padrões de comportamento profundamente enraizados no contexto da atividade. No contexto escolar,

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Il'enkov, E. V. (1977). Dialectical logic: Essays in its history and theory. Moscow: Progress.

Il'enkov, E. V. (1982). The dialectics of the abstract and the concrete in Marx's 'Capital'. Moscow: Progress.

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Para Vygostsky, A ZDP é a distância entre o desenvolvimento real da criança (aquilo que ela é capaz de realizar sozinha) e o seu desenvolvimento potencial (aquilo que ela é capaz de realizar com a ajuda de um par mais competente).

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Davydov, V.V. (1990) Types of Generalization in Instruction: Logical and psychological problems in the structuring of school curricula. Reston, VA: National Council of Teachers of Mathematics.

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Vygotsky, L. S. (1997). The history of the development of higher mental functions. In R. W. Rieber (Ed.), The collected works of L. S. Vygotsky. Vol. 4: The history

of the development of higher mental functions. New York: Plenum

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Bakhtin, M.M. (1982) The Dialogic Imagination: Four essays by M.M. Bakhtin. Austin: University of Texas Press.

essas regras podem ser representadas pelo currículo oculto12, ou aquele aprendizado “não- oficial” a que me referi na subseção 3.1.2. O terceiro nível sugerido por Bateson ocorre quando um indivíduo ou grupo questiona o sentido da situação e constrói uma alternativa como resposta a alguma contradição que tenha dado origem a tal questionamento. Nesse caso, a alternativa criada configura-se como a construção de um novo conhecimento. Segundo Engeström (ibidem), Bateson não elaborou uma teoria sobre esse terceiro nível de aprendizagem, o que foi realizado por aquele autor ao desenvolver a Teoria da Aprendizagem Expansiva.

Engeström (2010, p. 74), ao comentar sobre as duas metáforas do aprendizado (Aquisição e Participação) sugeridas por Sfard (1998), conclui que ambas compartilham o mesmo viés conservador de reprodução da cultura vigente, ou seja, nenhuma delas trata da transformação cultural ou da criação de conhecimento. O autor afirma que sua teoria não se encaixa em nenhuma delas, pois ela é regida pela sua própria metáfora: a expansão (ENGESTRÖM, ibidem). A ideia central da Aprendizagem Expansiva se distingue das duas outras metáforas, já que implica em “aprender algo que ainda não existe”, ou seja, a criação de um novo conhecimento: um novo objeto ou novo conceito para as atividades existentes. Em outras palavras, a Aprendizagem Expansiva se caracteriza pela própria expansão do objeto, cujo potencial pode ser descoberto através de intervenções que ampliam a zona de desenvolvimento proximal do sistema de atividade (ENGESTRÖM, 2009b).

Dentro da Teoria da Aprendizagem Expansiva, o desenvolvimento é entendido como transformações qualitativas, sendo motivado pela reconceitualização expansiva do objeto e do motivo da atividade (ENGESTRÖM, 2001, p.137). Esse processo de transformação da atividade, que envolve a formação de conceitos teóricos, é implementado nas ações cotidianas, nas inovações e nas mudanças de rumo das ações que compõem a atividade. (ENGESTRÖM, 2011, p.10). Engeström (1999) faz três recomendações sobre como reconceitualizar a ideia de desenvolvimento:

(1) Ao invés de apenas atingir o domínio, o desenvolvimento deve ser visto como uma rejeição parcial do antigo; (2) ao invés de aspirar apenas à transformação individual, o desenvolvimento deve ser visto como uma transformação coletiva; (3) ao invés de se configurar apenas como um

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O currículo oculto compreende os valores e crenças transmitidos tacitamente por meio da relações sociais e das rotinas que caracterizam a experiência escolar. (Giroux, 1981, p.284)

movimento vertical, ele deve ser visto como um movimento horizontal que rompe fronteiras. (ENGESTRÖM 1999) (tradução minha) 13

Como visto no início dessa seção, um dos princípios da TASHC propõe que a atividade humana seja concebida como um sistema coletivo, mediado pela cultura e orientado a um objeto, constituindo-se assim como a unidade básica de análise dos fenômenos sociais humanos (ENGESTRÖM, 1999). Porém, como os sistemas de atividades estão sempre conectados a outros sistemas interdependentes, muitos estudos que empregam a Teoria da Aprendizagem Expansiva têm tomado como unidade de análise uma “constelação de dois ou mais sistemas de atividade que compartilhem um mesmo objeto” (ENGESTRÖM & SANNINO, 2010, p. 6).

Os outros quatro princípios da TASHC são igualmente importantes dentro da Teoria da Aprendizagem Expansiva como a multivocalidade dos sistemas de atividade (multiplicidade de perspectivas dos sujeitos); a sua historicidade; a concepção das contradições como fonte de transformação e a possibilidade de transformações expansivas nos sistemas de atividade, em decorrência de contradições.

Dentre esses, o princípio da contradição tem especial destaque em qualquer processo de transformação. Contradições, como já foi dito, são tensões que se desenvolveram historicamente dentro da atividade. Porém, diferentemente do senso comum, elas não têm uma conotação negativa, uma vez que são consideradas como grande potencial para a mudança. Contradições são inerentes à atividade humana. Segundo Cole e Engeström (1993), o equilíbrio é a exceção dentro dos sistemas de atividade e “as tensões, os distúrbios e as inovações são a regra e a força motriz da transformação” (ENGESTRÖM & COLE, 1993, p. 8). Todo sistema de atividade está em constante movimento de transformação decorrente das suas contradições internas. Portanto, identificar as contradições dentro de um sistema de atividade é o primeiro passo para intervir nessa transformação.

As contradições internas dos sistemas de atividade têm relação como o princípio multivocalidade. Isso significa que, como diferentes atores compartilham o mesmo objeto, a atividade humana é inerentemente contraditória. Cada ator, como produto e produtor de cultura, confere um significado diferente à atividade. Quanto maior a multiplicidade de

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No original: In a recent paper (Engeström, 1996b), I recommended the reconceptualization of development along three parallel lines: (1) instead of just benign achievement of mastery, development should be viewed as partially destructive rejection of the old; (2) instead of just individual transformation, development should be viewed as collective transformation; (3) instead of just vertical movement across levels, development should be viewed as horizontal movement across borders.

significados atribuídos a um mesmo objeto, maior o número de conflitos gerados pela tensão entre essas diferentes visões.

Engeström (1987; 2010, p. 78) identificou quatro níveis de contradições na atividade humana: contradições primárias, secundárias, terciárias e quaternárias:

Contradição primária: representam a tensão entre o valor de troca e o valor de uso existente dentro de cada componente da atividade central. Por exemplo, o objeto “aprender” na escola tem seu valor de uso (a relação com o próprio conhecimento) e seu valor de troca (como esse conhecimento será usado para conseguir uma nota ou a inserção em uma faculdade ou no mercado de trabalho).

Contradição secundária: entre os componentes da atividade central. Essa contradição se torna evidente quanto um novo elemento é inserido no sistema. Por exemplo, quando uma nova tecnologia é inserida na educação formal como elemento mediador, interferindo na relação dos sujeitos com o objeto da aprendizagem ou na hierarquia da divisão do trabalho da atividade pedagógica.

Contradição terciária: quando o objeto/motivo de uma atividade entra em choque com o objeto/motivo de uma forma culturalmente mais avançada dessa atividade. Por exemplo, a contradição entre o significado que o aluno atribui à atividade escolar e o significado que o professor atribui a essa mesma atividade.

Contradição quaternária: entre a atividade central e outros sistemas de atividades que a ela se relacionam. Por exemplo, a contradição entre a atividade aulas de inglês em uma determinada escola e as outras atividades que fazem parte da instituição escolar onde essa aula acontece.

Todavia, apesar do seu grande potencial para desencadear mudanças, as contradições podem não resultar em transformação ou aprendizado. Para que uma transformação de fato ocorra, as contradições devem ser identificadas e trabalhadas pelos sujeitos, dentro da própria atividade (ENGESTROM, 2010, p. 77). Por essa razão, o processo de aprendizagem expansiva requer uma articulação e um engajamento dos sujeitos com as contradições do sistema (ENGESTRÖM, 2010, p. 77).

O processo de aprendizagem expansiva, entendido como um processo de “construção e resolução de contradições que evoluíram dentro do sistema”, foi idealizado como um ciclo composto por sete ações de aprendizagem (Engeström & Sannino, 2010, p.7):

1. Questionamento da situação: representa o momento em que questionamos, criticamos e rejeitamos alguns aspectos da prática corrente.

2. Análise da situação: envolve a busca de explicações ou das causas históricas das contradições, por meio da construção de uma representação das relações internas do sistema de atividade.

3. Construção do modelo de uma nova solução: representa o momento em que construímos um modelo simplificado de uma nova ideia que possa oferecer a explicação ou a solução para a situação.

4. Exame do modelo: representa o momento em administramos, operamos e experimentamos o modelo construído, para conhecer sua dinâmica, seu potencial e suas limitações.

5. Implementação do modelo: envolve a aplicação prática do modelo, incluindo aperfeiçoamentos e a sua expansão conceitual.

6. Reflexão e avaliação do processo: envolve a análise dos dados gerados no período e a reflexão sobre o modelo construído e implementado.

7. Consolidação dos resultados: emergência de um novo modelo de atividade.

O ciclo da Aprendizagem Expansiva pode ser representado pela figura 4. As setas que vão se alargando representam o escopo de cada uma das ações dentro do ciclo. Para Engeström (2010), um ciclo de aprendizagem começa quando um modelo de atividade relativamente estável começa a ser questionado, e termina quando um novo modelo se consolida e se mantém estável, até que seja questionado novamente, dando início a um novo ciclo.

Figura 4: Modelo do Ciclo de Aprendizagem expansiva ( Engeström & Sannino, 2010, p. 7)

Engeström (1987) afirma que novas formas de atividade emergem como soluções para as contradições presentes nos estágios anteriores da atividade e podem ser consideradas como inovações ou “rupturas invisíveis”. Engeström (ibidem) cita Ilyenkov (1982, p. 83-84) ao citar a importância dessas rupturas para o desenvolvimento humano:

[…] todo novo aperfeiçoamento do trabalho, todo novo modo de ação humana, antes de se tornar aceito e reconhecido, emerge primeiramente como um desvio das normas previamente aceitas. Tendo emergido como uma exceção individual à regra do trabalho de uma ou várias pessoas, a nova forma é então assimilada por outros e, com o tempo, se torna uma norma universal. (Ilyenkov,1982, p. 83-84) (tradução minha)14

De acordo com Engeström e Sannino (2010, p. 8), as transformações expansivas se manifestam primeiramente no objeto da atividade, o que acaba por afetar todos os componentes do sistema, e não apenas os sujeitos protagonistas da atividade.

14 Thus, any new improvement of labour, every new mode of man's action in production, before becoming generally accepted and recognised, first emerge as a certain deviation from previously accepted and codified norms. Having emerged as an individual exception from the rule in the labour of one or several men, the new form is then taken over by others, becoming in time a new universal norm. (Ilyenkov,1982, p. 83-84)

Os conceitos da Teoria da Atividade e da Aprendizagem Expansiva podem contribuir para uma reflexão sobre o ensino e aprendizado de Língua Estrangeira, pois fundamentam formas de intervenção que podem promover o desenvolvimento do ser humano por meio da atividade de aprendizagem (FERREIRA, 2012, p.66). Na opinião de Ferreira (ibidem), o modelo de Engeström também “auxilia o professor na medida em que lhe permite identificar conflitos e contradições na sala de aula e a interrelação dos vários elementos contextuais da sua prática pedagógica (comunidade, regras e DT)”. (FERREIRA, 2012, p.73)

Como explicado no início dessa seção, a TASHC é uma ferramenta para descrever e compreender as práticas sociais. Como tal, ela será empregada neste trabalho para compreender a introdução da tecnologia na educação como um processo de expansão da atividade ensinar e aprender inglês, com foco no desenvolvimento humano e não na tecnologia em si. O modelo de ciclo de aprendizagem expansiva de Engeström será utilizado para descrever o processo de criação de um ambiente virtual de aprendizagem e sua implementação nas aulas de inglês, cuja descrição é objeto do capítulo 5.