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3 – A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMPETÊNCIA EM EDUCAÇÃO

Na perspectiva de Maués (2004), existem três razões para as várias mudanças conceptuais do conceito de competência na educação. A primeira tem a ver com a deslocação do epicentro da aprendizagem da matéria a ser aprendida para colocar no centro o aluno. Isto representa uma mudança nas finalidades do ensino, passando-se a ter como objectivo o que o aluno deverá ser capaz de fazer e não as matérias, os conteúdos que ele deverá assimilar. A lógica da aprendizagem muda das disciplinas para as competências.

A segunda mudança é a passagem da aprendizagem centrada nas aquisições, para uma aprendizagem centrada no potencial de acção. Ou seja, os alunos aprendem, sabem muitas coisas, mas são considerados depositários de saberes mortos, na medida em que esses saberes não são utilizados em situação. Nesta perspectiva, a abordagem por competências tem a função de mobilizar os recursos para a resolução de problemas. Este aspecto destaca o lado prático e utilitarista da pedagogia das competências.

Na “economia do saber” o útil, o prático é o que pode ser colocado em acção de imediato, ou seja em situação. Nesta lógica alguns conhecimentos que não são solicitados pelo mercado, como os conhecimentos de filosofia, as questões da cultura como a apreciação de obras de arte, de uma literatura refinada e outras, certamente que não serão consideradas a partir desse “approche”, uma vez que, não serão exigidos pelo mercado, nem pela economia do saber.

O terceiro aspecto que este autor coloca em questão refere-se à possibilidade da abordagem de competências transitar de uma aprendizagem do conhecimento para uma aprendizagem do “saber fazer” e do “saber reflectir”. Este aspecto coloca uma questão muito pertinente, que é, como deve ser feita a formação dos professores?

A problemática da formação dos professores é colocada identicamente por outros autores, que enxergam, uns de uma forma crítica, outros apoiando o papel do professor como o do acompanhante. Deste modo, a função do professor não é a transmissão de conhecimentos, mas ajudar os alunos a serem competentes. O papel do professor, na lógica das competências será então o de treinador.

Perrenoud (1999) caracteriza o conceito de competência pela capacidade de mobilizar recursos, saberes, capacidades e outros requisitos para agir eficazmente em um determinado contexto. Este autor é da opinião que as competências “não viram as costas” para os conhecimentos. Ao contrário, elas estão fundamentadas neles, portanto, o “saber fazer” não significa o abandono do conhecimento.

Este autor faz uma divisão entre “saber fazer de alto nível”, o qual chama de competências, e o “saber fazer de baixo nível”, que seriam as habilidades. Os saberes de baixo nível mobilizam saberes limitados, procedimentos, explica-se como fazer baseando-se na experiência e não em fundamentos teóricos. Enquanto o “saber fazer de alto nível” é apoiado em saberes mais aprofundados, que exigem, por exemplo: possuir informação, comunicar, antecipar, inventar, adaptar, imaginar, cooperar, analisar, o que seria bem mais complexo do que os outros saberes fazer como ler, escrever, contar, etc. Nesta perspectiva, não existe oposição entre conhecimento e

56 competência, uma vez que para fazer face às acções indicadas existe a necessidade de uma base teórica.

Outra interrogação que muitas vezes é levantada, quando se aborda o termo competência em educação, é a oposição entre competências e disciplinas. Os defensores do conceito de competência defendam que não existe nenhuma oposição e que pelo contrário, estes conceitos se completam. Argumentam que as competências procuram resolver os problemas ligados à disciplina, procurando para tal os conhecimentos necessários. Ao mesmo tempo, para resolver esses problemas, a abordagem por competências apoia-se em um conjunto de saber fazer geral, chamadas competências transversais.

Outro autor, que se tem debruçado sobre esta problemática é Le Boterf (2000), para quem ser competente não é possuir um saber ou saber fazer, mas saber mobilizá-los numa determinada situação. Ou seja, a competência só pode ser demonstrada em situação, traduzida em actos. Este autor destaca também outro aspecto, que é o de a competência não residir nos recursos mobilizáveis, mas na sua própria mobilização. A competência é da ordem do saber mobilizar e combinar recursos, tais como, recursos pessoais, recursos do meio ambiente, constituindo-se assim, na faculdade de utilizar esses recursos de maneira apropriada.

Um dos aspectos interessantes que Le Boterf destaca é a mobilização dos saberes que o indivíduo selecciona, integra e combina. Por outro lado, evidencia o facto de existirem vários tipos de saberes, os saberes teóricos, que permite simplesmente orientar a acção; os saberes procedimentais, que descrevem como se deve fazer; o saber fazer procedimental, que difere do anterior por produzir por meio de um processo operacional os saberes teóricos, e inclui o saber fazer experiencial, que é o saber que se dá a partir de uma acção. Este autor apresenta, ainda, o saber fazer social, que é o “saber ser”, ou seja, aquele saber que é mobilizado em uma situação particular de trabalho.

Uma das razões apresentadas para a adopção das competências no mundo da educação é que a escola dá muito destaque às matérias, disciplinas, saberes, conhecimentos, isto é, a um ensino teórico, deixando em segundo plano a aplicação desses conhecimentos. Esta abordagem cria uma dicotomia entre a teoria e a prática, não permitindo a integração e a acção efectiva do que foi supostamente ensinado e aprendido nas escolas. Vários exemplos são dados, como o facto de que conhecer as regras gramaticais, a ortografia ou a concordância não permite necessariamente que alguém possa redigir bem um relatório (Zamberlan, 2006).

Bronckart e Dolz (2002) apontam duas razões para a emergência da lógica de competências. A primeira está ligada ao movimento de adaptação que propõe a apreensão das capacidades que estão directamente ligadas a uma mobilização social, a uma aquisição de saber-fazer que permita a possibilidade de empregabilidade. A outra razão, vem do movimento neoliberal, que está preocupado em formar pessoas aptas a enfrentar o mercado de trabalho em constante mutação, de forma eficiente e eficaz. Em princípio estas duas razões não são antagónicas, mas complementam- se quando são pensadas na formação do “homem económico”, ou quem sabe, do homem do mercado. Pois em ambos os casos o objectivo é oferecer uma formação flexível, polivalente, que possa permitir uma fácil adaptação, coerente com as mudanças do mercado e as exigências internacionais. Nesta óptica, a ênfase é colocada no saber fazer e não nos saberes.

Já Stroobants (2002) é de opinião que a febre das competências não representa a substituição de um sistema de ensino ultrapassado, mas configura-se como uma estratégia para enfraquecer o sistema. Embora este autor enfatize mais a sua análise nas empresas, este aspecto não está desarticulado com o do mundo da educação, tendo em vista as finalidades que os organismos internacionais impuseram a esta última de acordo com o fenómeno da economia de mercado.

Esta análise permite compreender o facto das organizações substituírem as qualificações, antes exigidas aos trabalhadores, pelas competências. Esta mudança representa, entre outras, a desregulamentação do diploma, o que tem como consequência a separação entre formação e emprego. Nessa lógica, as competências seriam mais eficazes do que os saberes formais e definiram-se por oposição aos saberes escolares, tendo em vista que esse tipo de conhecimento só poderia ser adquirido no local de trabalho.

57 A partir deste postulado adoptado pelo empresariado, a lógica das competências passa a representar uma estratégia para a gestão de recursos humanos e, como tal, o posto de trabalho que era preenchido pela qualificação exigida e que servia como referência para as questões salariais, é substituído pelas competências que são atribuídas ao indivíduo e não a um conjunto de pessoas que possuem as mesmas qualificações. Outra dedução oriunda desta argumentação é que a escola tem que passar dos conhecimentos para as competências de base, já que os outros “conhecimentos” serão adquiridos fora da educação formal.

São várias as questões levantadas pela introdução do conceito de competências na educação, e vários os argumentos para os defender.

Uma das questões que muitas vezes é levantada é : “temos necessidades de trabalhadores competentes ou de cidadãos críticos?”. Esta questão aparece no sentido de que uma das razões para a adopção da abordagem pelas competências é que a escola se preocupa excessivamente com os conhecimentos. Portanto, a adopção desta noção implica uma mudança no sentido ideológico, ou seja, da diminuição dos conhecimentos que hoje são apresentados pela escola, tendo em vista que esses não são úteis para a inserção no mercado de trabalho. É necessário então, que a escola prepare de outra forma o futuro trabalhador para essa sociedade dita do saber (Maués, 2004).

A discussão sobre as competências não é totalmente nova e, como refere Perrenoud (1999), o debate sobre as competências reanima a eterna discussão sobre cabeças bem-feitas ou cabeças bem cheias”. Os partidários das “cabeças bem-feitas”, defendem um currículo voltado para a construção de competências, enfatizam a necessidade de não aprender apenas conteúdos, mas de os aplicar em situações em que eles precisam de ser mobilizados. Para este autor um óptimo exemplo de educação voltado para a construção de competências pode ser encontrado na pedagogia de Freinet. Uma vez que é uma pedagogia que apresenta como proposta a produção de um jornal por cada classe, e que depois o troque com classes de outros lugares. Neste tipo de trabalho, a aprendizagem da linguagem escrita acontece juntamente com o desenvolvimento de atitudes e procedimentos que fazem parte do perfil de pessoas competentes como produtoras de textos.

Os defensores de uma educação para as competências querem um processo didáctico menos centrado na transmissão de conteúdos. Eles são da opinião que o ensino baseado apenas na transmissão de conceitos e regras torna impossível desenvolver a habilidade para aplicar os conhecimentos em situações em que eles são necessários.

Apesar da posição dos defensores das “cabeças bem-feitas” ser muito sensata, é preciso reconhecer que, em pleno século XXI, a prática das nossas salas de aula ainda é dominada pela didáctica das “cabeças cheias”.

Conforme refere Perrenoud (1999), não se trata de escolher entre cabeças bem-feitas ou cabeças cheias, mas de achar o equilíbrio necessário entre esses dois extremos. O que se pretende não é ensinar competências abstractas, que não se podem aplicar e, por outro lado, também não se pretende ensinar conteúdos irrelevantes para os quais os alunos não conseguem encontrar nenhuma aplicação no contexto de suas acções e reflexões dentro e fora da escola.

A prioridade dada ao conceito de competências é um recurso para quem procura uma educação mais equilibrada, em que os objectivos são definidos não apenas em termos de conteúdos a serem assimilados, mas com base na discussão das capacidades que os alunos devem possuir para poderem actuar de forma eficiente dentro e fora da escola.