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A subjetividade entre o psíquico e o social, o individual e o coletivo

PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

1.2 A subjetividade entre o psíquico e o social, o individual e o coletivo

De acordo com Neto et al (2011), a tematização da subjetividade na Saúde Coletiva segue diferentes inspirações teóricas e sua utilização é marcada por uma composição híbrida de distintas orientações e escolas de pensamento, coincidindo com o caráter interdisciplinar que o campo admite.

Afirmando nossa proximidade à tradição da psicanálise, a destacamos como uma matriz fundamental para lançar luz à noção de sujeito e subjetividade, partindo de dois princípios básicos que podem enriquecer o entendimento tanto dos processos de adoecimento, quanto dos processos de inter-relação para a produção de saúde. O primeiro é

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a compreensão de que o sujeito é movido não somente por processos conscientes – como sugeria a máxima cartesiana penso, logo sou – mas por uma parte de si que não é conhecida, por desejos e motivações inconscientes que definem posturas e comportamentos sob os quais o sujeito não tem controle. E o segundo é a dissolução da cisão entre mente e corpo. Novamente rompendo com Descartes, Freud (1975 [1932]); afirma que o psiquismo repousa sobre o orgânico e tem aí sua fonte, e isso significa simplesmente que a pessoa é uma só e que a doença não está dissociada da vida.

Assumir o inconsciente e a unidade mente-corpo permite-nos pensar o processo saúde-doença como inexoravelmente ligado à história do sujeito e sua constituição no terreno familiar e na interiorização de traços da cultura. A influência da subjetividade pode ser observada tanto na evolução da enfermidade, quanto no desenvolvimento do auto- cuidado e de modos de vida favoráveis a padrões mais ou menos saudáveis (Soares & Camargo Jr., 2007; Traverso-Yépez & Morais, 2004). Os significados atribuídos à saúde ou à doença se inserem no imaginário que o sujeito constrói em relação a seu próprio corpo, às suas vivências de prazer e dor, e são moldados pelas suas experiências subjetivas (Guimarães & Meneghel, 2003). A doença pode, por exemplo, ser vivida como castigo, como crise que representa passagem, como estratégia de sobrevivência frente às adversidades do contexto de vida. E as intervenções em saúde ganham potência quanto mais são capazes de lidar com o modo como a pessoa vivencia e dá sentido à doença e ao tratamento, bem como com as relações que a partir disso se estabelecem no meio familiar, social e no próprio serviço de saúde. Essas singularidades oferecem valiosas pistas para as intervenções, contudo só podem ser acessadas se na relação clínica o sujeito doente e suas construções subjetivas puderem aparecer.

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Não queremos dizer com isso que os profissionais de saúde devam se “converter” em psicoterapeutas, mas a psicanálise e sua técnica centrada na palavra, na relação transferencial e na interpretação das manifestações do inconsciente coloca em xeque o modo cético com que o modelo biomédico tende a minimizar ou tentar controlar os fenômenos subjetivos, como se as intervenções em saúde pudessem ser unicamente campo de certezas e prescindir das dimensões conflitiva e imprevisível que acompanham as pessoas, os pacientes, os profissionais de saúde. A psicanálise traz para o campo da saúde o convite à valorização da narrativa no processo terapêutico, da dinâmica da relação profissional-paciente e dos afetos aí presentes, temas nos quais transitaremos mais adiante.

Antes disso, queremos ressaltar que os conceitos sujeito e subjetividade requerem uma apreciação cuidadosa sobre as implicações colocadas pelos teóricos e pelas escolas de pensamento que deles trataram e sobre as maneiras como podem ser resgatados e articulados com outras redes conceituais. Foge aos limites deste trabalho mapear essas diferentes e muitas vezes antagônicas concepções, mas é preciso, isso sim, expor a nossa perspectiva.

A concepção de subjetividade que assumimos não se circunscreve aos fenômenos intra-psíquicos e individuais, tampouco julgamos que o sujeito se resume às estruturas psíquicas que o determinam, a despeito de alguns reducionismos presentes na história do campo “psi” e de algumas críticas feitas à psicologia e à psicanálise por supostamente centrarem-se em demasiado no indivíduo em seu espaço íntimo e de interioridade psicológica. O pensamento de Freud (1975) e Winnicott (1975), entre outros autores da psicanálise, permite-nos considerar que o próprio inconsciente é social e histórico, constituído na interação com os primeiros outros que nos cercaram, mas também com o

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ambiente, com a sociedade e com a cultura. Na psicologia social de Pichón-Rivière (1985) e no construtivismo sócio-histórico de Vygotsky (1988) também encontramos a noção de sujeito intersubjetivo, que emerge do agir concreto com os outros no mundo social3. Ainda, aproximamo-nos do pensamento de Guattari & Rolnik (1996), para quem a subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo, mas permanentemente produzida no terreno político-social.

Assim, entendemos a subjetividade como produto das relações entre o mundo interno e o mundo social, o que marca a singularidade na formação do indivíduo e na construção coletiva de crenças e valores compartilhados na dimensão cultural. Ela possui uma relação indissolúvel com a alteridade e o mundo social, portanto é preciso deixar de lado as oposições entre o individual e o coletivo, o psíquico e o social4. Contudo a subjetividade não é algo etéreo, não material, mas é primordialmente corporificada (Serpa Junior et al, 2007), ou seja, também não há dicotomia entre o sujeito e seu corpo, mas um corpo-sujeito (Birman, 2007), ou um corpo-subjetivo (Canguilhem, 1978). A subjetividade emerge da relação de um organismo em interação com o meio – humano e físico – em que vive e, neste sentido, é enraizada no mundo, situada em contexto.

Nas palavras de Bezerra Jr (2007), a experiência subjetiva resulta

(...) de uma complexa rede de elementos biológicos e psicológicos, individuais e coletivos, conscientes e inconscientes, idiossincráticos e sociais. Ela é composta tanto de significados que podem ser compartilhados quanto de sentidos encarnados – nem sempre exprimíveis ou acessíveis à consciência porque inscritos numa dimensão pré-reflexiva ou pré-verbal. Ela é algo que surge como resultado das interações (...) entre o corpo e o ambiente físico e simbólico, entre o

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Esses autores serão retomados no próximo capítulo, quando faremos uma exposição dos principais conceitos e categorias que inspiram o método com o qual trabalhamos.

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Usamos o termo subjetivo quando queremos destacar a oposição ao que é objetivo ou verificável objetivamente, bem como os fenômenos da ordem da experiência privada, individual. Já o uso do termo subjetividade leva em consideração as tensões implícitas e vigentes entre o individual e o social.

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indivíduo e o universo humano que o acolhe e o constitui como sujeito. A fonte da vida subjetiva deixa de ser vista como estando exclusivamente na fantasia inconsciente, no cérebro ou nos traços sociais que inscrevem o indivíduo numa totalidade, e passa a ser compreendida como emergindo da ação no mundo, que engloba todos esses aspectos sem se reduzir a nenhum deles (Op. Cit.: p.24).

Tudo isso nos faz reconhecer que o sujeito, embora possua uma identidade, também está em constante processo de vir-a-ser, de tornar-se sujeito – por isso o uso freqüente dos termos modos ou processos de subjetivação – e coloca em foco a dimensão política da subjetividade, em sua conexão com os processos sociais. Como afirma Campos (1992), “é na gestão do cotidiano que se constrói esta ou aquela subjetividade, sujeitos autônomos ou sujeitados” (p.94).

O caráter dinâmico e a dimensão política são demarcadores da noção de subjetividade, tal como a concebem Guattari & Rolnik (1996). No trabalho de Mansano (2009), encontramos uma síntese do pensamento desses autores:

(...) a subjetividade implica em uma produção incessante que acontece a partir dos encontros que vivemos com o outro. Nesse caso, o outro pode ser compreendido como o outro social, mas também como a natureza, os acontecimentos, as invenções, enfim, aquilo que produz efeitos nos corpos e nas maneiras de viver. Tais efeitos difundem-se por meio de múltiplos componentes de subjetividade que estão em circulação no campo social. Por isso mesmo (...) a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social (Mansano, 2009: p.111).

Os processos de subjetivação se dão a partir de uma série de instituições, práticas e procedimentos vigentes em cada tempo histórico, isto é, a linguagem, a tecnologia, a ciência, a mídia, o trabalho, o capital, a informação, enfim, os equipamentos sociais e os dispositivos políticos de poder, da cultura e dos modos de produção que vão definindo modos de ser e estar no mundo (Mansano, 2009). Mas, a despeito das regras e valores dominantes que organizam a vida em sociedade, o sujeito realizaria uma apreensão parcial de toda a heterogeneidade presente no contexto social:

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Assim, valores, idéias e sentidos ganham um registro singular (...). Essa produção de subjetividades, da qual o sujeito é um efeito provisório, mantém-se em aberto uma vez que cada um, ao mesmo tempo em que acolhe os componentes de subjetivação em circulação, também os emite, fazendo dessas trocas uma construção coletiva viva (Op. Cit.: p.111).

O que nos importa destacar dessa concepção é que a produção de subjetividade aconteceria em meio a uma luta, daí sua dimensão política. Os elementos que participam nos processos de subjetivação podem ser permanentemente abandonados, modificados e reinventados pelos sujeitos e postos em circulação na vida social. Apesar dessas reinvenções estarem o tempo todo sendo tencionadas a se encaixar nos registros das referências dominantes, elas propiciam a experimentação de maneiras diferentes de perceber o mundo e de nele agir. Um processo de singularização, que ressalta também a dimensão desejante que põe a vida em movimento.