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Por uma formação que implique o sujeito na construção da realidade

PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

2.1 Por uma formação que implique o sujeito na construção da realidade

“(...) o sertão é do tamanho do mundo.” (p.89) “Sertão: é dentro da gente.” (p.220) “Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca.”

(p.413) (Guimarães Rosa, 1983)

O caminho no sertão não acaba. Abre tantas veredas e encruzilhadas, e as pessoas nunca estão terminadas. O sertão é do tamanho da gente, a formação do ser humano é do tamanho da vida.

É nesse sentido que pensamos a formação do “ser profissional de saúde”. Um processo que se firma na graduação, mas que não se finda ali, que transcorre durante toda a vida profissional, dentro e fora do ambiente de trabalho, seja por meio de propostas formais de educação, das próprias relações cotidianas de trabalho, ou mesmo da inserção do sujeito no mundo sócio-cultural. Um processo que contribui para a construção da identidade profissional e do modo de vivenciar e realizar a prática em saúde e que, sobretudo no contexto de trabalho, pode ser instrumento de reflexão e transformação dessa prática.

Além disso, propomos pensar uma formação que não se restrinja ao arcabouço técnico-científico que configura os diversos núcleos profissionais, pois o trabalho em saúde se dá essencialmente por meio da relação e no encontro entre pessoas. A visão de mundo, os valores, a postura ético-política e os afetos do profissional (e do usuário) comparecem e

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influenciam o rumo de qualquer intervenção e, portanto, devem ser tomados como objeto juntamente com os aspectos técnicos e científicos no processo de formação em saúde. Em sua dimensão técnica, o trabalho em saúde está inevitavelmente embebido pelo processo de subjetivação do profissional que se forma. A travessia do formar-se profissional de saúde compõe-se com a aquisição de informações, referenciais teórico-conceituais, competências e habilidades técnicas, relacionais e políticas, e também com as motivações que levaram à escolha profissional, com o tipo de engajamento ou tomada de posição do sujeito, suas crenças, seus desejos, seu devir (Oury, 1991). A questão que se coloca é se os programas, os cursos e outras instâncias de formação se encarregam com mais ou menos radicalidade da abordagem desses elementos em seu conjunto.

Neste capítulo, partiremos de reflexões sobre o tema da formação em saúde de modo geral e a necessidade de mudanças no modo de formar os profissionais para que sejam capazes de abordar o processo saúde-doença de maneira ampliada, de trabalhar em equipe e de desenvolver uma prática que não se esgote na situação clínica individual . Em seguida, enfocaremos a especificidade dos processos de formação permanente em contextos de trabalho, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Historicamente, a formação dos profissionais de saúde tem sido pautada pelo modelo de educação da ciência positivista, que propõe separar o corpo da mente, a razão do sentimento, a ciência da ética, e que tende a fragmentar o conhecimento e a reduzir o saber à busca pela eficiência técnica. O conhecimento, nessa lógica, é visto como produção estática, como verdade que está no mundo para ser descoberta. E dessa forma, os processos de ensino-aprendizagem tem se restringido, no mais das vezes, à transmissão do conhecimento de um sujeito que o detém para outro que o retém e deve repeti-lo.

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Reprodução de relações autoritárias e da atitude de passividade frente à realidade, num movimento que tende a se transpor da relação professor-aluno para a relação profissional- paciente (Nuto et al, 2006; Souza, 2001).

No contexto brasileiro, de uma sociedade fundada na desigualdade social e na reprodução de subjetividades “colonizadas” e “colonizadoras”, o processo de consolidação de políticas públicas para a garantia de cidadania exige outro modelo de educação, que estimule a construção da consciência crítica, da curiosidade criativa e indagadora de um sujeito que reconheça a realidade como mutável e que pode buscar transformá-la. O desenvolvimento do SUS depende da formação de profissionais com competências éticas, políticas e técnicas, com capacidade crítica e sensibilidade para pensar as questões da vida e da sociedade, e para atuarem em contextos de incerteza e complexidade (Mitre et al, 2008).

A necessidade de repensar os processos de ensino-aprendizagem necessários à formação em saúde passa também pelo reconhecimento das profundas transformações que dão novos contornos à sociedade contemporânea. A velocidade da produção de novos conhecimentos e tecnologias, tornando as verdades cada vez mais provisórias; o questionamento de valores até então intocáveis; a influência dos meios de comunicação na construção de modelos e o embotamento das possibilidades de pensar a vida e o mundo; o dilaceramento das relações sociais; a configuração de uma nova dimensão de espaço e tempo; a disseminação de sociedades de controle: tudo isso impõe a necessidade de reflexão sobre esse novo tipo de inserção dos sujeitos no mundo e o papel do profissional de saúde nesse contexto (idem, ibidem).

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E é por isso que insistimos no uso da palavra “formação”, diferenciando-a do termo “educação”, para enfatizar a dimensão do devir, ou seja, o processo do ser, ou ainda, o ser como processo (Japiassú & Marcondes, 1996)14. A formação do ser humano – e aqui especificamente a formação para o trabalho em saúde – em todas as formas do chegar a ser, do ir sendo, do mudar-se, do acontecer, do passar, do mover-se. Nesse sentido, inúmeras são as instâncias onde se adquire habilidades, capacidades e competências que apuram o ser profissional de saúde e que se integram à aprendizagem nos meios mais formais de ensino. Tanto atividades e experiências que promovem a expansão dos significados dados às coisas da vida, como a arte, a literatura, a filosofia, as relações interpessoais, como também as experiências no próprio ambiente de trabalho, nas relações que ali se estabelecem, e especialmente nos espaços coletivos onde se pensa o trabalho, onde se coloca em análise aquilo que se faz. Na saúde, o trabalho em equipe, se tomado efetivamente em sua possibilidade de análise da prática, de discussão dos casos e intervenções, pode se configurar como uma importante instância de formação permanente in loco.

Mas quando nos interrogamos sobre o termo “formação”, outras expressões aparecem associadas: informar, forma, fôrma, que remetem a formatar, pôr em forma. Collares et al (1999) criticam essa noção, partindo da relação passado-futuro. Para esses autores, quando se pensa em formação estamos considerando um conjunto de características do tempo futuro em que queremos ver projetadas perspectivas do passado: o que do passado será parte do conjunto de conteúdos a serem trabalhados no presente e que desenharão a forma/fôrma do sujeito do futuro que estamos a formar? Então, para aqueles

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Há uma visão pejorativa a propósito da educação, que não é senão a tradução do seu distanciamento do senso comum e da vivência dos sujeitos. A educação deveria permitir o “aprender a aprender”, em oposição à noção de condicionamento (Oury, 1991).

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que projetam um futuro que repete as relações sociais do passado e do presente, trata -se de entender a formação como enformação, como construção de subjetividades assujeitadas a um conjunto prefixado e fechado de modos de compreender o mundo. E a forma da ação, neste cenário, é a transmissão de um conhecimento supostamente pronto e acabado, passivamente recebido e independente das mãos e mentes em que repousa. Formação pela incorporação/apropriação não transformada, que forma os sujeitos em seres supostamente a-históricos, neutros e racionais, negando a contingência da subjetividade.

Mas se consideramos o homem como construção social e histórica, isso nos obriga a operar com certa dose de incerteza, imprevisibilidade e com uma concepção de ciência que inclua sua própria temporalidade, a transitoriedade de suas verdades, a incompletude dos modos de explicação do real e a subjetividade de seus processos de construção. Nessa perspectiva, podemos apontar para uma formação de subjetividades não assujeitadas ao passado, e que utilizem no futuro o que do passado lhes é transmitido como instrumento de interpretação do presente e de construção de novas possibilidades para a vida. Como nos ensina Mário de Andrade (1966), “o passado é lição para se meditar, não para reproduzir”.

Com essa noção, que nos remete à hermenêutica filosófica de Gadamer (2003), nos aproximamos do que foi apontado acima sobre a dimensão do devir na formação e a importância da experiência cotidiana que constitui e impulsiona o processo incessante de tornar-se profissional de saúde, sua travessia. Para Gadamer (idem, ibidem), a compreensão do real depende do resgate da tradição e da história, o que não seria somente um movimento de reprodução do velho, mas também de produção, ao se resgatar as vozes de resistência que atuam nas mudanças históricas. Entretanto, o autor enfatiza outra condição

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para compreendermos o real: o reconhecimento de nossos conceitos prévios, que permeiam inevitavelmente nosso contato com o mundo. Ao entrarmos em contato com algo a ser compreendido, precisamos nos interrogar sobre nossos pressupostos, expectativas e sentidos que desenhamos previamente, para que possamos confrontar-nos com o que o real apresenta em sua alteridade. Destacamos a concepção gadameriana para apontar a importância dos processos de formação considerarem, por um lado, o conjunto de conhecimento já consolidado, mas sempre numa postura de liberdade e possibilidade de escolha das vozes da tradição que queremos sustentar, e por outro lado, partirem das concepções prévias dos sujeitos, assumindo e questionando as crenças e valores na composição das formas de percepção do mundo.

A forma da ação se constituiria, nessa perspectiva, como trans-formação – de sujeitos e da realidade – a partir da construção conjunta entre professores e alunos, trazendo as experiências, vivências e as concepções prévias para o centro do processo de ensino- aprendizagem e partindo das indagações aí despertadas para a busca do conhecimento já consolidado, sua interpretação e aplicação (Collares et al, 1999). A experiência seria tomada como propulsora do aprendizado e, como diria Gadamer, colocaria em primeiro plano a aplicação do conhecimento. A experiência apareceria como algo a ser questionado porque não dispomos, no momento vivido, de conceitos e noções para compreendê-la; porque conflita com o passado e com nossos conhecimentos e saberes. Exige-nos uma interpretação e, por isso, torna-se significativa, forjando a construção de saberes que possam nos ajudar a explicá-la (Gadamer, 2003). Nesse sentido, a aprendizagem é também ruptura. Ruptura relativa não apenas em relação ao conhecimento e ao saber, mas uma

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mudança relativa ao estatuto do sujeito, que se torna enunciador na compreensã o e interpretação sobre o que lhe acontece.

Dessa forma, podemos afirmar que a formação opera, simultaneamente, com processos de cognição e subjetivação, pois ao mesmo tempo em que adquirem e constroem conhecimento, as pessoas se produzem a si mesmas como sujeitos (Franco, 2007). Sujeitos passivos e a-críticos, que se apropriam de um conhecimento transmitido e, numa suposta posição de neutralidade, seguirão a aplicá-lo numa realidade que, a depender de sua ação, permanecerá repetindo suas mesmas contradições. Ou sujeitos com capacidade de análise e enunciação, sujeitos implicados com a coletividade, com capacidade de se mobilizar e intervir na realidade para transformá-la. Resta-nos perguntar: que processos de subjetivação queremos estimular na formação para o trabalho em saúde?