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PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

1.4 Clínica ampliada e gestão compartilhada

1.4.2 A equipe como espaço de formação e gestão

Quando algumas pessoas se juntam para trabalhar e, ao juntarem-se, interagem a partir de alianças em prol de um objetivo comum, e nessa interação vão construindo vínculo e identidade entre si, então essas pessoas estão trabalhando em equipe. Ter um mesmo objeto (o paciente, a família, o território) e um mesmo objetivo ou projeto (a produção de saúde, autonomia), são condições para a construção da grupalidade, ou seja, são a liga ou a cola para que a equipe funcione como equipe ou como grupo (e não como uma porção de pessoas que apenas estão reunidas num mesmo espaço). O projeto está relacionado com a produção de valor de uso (Campos, 2000a) ou com a tarefa primária (Kaës, 1991) dos serviços de saúde. Ou seja: para que as equipes trabalham? O que buscam? E por que é importante pensarmos sobre a finalidade de nosso trabalho?

Onocko Campos (2003a; 2003b; 2005a) faz uma interessante leitura sobre como a gestão poderia se ocupar dessas questões, resgatando autores da psicanálise que pensam a

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instituição8 conectada à vida psíquica dos sujeitos. Para Kaës (1991), as instituições nos estruturam e sustentam nossa identidade. Elas facilitam nossa organização psíquica e proporcionam as bases da identificação do sujeito com o mundo social. Isso quer dizer que nos estruturamos como humanos (também) por nossa inserção institucional. E os sujeitos tenderiam a identificarem-se favoravelmente aos objetivos primários ou às finalidades das organizações nas quais estão inseridos, o que Kaës (Op. Cit.) chamou de aderência narcísica à tarefa primária: “Ser um trabalhador da saúde, do SUS, e acreditar no valor positivo do próprio trabalho constituem funções estruturantes da subjetividade” (Onocko Campos, 2005a: p.577). Então, quando uma equipe de saúde define quais seriam suas tarefas primárias, quando consegue construir coletivamente um projeto, isso favorece a aderência narcísica, por meio da qual as pessoas podem sentir que trabalhar ali tem um sentido e vale a pena, podem estabelecer contratos e compromissos, porque se sentem parte daquele coletivo que trabalha por um objetivo comum (Campos, 2000a; Onocko Campos, 2003b). Trata-se de construir uma certa ilusão9 conjunta, que sustentaria os riscos e as dificuldades de estar num coletivo.

No entanto, a mesma aderência narcísica também pode ser fonte de problemas (Kaës, 1991), principalmente em situações de mudança institucional ou quando o contexto de trabalho coloca entraves à tarefa primária (seja por falta de recursos ou por excesso de autoritarismo e controle). Nessas situações se colocam em xeque o processo de identificação entre a instituição e seus agentes, e os sujeitos se valem de estratégias

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Quando falamos em instituição, estamos tratando de valores, práticas e normas construídas e legitimadas histórica e coletivamente, que se manifestam nas organizações e relações sociais (igreja, escola, medicina, família, etc) e regem os modos de viver numa dada sociedade, num dado momento.

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Ilusão, para Winnicott (1975), é um fenômeno transicional, que guarda relações entre o mundo interno dos sujeitos e o mundo externo, mas é distinto deles. A ilusão compartilhada com base em algum grau de semelhança seriam importantes para o agrupamento entre os seres humanos.

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defensivas para lidar com a perda de referências, como o apelo excessivo à ideologização, a somatização, a burocratização. Os profissionais adoecem, ou se demitem, faltam muito, fazem discursos ideologizados ou maniqueístas, passam horas preenchendo formulários ou desenvolvendo tarefas que nada têm a ver com sua função terapêutica. São sintomas institucionais que fazem parte da própria realidade do trabalho em saúde, afinal o contato com a dor, a morte, com a pobreza e o sofrimento ativa nos profissionais uma série de defesas e formas de alienação do trabalho para atenuar o próprio sofrimento psíquico (Onocko Campos, 2005a).

Todas essas questões poderiam contribuir em muito, se puderem ser reavivadas e analisadas. Refletir sobre a própria prática, manter a abertura ao contato com àquilo que provoca dúvida, interrogações e desestabilizações, fazem da equipe um lugar importante de formação e aprendizagem contínua. Fazer a gestão da clínica é também fazer a gestão de si mesmos como profissionais e como equipe. E para isso, são imprescindíveis os espaços de encontro, a institucionalização das reuniões de equipe, a discussão de casos e a construção de PTSs, e às vezes, algum apoio externo para ajudar a equipe a lidar com os momentos críticos. Mas esses espaços de encontro das equipes deveriam, sobretudo, ser capazes de restabelecer um espaço subjetivo, uma área transicional comum, relativamente operatória (Kaës, 1991; Onocko Campos, 2005a), um espaço de jogo, no sentido dado por Winnicott (1975).

Para Winnicott (idem, ibidem), nós experimentamos a vida numa zona intermediária, paradoxal, constituída entre aquilo que é interno ao mundo psíquico e aquilo que pertence à realidade externa; trata-se de um espaço transicional ou potencial.

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O espaço de jogo ocorre nessa zona intermediária, em que o sujeito pode fazer uma apreensão pessoal da realidade, ao seu modo, no seu tempo, e pode sentir a realidade externa não como elemento invasor, mas sim como algo com que se pode brincar, a partir de movimentos de aproximações e distanciamentos (Miranda, 2009). Note-se que o desenvolvimento de uma relação com a realidade externa é dependente da possibilidade de contato, de jogo com o mundo externo. O brincar (play, em oposição à game – a atividade sem regras, pelo prazer de fazer, de experimentar, de criar) é algo além de imaginar e desejar; brincar é o fazer: um fazer conjunto que dá origem à experiência cultural. Brincando, tanto a criança como o adulto exercem a espontaneidade, desenvolvem sua criatividade e, ao mesmo tempo, fazem a realidade. Winnicott estende o conceito de transicionalidade ao mundo dos adultos através não só da brincadeira, mas da arte, da cultura e dos projetos que juntam as pessoas em torno de um objetivo, um sentido comum.

Se as equipes, em suas reuniões, puderem criar e habitar esse espaço de jogo, produzindo ações coletivas e experiências compartilhadas, isso favorecerá que desenvolvam uma relação criativa com a realidade e fortaleçam os laços de pertença e vínculo, tornando-as mais permeáveis às diferenças de cada um e mais capazes de lidar com os conflitos que, inevitavelmente, estão presentes quando as pessoas se juntam. Para isso, as reuniões de equipe requerem um setting protegido, um lugar e um tempo, com relativa regularidade. Esse sentido de permanência e de confiança favorece que os profissionais ousem colocar em análise sua prática, tomar decisões coletivamente, estabelecer contratos e construir maiores graus de compromisso com o que produzem.

Oury (1991; 2009) é outro autor que nos ajuda a pensar as potencialidades de uma equipe. Como psicanalista e representante do movimento da Psicoterapia Institucional, suas

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formulações partem do trabalho com pacientes psicóticos, mas podem ser valiosas para o contexto geral da atenção em saúde. Para ele, o trabalho em equipe possui uma condição paradoxal: colocar em prática sistemas coletivos e, ao mesmo tempo, preservar a singularidade de cada um. Trata-se de viver, ao mesmo tempo, a identificação e a diferenciação, e instaurar um trabalho comum, sem a anulação das diferenças10. Nesse tipo de “bifurcação” é que Oury (2009) formula a noção de coletivo, como uma lógica que respeita uma quase infinidade de fatores de cada um e que parte dessa diversidade para sustentar uma aproximação específica a cada caso, a cada paciente. A característica principal de um coletivo é ele ser constituído, essencialmente, de heterogeneidade, polifonia e multirreferências, isto é, de tonalidades, de estilos de abordagem, de atenção e de possibilidades de encontro diferentes uns dos outros. Se assumimos que a centralidade do trabalho em saúde está colocada no usuário, centralidade essa que se aprofunda na proposta de PTS, podemos pensar a equipe como uma roda que tem o usuário no centro, e da qual cada um dos integrantes são um dos eixos. E se cada eixo é heterogêneo, essa diversidade pode ajudar na composição de um campo de propostas para cada caso.

Para Oury (1991), os membros da equipe devem desenvolver uma capacidade de levar em conta a si mesmos e ao outro, para construírem um ambiente de convivência e respeito, capaz de acolher e articular as diferentes possibilidades e os jeitos próprios de cada profissional. O autor afirma que esse reconhecimento da potencialidade de cada um é mais possível quando a equipe consegue desenvolver aquele espaço de jogo de que falou Winnicott (1975), no qual, a partir da troca, do fazer conjunto e da conquista de uma relação de confiança, os profissionais poderiam se manifestar singularmente e reconhecer o

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Essa idéia remete aos conceitos de campo e núcleo (Campos, 2000b), que também ajudam a pensar o trabalho interdisciplinar sem anular a especificidade dos saberes.

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estilo e a originalidade de seus pares. Esse “saber experimentado” por meio da convivência permite que o itinerário e a história de cada um possam se integrar numa história da equipe, resultando numa relação de complementaridade, que para Oury possui uma dimensão inconsciente:

(...) na própria equipe já existe uma forma de colocar em prática permanente as relações complementares, assim como as complementaridades, (mas não as complementaridades tais como: “sou especialista nisso, ele naquilo, etc...”). Trata-se, com efeito, de um registro quase material: de um lado a articulação de diferentes competências, de outro as condições de uma certa forma de convivência. Aí existe uma armadilha: não se trata de uma complementaridade (...) do gênero “estamos todos do mesmo lado”, que se perde no especular, mas de uma complementaridade inconsciente.

(...) levar em conta o fato que o outro, o companheiro de trabalho, aí está na sua própria qualidade de “presença”, poder conhecer o outro naquilo que é capaz de...

(...) Quando estamos embaraçados frente a um doente complicado, a solução surge espontaneamente, isto é: “seria bom que esse tal pudesse vê-lo”, pois sabemos que ai existe uma ressonância, uma espécie de adequação entre a potencialidade manifesta do companheiro de trabalho e a particularidade do sujeito que se apresenta (Op. Cit.: p.6, grifo nosso).

Contudo, as potencialidades do trabalho em equipe que aqui apontamos talvez devam ser consideradas mais como horizontes desejáveis do que como integralmente possíveis. É importante ressaltar os diversos determinantes que comparecem nos espaços coletivos, empurrando profissionais e equipes para distintas e divergentes posições, mais ou menos voltadas para a colaboração e integração, mais ou menos voltadas para o desencontro e o conflito.

Furtado (2007) discute os diferentes vetores que podem estar em jogo no trabalho em equipe e afirma que é preciso considerar duas forças antagônicas:

A primeira, um pólo representado pelas corporações profissionais, pela lógica profissional, que tenta continuamente garantir um mercado definido e inviolável e expandir territórios, aumentar sua autonomia e elevar seu grau de dominação e controle sobre outras categorias. O outro pólo é representado pela lógica da colaboração profissional, apontando para a necessidade de colocar em comum e

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partilhar conhecimentos, especialidades, experiências, habilidades e, até, a intersubjetividade (Op. Cit.: p. 246).

De acordo com o autor, são forças simultâneas e em constante oposição, sendo que a predominância de uma ou de outra sobre as práticas profissionais pode variar ao longo do tempo e sofrer influências da cultura, do contexto institucional e de outras estruturas transcendentes aos sujeitos. Portanto, esses apontamentos nos convocam a fugir da banalização do trabalho em equipe e reitera a necessidade da gestão cumprir seu papel de garantir e institucionalizar espaços que sejam continentes para lidar com as várias dimensões que estão em jogo nas decisões e nos conflitos no âmbito do trabalho conjunto e na vida institucional.